A febre de responsabilidade social ganhou importante instrumento de avaliação no Grande ABC. Iniciativas do Imes (Universidade Municipal de São Caetano) e de Basf, Ciesp, Sesi e Unifei de São Bernardo sobre o tema chegam em momento oportuno. Apesar de avanços, a região está distante da plenitude do conceito porque ainda confunde responsabilidade social com distribuição de recursos aos menos afortunados e a causas ecológicas. E em muitos casos utiliza ações para purgar erros legais, produtivos, comerciais e até pessoais.
A conclusão está reforçada por contradições flagrantes entre o que se prega e o que realmente se faz. Se o termo pudesse se desmembrar em benemerência, caridade, voluntariado e solidariedade seria simples afirmar que o Grande ABC caminha para uma comunidade socialmente responsável.
O fato é que responsabilidade social se faz de dentro para fora e deve começar no ambiente interno da empresa, no relacionamento com os colaboradores e na adoção de práticas éticas de compra, venda e fabricação. “Assinar o cheque é a parte mais simples do processo. O xis da questão está em sustentar a responsabilidade social no dia-a-dia da empresa” — dispara a publicitária e uma das principais consultoras da área no Grande ABC, Ana Cláudia Govatto.
Números que se esvaziam
Total de 90% das empresas entrevistadas pelo Imes garantiu que proporciona benefícios e se preocupa com o bem-estar dos funcionários. A concentração se dissipa de forma avassaladora quando a relação capital-trabalho é vasculhada mais a fundo. A mesma sondagem aponta que apenas 38,4% das empresas admitiram programas de amparo a colaboradores e 24,7% promovem algum tipo de ação para minimizar o estresse no ambiente de trabalho.
Os números também são baixos em quesitos para mensurar preocupação comunitária: pouco mais da metade, ou 50,7%, apoiam organizações governamentais, apesar de o viés solidário ser o preferido na divulgação dos feitos. Quando se fala em investimentos em Educação e Saúde da comunidade, o envolvimento é de 24,7%. Se o assunto for o patrocínio de programas ou projetos sociais, o índice desce mais ainda e atinge apenas 17,8%.
Esses dados exemplificam a tênue linha entre teoria e prática. As contradições aparecem em vários pontos da pesquisa do Imes e não estão restritas ao universo do Grande ABC. Levantamento recente apresentado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada da USP) mostra que 96% das empresas brasileiras com mais de 500 funcionários têm até departamento exclusivo de responsabilidade social. Entretanto, muitas dessas corporações enxergam as ações apenas como valiosas ferramentas de marketing de negócios e relacionamento.
Contradições da Petrobras
A Petrobras é exemplo emblemático. Ao mesmo tempo em que patrocina projetos culturais e ambientais em todo o País, não consegue se dissociar de derramamentos de óleo em rios e mares. A tragédia provocada pela explosão da plataforma de petróleo no Rio de Janeiro é literalmente mancha escura na reputação da estatal. “O tempo e os fatos são algozes. Em casos como esse, fica evidente a falta da complementaridade exigida pela responsabilidade social” — analisa Gino Giacomini Filho, professor do Imes e um dos responsáveis pela pesquisa.
Um dos coordenadores da produção científica de pós-graduação da Universidade de São Caetano, Gino Giacomini Filho acumulou conhecimento suficiente para fazer lista bastante extensa de incongruências. Há de tudo e, principalmente, casos não tão massificados como o da Petrobras, mas igualmente contraditórios. Alguns estão revestidos de tanta sutileza que exigem discernimento para serem compreendidos.
Gino Giacomini chama a atenção para o significado dos recalls. O mecanismo utilizado por montadoras de veículos para reconhecer publicamente que deixaram de apertar corretamente o parafuso do cinto de segurança ou que um dos componentes do freio pode se soltar a qualquer momento tem sido recorrente. Quase todos fabricantes de automóveis precisaram recorrer à medida nos últimos três anos. “São erros que podem causar acidentes graves e denunciam deficiências que comprometem a imagem de empresas que investem milhões em causas sociais” — analisa o professor.
Mais contradições
A reflexão sugerida pelo exemplo dos recalls puxa outra lista bastante extensa. O que pensar de empresas que fazem doações periódicas a creches mas descumprem a legislação e não oferecem o benefício às funcionárias e ainda exigem teste de gravidez, também proibido por lei, como requisito para seleção? Ou o que dizer de ações que parecem próprias do negócio mas incompatíveis com responsabilidade social? “Como acreditar na conduta ética de um banco que patrocina causas sociais e cobra a taxa de juros mais alta do mercado?” — pergunta Gino Giacomini.
A pesquisa do Imes se ateve à análise mais genérica. No entanto, um dos pontos que chamou a atenção foi a dificuldade de as empresas admitirem falhas internas. Muitas, além de pecar pela omissão, não tiveram dúvida em resvalar pelo caminho do falso testemunho. Tanto que 74% alegaram ausência de insalubridade no ambiente de trabalho. O número colocaria o Grande ABC em patamares de Primeiro Mundo.
A observação do entrevistador de campo impressa na página 17 da revista Imes número 9 foi determinante para conduzir à leitura diferente: o texto diz que, apesar de assumirem ambiente ou atividade insalubre, as empresas preferiram ressaltar a disponibilidade de equipamentos e de recursos para amenizar a periculosidade. “Os resultados puros levavam a entendimento positivo, mas as empresas, principalmente as de menor porte, se recusaram a assumir a insalubridade” — confirma o professor Gino Giacomini Filho.
Livre arbítrio
A impressão do pesquisador de campo foi um recurso utilizado pelo Imes para evitar que os entrevistados respondessem apenas o conveniente. Reconhecer falhas e admitir que há empenho em melhoria têm mais valor do que uma ou duas ações pontuais utilizadas como vitrine de perfeição” — emenda Ana Cláudia Govatto.
A especialista entende que as empresas têm livre arbítrio para estabelecer a intensidade da relação de transparência com funcionários, comunidade e consumidores. O problema está em subestimarem ações que poderiam perenizar valores éticos e supervalorizarem medidas que aparentemente dão mais ibope.
Dos 93,2% entrevistados que garantiram praticar comunicação transparente, somente 9% cultivam o hábito de acrescentar na divulgação institucional ações internas consideradas fundamentais pelos especialistas. O baixo percentual tem explicações diversas e está mais associado ao fato de muitas empresas ainda considerarem alguns procedimentos como tabu.
A ausência de casos de assédio moral e o cumprimento de cotas de minoria são reforços considerados substanciais pelos especialistas para nortear a responsabilidade social. Até mesmo a seriedade com que as finanças da empresa é tratada e consequentemente a ausência de casos de destaque é colocada nesse grupo. “E quem deixa de divulgar essas ações para colaboradores, comunidade e consumidor, pode perder tempo e terreno para concorrência nem sempre ética” — acredita Ana Cláudia Govatto.
Polo Petroquímico
A especialista costuma utilizar a trajetória do Pólo Petroquímico de Capuava como exemplo. Durante muito tempo as indústrias concentradas em Capuava foram vistas pelos moradores do entorno como poluidoras e altamente perigosas. Era comum ouvir os mais velhos sentenciarem que se o flair (chaminé) da PQU explodisse, a bola de fogo tomaria Mauá em poucos minutos. A percepção passou a mudar depois que as empresas se aproximaram da comunidade e abriram as portas para mostrar processos de segurança e fornecer orientações de procedimento em caso de acidente.
Os moradores desconheciam que o temido flair queima resíduos de gases tóxicos e evita que sejam lançados na atmosfera. “Em vez de desmentir ou camuflar o perigo, as empresas optaram corretamente por mostrar os mecanismos de proteção. Isso poderia ser melhor trabalhado na comunicação institucional” — sugere Ana Cláudia Govatto.
Também o McDonald’s se encaixa na observação. Crucificado pela quantidade excessiva de calorias dos sanduíches, a rede atendeu aos apelos politicamente corretos por alimentação mais saudável. Reestruturou o cardápio e deu ênfase às mudanças em campanha publicitária. A estratégia está correta mas também aqui os especialistas acreditam que a marca poderia ter saído menos arranhada do processo se algumas ações internas chegassem ao conhecimento dos consumidores. O McDonald’s é o principal parceiro da Agência de Desenvolvimento Econômico no Grande ABC no Programa Primeiro Emprego. Também emprega portadores de deficiência em cotas maiores que a exigida pela legislação.
Para grandes empresas
A pesquisa do Imes mantém as empresas no anonimato. Por isso, torna-se difícil saber se Pólo Petroquímico e McDonald’s integram a amostragem. É notório, no entanto, que as grandes corporações apareçam em destaque com relação à responsabilidade social: têm dinheiro e departamentos específicos para cuidar da imagem e da publicidade. Soaria prematuro estabelecer se são mais ou menos responsáveis que as pequenas.
Estudos realizados na Inglaterra apontaram que a dificuldade de comparar pequenas e grandes provêm da própria especificidade das organizações menores, como personificação administrativa do proprietário, suscetibilidade às mudanças legais e acesso mais restrito às informações, entre outros complicadores. No Brasil, a prática social de empresas de menor porte é tão heterogênea quanto as características do setor. Enquanto a maioria ainda vive na informalidade — 98% das micro e pequenas ainda estão nessa condição conforme recente pesquisa do Sebrae —, grupo bastante reduzido corre atrás de tecnologia e competitividade.
Por isso, pesquisadores do Imes ficaram surpresos ao constatar que 69% das micro estão envolvidas com algum tipo de ação social. “Esperava no máximo 40%, por questões de custo, principalmente” — confessa Gino Giacomini. A surpresa pode estar relacionada também a outro fato detectado nas entrelinhas do trabalho acadêmico: os pesquisadores entenderam que as pequenas empresas conseguem ter mais proximidade com os funcionários, o que de certa forma humaniza o ambiente de trabalho.
Como não têm recursos financeiros para oferecer benefícios, programas de treinamento e outras iniciativas, procuram compensar com atitudes norteadas por valores éticos e morais do proprietário.
Pequenas integradas
Os especialistas também consideram que as pequenas empresas são mais integradas à vizinhança. “Será que a direção de uma grande montadora instalada em São Bernardo sabe mais dos problemas e peculiaridades da cidade e do Grande ABC do que o dono daquela padaria tradicional?” — questiona Ana Cláudia.
Uma das razões do aprofundamento analítico dos dados do Imes está na atribuição de percentuais distintos para grandes e pequenas corporações. Os professores garantem que o método não dá margem a desvios porque foi elaborado em base científica. A pesquisa, realizada em 2004, tem como base as 520 organizações relacionadas no guia Quem é Quem do Diário do Grande ABC. Para viabilizar o estudo foram sorteadas 73 organizações, 34 de Santo André, 38 de São Bernardo e oito de São Caetano, divididas em 21 micros, 29 pequenas, oito médias e 15 grandes. Todas foram visitadas pessoalmente durante o primeiro semestre de 2004.
Enquanto o Imes rastreou a responsabilidade social no Grande ABC, Basf, Sesi São Bernardo, Ciesp São Bernardo e Centro Universitário da FEI se uniram para fazer estudo semelhante em São Bernardo. Apesar de metodologia mais simplificada, o resultado é bastante parecido. Também no Município mais industrializado do Grande ABC o conceito de responsabilidade social ainda está longe de ser aplicado integralmente.
O grupo coordenador da Pesquisa de Responsabilidade Social das Indústrias de São Bernardo arregaçou as mangas depois que pesquisa feita em 2003 pelo Ciesp em todo o Estado apontou adesão quase irrisória das corporações da cidade. Dos 543 pesquisados, a mostra de São Bernardo foi tão inexpressiva que não chegou a ter validade estatística para o estudo. “A baixa presença e a impossibilidade de extrair dados localizados nos estimularam a buscar o perfil das empresas municipais” — destaca Vitor Seravalli, coordenador de responsabilidade social do Ciesp e diretor industrial da Basf.
Poucas respostas
O cenário, no entanto, não foi muito diferente. A receptividade ao questionário com 50 perguntas elaborado pelas entidades locais forneceu a primeira sinalização sobre o interesse das empresas de São Bernardo na responsabilidade social. Dos 570 formulários enviados para mostra representativa de 1.286 empresas estabelecidas na cidade, apenas 48, ou 8%, retornaram com respostas. “A participação deixou transparente a realidade sobre o assunto” — admite o diretor do Ciesp, Mauro Miaguti. Diferentemente do estudo realizado pelo Imes, a pesquisa de São Bernardo não contou com pesquisador de campo. O retorno ficou restrito ao grau de interesse das empresas.
As empresas participantes empregam cerca de 30 mil dos 100 mil trabalhadores registrados em São Bernardo. Desse universo, 45,8% são pequenas, 31,3% médias e 22,9% de grande porte. As maiores corporações mostram mais amadurecimento com relação ao tema. Todas declararam desenvolver monitoramento e controle de impacto ambiental, enquanto apenas 31,8% das pequenas fazem algum tipo de trabalho nesse sentido.
O estímulo ao voluntariado também apresenta volume significativo entre corporações mais estruturadas: das grandes indústrias, 72,7% incentivam funcionários a participar de ações comunitárias, contra 22,7% das pequenas. Já as pequenas empresas surpreendem em quesitos como contratação de portadores de deficiência: o índice é de 36,6%, contra 27,3% das grandes.
São Bernardo também reforçou a idéia de que a maioria ainda entende responsabilidade social como simples doação de dinheiro, roupas e alimentos. Quase 80% das entrevistadas admitiram praticar assistencialismo e mais da metade — 54,1% — fazem doação em dinheiro para pessoas e instituições. Esse percentual atinge 70% nas corporações com mais de 500 colaboradores. A explicação é simples, segundo os coordenadores: como esse tipo de ação não exige envolvimento direto com as mazelas sociais, as empresas preferem delegar o trabalho de campo a instituições do ramo.
O estudo realizado em São Bernardo também deixou claro que existem lacunas a serem preenchidas. Por isso, o grupo já formou equipes de trabalho para disseminar o tema. “Devemos estimular encontros periódicos para trocar experiência entre corporações” — deseja Mauro Miaguti.
Novos convites
Alguns detalhes de interatividade já foram definidos. A participação nos encontros não ficará restrita a quem respondeu a primeira sondagem. As corporações serão novamente convidadas, principalmente as associadas do Ciesp. “É importante dar caráter de regionalidade ao trabalho, por isso vamos envolver as demais diretorias do Ciesp no Grande ABC” — planeja a vice-reitora do Centro Universitário da Unifei, Rivana Marino.
A primeira etapa do trabalho deve ser colocada em prática antes do final do ano e envolve ação social estimulada por LivreMercado. Os coordenadores programam maior integração das empresas com as entidades dirigidas por Nossas Madres Terezas, agentes sociais da periferia que a publicação tira anualmente do anonimato.
A idéia é que os participantes possam conhecer o trabalho de profissionalização desenvolvido pelas duas unidades do Sebrae regional e Ciesp de São Bernardo para auxiliar as benemerentes na gestão das entidades e captação de recursos. “A ação é referência importante para que as empresas comecem a entender a amplitude do conceito de responsabilidade social” — considera o coordenador de responsabilidade social do Ciesp, Vitor Seravalli.
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