Muito além do Brasil campeão mundial de taxa de juros e impostos a indústria automobilística enfrenta dificuldades para consolidar negócios rentáveis. Nos Estados Unidos e Europa, gigantes como General Motors e Fiat amargam situações financeiras dificílimas. A capacidade produtiva mundial supera em larga escala o potencial de absorção de novos produtos e a ociosidade abala os alicerces do setor.
Para o Grande ABC pendurado na economia sobre-rodas, o recado emitido pela conjuntura internacional é tão repetitivo quando claro: é imperativo encontrar alternativas que tornem empregos e impostos menos dependentes dos humores do setor mais competitivo do planeta. A General Motors anunciou que vai fechar fábricas e extinguir 25 mil empregos na América do Norte nos próximos três anos. Isso mesmo. A maior montadora do planeta está disposta a cortar da própria carne para compatibilizar custos e receitas.
As operações da GM na América do Norte registraram prejuízo de US$ 1,3 bilhão no primeiro trimestre e a previsão é de que as perdas continuem até o final do ano. O fracasso financeiro está atrelado a causas distintas: despesas exorbitantes com planos de saúde e previdência privada e queda de participação de mercado, principalmente em função do assédio de rivais como a japonesa Toyota.
Alerta norte-americano
A constatação de que custos trabalhistas estão nocauteando a GM dos Estados Unidos deve servir de alerta para os sindicalistas da região brasileira cujas conquistas históricas são inversamente proporcionais à condição de competitividade por novos investimentos. Rick Wagoner, presidente e executivo-chefe da companhia, afirmou que a crise relacionada aos planos de saúde de ex-funcionários está colocando o futuro da GM norte-americana em questão.
Por isso, está disposto a rever benefícios negociados em tempos de vacas gordas mesmo que a decisão gere conflito entre a montadora e o poderoso sindicato UAW (United Auto Workers). Durante assembléia anual da montadora, Wagoner advertiu: “Está claríssimo que precisamos conseguir substancial redução das desvantagens em termos de ônus em cobertura de saúde, e é preciso fazê-lo imediatamente”.
Se as vendas da GM norte-americana estivessem indo de vento em popa, custos estimados em US$ 5,6 bilhões por ano com planos de saúde e previdência privada seriam provavelmente absorvidos sem grandes traumas. Mas ganham relevância e entram na linha de tiro diante do quadro de retração mercadológica.
Toyota avança
A participação da GM no país de origem caiu de 27,2% para 25,7% nos primeiros cinco meses deste ano em relação ao mesmo período do ano passado, tombo de 1,5 ponto percentual. Uma das maiores responsáveis pelo fiasco é a Toyota que, pela primeira vez na história, superou a marca dos dois milhões de unidades vendidas na América do Norte no ano passado.
A entrada forte da Toyota no segmento de picapes e utilitários esportivos garante 10% do bolo norte-americano, participação suficiente para encostar na Chrysler, uma das Big Three ao lado de Ford e GM.
O crescimento da Toyota nos Estados Unidos está longe de ser fato isolado. A montadora sediada nos arredores de Nagoya e conhecida pela criação do revolucionário just-in-time é a que mais cresceu no mundo e tomou da Ford a segunda colocação entre as maiores do planeta. Em 1980 a Toyota tinha 11 fábricas em nove países. Hoje possui 46 fábricas em 26 países. A produção automobilística mundial é de 60 milhões de unidades e aumentou em três milhões desde a virada do milênio. Desse total, a Toyota respondeu sozinha pela metade.
Meta é de 15%
Mas a montadora não está satisfeita. Pretende abocanhar 15% do mercado mundial — atualmente responde por 10%. Quanto mais o plano global passar pelo Brasil, mais o Grande ABC e as montadoras radicadas na região devem se preocupar. Dona de moderníssima fábrica em Indaiatuba, Interior de São Paulo, da qual saem os modelos de luxo Corolla e Corolla Fielder, a companhia pretende erguer uma segunda planta para produzir modelo compacto que proporcione escala de vendas no País dos populares.
O governador do Rio Grande do Sul, Germano Rigotto, já estendeu o tapete vermelho ao board internacional da maior corporação japonesa, mas a localização ainda não foi definida. A única certeza é que não será instalada no Grande ABC. Afinal, o berço da indústria brasileira carrega imagem ultrapassada aos olhos dos japoneses. Eles associam São Bernardo ao jipe Bandeirantes, que teve linha descontinuada e deu lugar à fábrica de autopeças.
A estratégia de expansão da Toyota é a mesma no Brasil e nos Estados Unidos: instalar fábricas em regiões que conciliem boa infra-estrutura e custos reduzidos. Longe do Grande ABC, no caso brasileiro, e distante de Detroit, no norte-americano. É exatamente essa a receita seguida também pela sul-coreana Hyundai, que em maio último inaugurou a primeira fábrica nos Estados Unidos. Localizada em Montgomery, no Alabama, a planta de US$ 1,1 bilhão não sustentará o peso dos encargos sindicais e trabalhistas vigentes em Detroit. A produção anual de 300 mil unidades do modelo Sonata e do utilitário esportivo Santa Fé adiciona ainda mais fervura no caldeirão das Big Three.
Fiat fragilizada
A situação da Fiat na Itália é ainda mais desconfortável que a da GM nos Estados Unidos. Após mais de um século no comando, a família Agnelli perderá o controle acionário para um grupo de bancos credores que assumirá 27% das ações em setembro, enquanto o naco da família será reduzido de 30% para 22%. A notícia caiu como uma bomba sobre autoridades públicas e moradores dos arredores de Turim, onde a Fabbrica Italiana Automobili Torino está sediada desde 1899. Eles temem que os novos controladores resolvam fechar ou diminuir ainda mais a estrutura da planta que teve o quadro reduzido de 90 mil para 13 mil empregados.
A governadora do Piemonte, Mercedes Bresso, espera que eventual casamento seja sacramentado com outra montadora européia, na expectativa de que a origem continental comum possa pesar na balança da sensibilidade social. Já o prefeito de Turim, Sergio Chiamparino, é mais realista ao deixar claro que a sobrevivência da cidade não deve mais depender da montadora e da extensa rede de fornecedores que, ainda hoje, representa a base da economia.
Ele desenha um cenário dopo-Fiat (pós-Fiat) no qual desponta uma Turim economicamente mais independente baseada em telecomunicações, serviços e construção, de acordo com reportagem publicada no Valor Econômico. Qualquer semelhança com o Grande ABC idealizado por Celso Daniel como pólo de serviços de alto valor agregado para contrabalançar o declínio industrial não é mera coincidência. No Brasil, na Itália ou nos Estados Unidos, os efeitos da globalização sobre territórios mais caros são os mesmos.
Ritmo mais acelerado
A queda da participação de mercado da Fiat é a face visível da incapacidade de acompanhar o ritmo de concorrentes, principalmente asiáticos e japoneses. Na Itália a fatia foi reduzida de 30% para 27% (20% para Fiat e 7% para Alfa Romeo e Lancia, que integram o grupo) e na Europa declinou de 10% para 6,7%. Na falta de demanda suficiente, as cinco fábricas do grupo na Itália ficam pelo menos uma semana por mês paralisadas. A lei italiana autoriza a montadora a colocar funcionários em condição de desemprego técnico durante 52 semanas num período de dois anos. Os operários são co-financiados por um fundo compartilhado entre o Estado e a empresa.
Se os problemas da Fiat se agravarem, é possível que a nação orgulhosa de sua história, arte, moda e culinária fique sem o estandarte automotivo num futuro não muito distante.
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