O Grande ABC não deve se iludir com os sucessivos recordes automotivos de produção e vendas externas. A situação das montadoras é muito mais delicada do que os 2,5 milhões de habitantes da região gostariam de reconhecer. Os PDVs (Planos de Demissão Voluntária) programados por General Motors, Volks e Scania podem significar apenas a ponta de um iceberg de proporções assustadoras porque o transatlântico automobilístico responsável por mais de 91 mil empregos no Brasil está à deriva e pode naufragar em dificuldades macroeconômicas da mesma forma que o fatídico Titanic desceu às profundezas do oceano.
Há quem conteste a analogia propositalmente provocativa com o argumento aparentemente incontestável do ritmo de produção 15% superior ao do ano passado, puxado principalmente por exportações. E em 2004 a produção já havia demarcado recorde histórico com 2,2 milhões de unidades produzidas. “As montadoras vão cada vez melhor e jamais naufragarão!” — dirão sindicalistas, executivos e homens públicos unidos num coro do tipo Pra-Frente-ABC!
Bem, os sinais vitais do segmento não se resumem a números de produção e vendas. Além disso, os construtores do Titanic também juravam que o maior colosso então construído pelos homens jamais afundaria.
Ameaçadas identificadas
O Titanic foi a pique porque um bloco de gelo escapou dos radares e atingiu o casco da embarcação. A situação da indústria automobilística é mais confortável porque as ameaças já foram identificadas. O problema é que os timoneiros do setor não têm o que fazer porque dependem da melhoria do ambiente macroeconômico. Como 70% da economia do Grande ABC está direta ou indiretamente atrelada à sustentabilidade das linhas de montagem, significa que os municípios locais ocupam posição desfavorável no transatlântico que chacoalha sem parar.
A excessiva valorização do real frente ao dólar é o maior obstáculo captado pelos radares das montadoras. E não apenas porque pode comprometer os volumes de embarques a ponto de reverter a tendência de crescimento da produção nos próximos meses. O mais grave é que a apreciação do real balança o transatlântico automobilístico porque as margens de lucro das vendas internacionais foram praticamente anuladas. “O câmbio deteriorou a lucratividade das exportações” — sintetiza Rogelio Golfarb, presidente da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores).
Quando o dólar era cotado a R$ 3, no final do ano passado, cada mil dólares embarcados rendiam R$ 3 mil. Com a moeda americana cotada a R$ 2,50, por exemplo, a mesma venda rende R$ 2,5 mil. Uma perda de R$ 500, exatamente a diferença entre o lucro e o prejuízo com exportações. “E o problema é que os preços dos insumos cotados internacionalmente, como aço e resinas plásticas, não recuaram. Em vez disso, aumentaram ou no máximo se mantiveram estáveis” — explica Golfarb.
Duas alternativas
Teoricamente, as montadoras teriam duas alternativas para desarmar a arapuca da valorização excessiva do real sobre as exportações: reajustar preços em dólar ou suspender embarques. Nenhuma dessas soluções é plausível. Rogelio Golfarb conta que reajustar preços é praticamente impossível num quadro internacional forjado por competitividade feroz. O mundo está cheio de concorrentes dispostos a tomar o lugar dos produtos brasileiros com opções mais vantajosas.
Além disso, as vendas externas estão concentradas nos chamados carros de entrada, mais simples e baratos, cujos consumidores internacionais não teriam condições de absorver aumentos de preços. “Se nossas exportações dependessem de carros de luxo a história seria outra, mas não é o caso” — destaca.
Motivos não faltam
Se não há espaço para corrigir preços, suspender embarques insatisfatórios é ainda mais difícil. E por vários motivos. Um dos mais fortes é a necessidade de manter as linhas de montagem ocupadas para evitar aprofundamento da ociosidade que seria dramática num País que recebeu mais de US$ 20 bilhões em investimentos para aumento da capacidade instalada durante a década de 90. As exportações respondem por quase um terço da produção nacional de veículos e cumprem papel estratégico no uso da capacidade instalada na medida em que compensam a inelasticidade do mercado doméstico. Resumo da situação: ruim com exportações afetadas pelo câmbio, pior ainda sem vendas externas.
Sob a ótica estritamente comercial, suspender embarques geraria prejuízos incalculáveis no longo prazo. “Compromissos de fornecimento de produtos de alto valor agregado como automóveis não podem ser cortados do dia para a noite. Levamos anos para desenvolver relações de confiança com clientes internacionais e não podemos pôr tudo a perder” — explica Golfarb. “Por outro lado, é difícil sustentar vendas que não são lucrativas para uma indústria que amarga prejuízos há anos no Brasil” — desabafa o presidente da Anfavea.
Golfarb comenta que depois da desvalorização cambial de janeiro de 1999 a indústria automobilística fez esforço enorme para desenvolver produtos made in Brazil e, como resultado, conquistou dezenas de mercados que contribuem substancialmente para o superávit da balança comercial. Romper contratos de exportação significaria, portanto, colocar em xeque o esforço histórico de transformação do Brasil em plataforma de exportações, além de afetar uma das principais conquistas do governo federal.
Redução da taxa Selic
Com rentabilidade degradada pelo câmbio, mas sem poder retroceder no caminho das exportações, as montadoras não têm alternativas a não ser rezar para que o Banco Central reduza substancialmente a taxa Selic. “O câmbio é muito vinculado à taxa de juro. Taxa de juro alta traz capitais de curto prazo que jogam a cotação do dólar para baixo. A conta de capital afeta diretamente a cotação do dólar, mais até do que a conta de exportação. Quanto menor a taxa de juro, mais baixa a cotação do real” — considera Golfarb.
A constatação de que condicionantes internacionais e macroeconômicas praticamente obrigam montadoras a manter exportações sem retorno financeiro expõe mais uma faceta dramática da indústria mais competitiva do mundo do lado de baixo da linha do Equador. Também ajuda a entender a oferta de PDVs nas fábricas do Grande ABC em momento de aparente bonança.
Já que não podem reajustar preços para recuperar margens nem interferir nos preços das matérias-primas cotadas internacionalmente, as empresas procuram salvar o balanço financeiro com a redução da força de trabalho. PDVs são um achado nesse contexto, porque permitem compactar quadros em doses homeopáticas, sem despertar a ira sindical.
É facilmente compreensível ainda as razões de o Grande ABC se tornar alvo preferencial do corte de despesas por meio de programas que devem ser interpretados como eufemismo para demissões puras e simples. Conquistas trabalhistas nos tempos de mercado fechado transformaram os metalúrgicos da região na mão-de-obra mais cara do Brasil.
Dobro dos salários
Levantamento encomendado pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo ao Dieese (Departamento Sindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) mostra que a categoria ganha no Grande ABC quase o dobro da média nacional. Ótimo para os trabalhadores locais, mais valorizados, mas péssimo para as empresas, que driblam custos mais altos com deslocamentos estratégicos da produção para regiões mais novas e econômicas.
Além disso, as fábricas da região passam por lipoaspiração para se adequar à globalização, mas ainda convivem com gorduras inexistentes nas plantas mais recentes e modernas do País, que já nasceram enxutas para a batalha na arena mundial. As fábricas do Grande ABC são o lado mais fraco de corda que desfia no ritmo da valorização do real.
Xadrez global
Informações de executivo de primeiro escalão com atuação em uma das fábricas instaladas no Grande ABC — mas que prefere não se identificar — são altamente esclarecedoras. A fonte compara a disputa das montadoras pelos mais diversos mercados internacionais a um jogo de xadrez cujas peças ao redor do mundo são movimentadas única e exclusivamente segundo a vontade das matrizes. Os quartéis-generais da Volks na Alemanha e da Ford e General Motors nos Estados Unidos, por exemplo, são soberanos na definição do que as fábricas vão exportar e para onde, de modo que a suposta autonomia das subsidiárias brasileiras não passa de peça de ficção. “Nosso nível decisório aqui no Brasil é zero. Apenas reagimos a decisões tomadas de cima para baixo a partir das matrizes” — ressalta.
Reconhecer as subsidiárias brasileiras e de outros países em desenvolvimento como meros tentáculos operacionais de comandos emitidos por cérebros sediados em nações líderes equivale a ducha de água fria na auto-estima verde-amarela e, principalmente, sobre o Grande ABC. A região sempre inflou o próprio ego ao contrapor custos mais elevados e consequente deslocamento da produção com a argumentação de que — aconteça o que acontecer — jamais perderia o valioso status de centro nervoso das operações nacionais.
Pois as informações dão conta de que essa visão romanceada não passa de balela. O Grande ABC acolhe departamentos administrativos, de marketing e de desenvolvimento de logomarcas com fábricas espalhadas pelo Brasil, mas decisões estratégicas como iniciar ou suspender embarques para o país X, Y ou Z nem resvalam aqui.
Menor custo possível
Se no jogo do tabuleiro quadriculado a meta é colocar o rei adversário em perigo, no xadrez global da indústria automobilística a ordem é preencher a maior quantidade de mercados internacionais com veículos produzidos ao menor custo. A necessidade de ocupar posições é tão forte que conviver com margens negativas em exportações — como acontece atualmente no Brasil — é visto como parte indissociável do jogo. “É melhor levar prejuízo do que suspender embarques e abrir espaço para o avanço de concorrentes” — destaca a fonte, em convergência com Rogelio Golfarb, da Anfavea. “Além disso, exportações são imprescindíveis para diluir custos fixos de produção” — complementa.
Dólar a R$ 2,67 seria suficiente para o equilíbrio financeiro. Nesse patamar, montadoras não ganham, mas também não perdem com exportações. “A R$ 2,85 estaríamos estourando champanhe” — ressalta.
O segundo semestre será decisivo para duas plantas do Grande ABC. A Ford deve decidir se produzirá em São Bernardo o novo modelo compacto com o qual pretende ampliar participação no mercado doméstico. E a planta Anchieta da Volks deve dar início à montagem do Fox Europa, já a todo vapor na fábrica paranaense de São José dos Pinhais.
Se a Ford determinar a produção do carro compacto no Grande ABC, estará trafegando na contramão corporativa e setorial. Corporativa porque é flagrante a tendência de concentrar a produção de automóveis e comerciais leves no complexo baiano de Camaçari e manter na região o filão dos veículos pesados que embutem maior valor agregado. Setorial porque os últimos lançamentos na faixa dos automóveis mais simples e baratos migraram para outras regiões. A GM produz o Celta no Rio Grande do Sul e a Volks monta o Fox no Paraná.
A Ford, entretanto, conta com estímulo para estabelecer exceção à regra: poderá utilizar créditos de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) sobre exportações. Os créditos acumulados somam R$ 347,9 milhões. Já a vinda do Fox Europa para São Bernardo é líquida e certa. A questão é saber em qual proporção. Da planta paranaense de São José dos Pinhais já saíram mais de 25 mil unidades para o velho continente, sem falar no Fox para o mercado doméstico e no esportivo CrossFox.
Levando-se em conta a concentração da família Fox e da estamparia pesada que atende a linha na fábrica paranaense, não será estranho se a fábrica Anchieta se contentar com volume residual, e não majoritário, das 100 mil unidades/ano estimadas para o Fox Europa.
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