Notícia publicada no Financial Times é sintomática das dificuldades reservadas para o futuro das autopeças do Grande ABC caso lideranças públicas e privadas não se mexam para intervir no destino desenhado no Primeiro Mundo. Numa atitude surpreendente, montadoras dos Estados Unidos e da Ásia concordaram em absorver reajustes de preços da Collins & Aikman, um dos principais fornecedores da indústria automobilística, especializada em componentes acústicos e material para assoalhos.
A medida não é movida por generosidade ou espírito altruísta. O reajuste é uma das várias concessões que a concordatária Collins alega precisar para ganhar liquidez e não ser definitivamente engolida por dificuldades financeiras que provocariam prejuízos ainda maiores às montadoras. Para não perder os dedos, a indústria automobilística concedeu alguns anéis.
Ainda segundo o diário londrino, a Collins é uma das maiores companhias norte-americanas a pedir concordata este ano. Em documentos enviados à Justiça, alega que precisa de rápido cronograma para renegociar contratos nada lucrativos. O desfecho é surpreendente para a companhia cujos produtos estão em nove de cada 10 automóveis vendidos nos Estados Unidos, incluindo modelos da General Motors, Ford e Toyota.
Dependências demais
O que o drama da Collins e de outras gigantes de autopeças igualmente deficitárias nos Estados Unidos tem a ver com o futuro do Grande ABC? Tudo. A região que concentra 89 das 500 empresas associadas aos Sindipeças é extremamente dependente da economia sobre rodas, já que nunca desenvolveu matriz econômica alternativa às linhas de montagem. Encontra-se, portanto, perigosamente acomodada no epicentro de um furacão que causa estragos mundo afora e não poupa nem gigantes bem posicionados em mercados desenvolvidos.
O striptease financeiro da Collins na raia judicial deixa claro que a cadeia automotiva do Grande ABC ainda não atingiu o núcleo de rupturas da globalização. O passado recente marcado por fechamento, evasão e desnacionalização de autopeças, além de cortes drásticos de quadros funcionais redesenhados por tecnologias no chão-de-fábrica, está longe de encerrar o calvário do segmento estruturalmente complexo, espinhoso e imprevisível.
Por mais poderosas que sejam, as maiores sistemistas de autopeças estão atadas a montadoras protagonistas da luta autofágica em todo o planeta. Como a capacidade de produção de veículos é imensamente superior à demanda, instalou-se crise mundial pela inviabilidade de obter retorno de investimentos. É por essas e outras que a GM anunciou fechamento de cinco fábricas nos Estados Unidos nos próximos anos, que o controle acionário da Fiat migra da família Agnelli para bancos credores, e que o segmento mergulhará de vez em uma onda global de fusões e aquisições da qual não restarão mais que oito grupos produtores, na previsão da especialista Letícia Costa, da Booz Allen Hamilton.
Lições insuficientes
A tradução do canibalismo entre as montadoras para a linguagem das autopeças que sobressaem no Grande ABC é paradoxalmente dramática. Não será por falta de tecnologia, qualidade, eficiência e organização que muitas empresas deixarão de passar por turbulências gravíssimas. Mesmo tendo feito a lição de casa na escola da mundialização econômica, muitas companhias serão reprovadas em salubridade financeira porque estão imersas em segmento desestabilizador.
Essa realidade compõe uma das vigas-mestras editoriais de LiveMercado. Na edição de setembro de 2001 a revista estampou capa intitulada “Com a Corda no Pescoço”, na qual a Fris-Moldu-Car, de São Bernardo, foi apresentada como símbolo da complexidade do segmento escancarado à competitividade internacional. Fundada na década de 50, a fabricante de frisos de borracha entrou em parafuso com a mundialização sem salvaguardas e só não naufragou porque uma operação de resgate culminou com a venda para o grupo nacional CGE.
Mas nem todas as autopeças familiares dos primórdios automotivos tiveram a mesma sorte. O grande problema, ilustrado pela Collins norte-americana, é que a incapacidade de manter o balanço razoavelmente azulado atingiu o andar mais elevado do edifício que tem montadoras na cobertura, pequenas fabricantes de peças no subsolo e as chamadas sistemistas nos pavimentos intermediários.
No Brasil, nos Estados Unidos ou em qualquer parte do mundo, fornecedores funcionam como espécie de pára-raios das montadoras. A frustração diante da impossibilidade de vender quantidade maior de veículos — ou por preços mais vantajosos — é automaticamente transferida ao elo mais frágil da cadeia.
Como não conseguem melhorar resultados financeiros por meio de intervenções na ponta de consumo de baixíssima mobilidade social, as montadoras usam todo o poder de coerção para exigir dos fornecedores preços cada vez mais baixos. O que fazer, se investimentos pesados em máquinas e equipamentos foram sacramentados com base na expectativa do retorno?
Consuma-se, então, um estupro financeiro silencioso e consentido que se torna de domínio público e irrestrito quando o balanço financeiro denuncia que a vítima foi por demais maltratada e corre risco de desaparecer — como a Collins nos Estados Unidos.
A norte-americana Delphi, com sede brasileira em São Caetano, é outra gigante que passa por sérias dificuldades financeiras nos Estados Unidos. Tanto que a General Motors e a central sindical United Auto Workers estão dispostos a ajudar a companhia a escapar da falência, também de acordo com o Financial Times.
Abrindo os olhos
A imagem agressiva do estupro financeiro é proposital para que lideranças públicas e privadas do Grande ABC abram bem os olhos para enxergar as dificuldades e, quem sabe, resolvam finalmente recorrer aos serviços de uma consultoria de competitividade que aponte possíveis caminhos alternativos para a economia regional.
O caso Collins é apenas o fundo de um poço no qual muitas autopeças do Grande ABC já estão metidas. Basta conquistar a confiança de empresários do setor para ouvir histórias emblemáticas de asfixia financeira e subordinação incondicional a que são submetidos. Um interlocutor lembra que as montadoras são implacáveis e se utilizam de leilões reversos nas negociações: estipulam quanto estão dispostas a pagar por determinada peça e o fornecedor que se vire para conciliar economia, qualidade e prazo de entrega. E se o fornecedor bater o pé e não aceitar? “Está automaticamente fora. Há muitos concorrentes dispostos a pegar o pedido” — comenta.
Corrupção
Causa estranheza, entretanto, que algumas montadoras se mostrem tão implacáveis nas negociações de preço ao mesmo tempo em que dão guarida a verdadeiros buracos negros de ineficiência, má conduta e corrupção.
Outro empresário protegido pelo anonimato conta que só conseguia ganhar contratos de suprimento se agradasse o comprador com recompensas materiais, cujos custos automaticamente agregavam-se aos preços pagos pela montadora. “Conheci muitos compradores de montadoras que ganhavam salário modesto, mas tinham vários imóveis e carrões importados. Como seria possível?” — questiona um empresário, ao afirmar que a corrupção era muito mais frequente antes da abertura econômica, mas está longe de ser peça de museu.
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