O Grande ABC duramente bombardeado nos anos 1990 provavelmente está sentindo inveja do poder dos milionários brasileiros, clientes preferenciais da Daslu, megacentro de vaidades de 1% da população detentora de 50% da renda nacional. Ou mesmo de agricultores, estes sim produtivos, que invadiram no final de junho a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, e irritaram o presidente Lula da Silva porque se excederam ao ocupar o espaço público com tratores, colheitadeiras e outras ferramentas de trabalho.
O fio condutor da reação de clientes da Daslu e dos agricultores está na cultura nacional: o lobby para fazer valer interesses específicos, às vezes privilégios que se confundem com direitos. Algo que o Grande ABC gataborralheiresco jamais conseguiu porque suas instituições não se articulam à altura dos problemas que se acentuam para 2,5 milhões de habitantes que assistiram passivamente a perda de 39% do PIB industrial nos oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso.
É claro que há diferença ética e moral profunda entre a mobilização do chamado tratoraço de 15 mil produtores rurais desesperados com a valorização da taxa de câmbio e a impossibilidade de acesso às linhas de financiamento previstas no Plano de Safra e a reação de clientes preferenciais da Daslu contra a operação do governo que juntou uma força-tarefa formada por Polícia Federal, Ministério Público e Receita Federal.
Distinções brasileiras
A distinção entre iniciativas próximas no tempo e distantes na essência separa o Brasil que produz do Brasil insensível e gastador. Entretanto, a mensagem que o Grande ABC poderia assimilar nestes tempos em que tem um ex-operário local como presidente da República parece simbólica: trate de sair da pasmaceira institucional em que se encontra para reagir organizadamente na recuperação de parte das perdas acumuladas.
Nos oito tenebrosos anos do governo FHC a política econômica de escancaramento do mercado nacional, de juros estratosféricos, de aumento cavalar da carga tributária e de artificialização da moeda nacional, tudo combinado com guerra fiscal fratricida transformou o Grande ABC em espécie de Hiroshima e Nagasaki econômica.
Cantado em prosa e verso como centro catalisador do despertar democrático do País, na esteira do movimento sindical do final dos anos 70, o Grande ABC cultua provincianismo institucional que explica o esquecimento a que se submeteu ao longo de gestores do governo federal e do estadual. A imagem de região politicamente avançada, que sabe o que quer, não condiz com o desconhecimento da força da cidadania que, entrecruzada, se transforma em capital social.
O movimento sindical foi uma ação corporativa legítima, embora exagerada, em oposição a um capitalismo que necessitava de oxigenação na relação com o trabalho. O erro da região foi acreditar que o que se passou no chão de fábrica e que ganhava as ruas em manifestos para esticar a visibilidade de interesses trabalhistas se traduziria em maturidade política e em ganhos para o conjunto da população.
Diadema é exceção
Tanto é verdade que, exceto em Diadema, canto de fato engajado politicamente no sentido mais amplo do termo depois de duas décadas de controle centro-esquerdista, o restante da geografia regional é cópia do modelo social urbano do País. Celso Daniel só se elegeu três vezes em Santo André porque os conservadores o viam como filho de classe média. O sindicalista José Cicotte tentou sucedê-lo em 1992 e se deu mal diante do populista Newton Brandão. E o PT de São Bernardo só conheceu vitória uma única vez desde que Lula da Silva entoou a primeira frase de greve geral à frente do Sindicato dos Metalúrgicos.
Os exemplos são emblemáticos: os conservadores de Santo André engoliram Celso Daniel por causa da patente familiar e os esquerdistas de São Bernardo não souberam ocupar o espaço democraticamente conquistado porque se excederam em políticas socialistas.
A Operação Daslu, como poderia ser catalogada a patética arremetida liderada pela Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) mostra a seletividade de uma instituição que pressupostamente deveria zelar pela saúde do empresariado industrial paulista de todos os tamanhos. Nem mesmo o fato de o documento “Movimento pela Legalidade, contra o Arbítrio e a Corrupção” deixar de fazer menção ao templo de consumo dos milionários salvou a pele do presidente Paulo Skaf e de mais de três dezenas de comandantes de instituições que integraram o evento na sede da Fiesp.
Retirada da Daslu
A menção direta à Daslu, motivo principal do encontro, só foi retirada do manifesto depois de duas horas de discussões, conforme noticiou o jornal Folha de S. Paulo. Emerson Kapaz, do Instituto de Defesa pela Ética, salvou providencialmente a Fiesp, a OAB e outras entidades de escorregadela mais vexatória.
O que levou a Fiesp e as demais organizações a repensarem o tom específico de reprovação de métodos supostamente espetaculares da Polícia Federal, do Ministério Público e da Receita Federal na pilhagem de irregularidades fiscais na Daslu foram evidências relatadas pela Imprensa. Afinal, Eliana Tranchesi virou trocadilho nada lisonjeiro de colunistas que não perdem oportunidade para divertirem leitores com sarcasmo típico de Casseta & Planeta.
O caso Daslu tem parentesco siamês com a operação que atingiu a Cervejaria Schinchariol, outro alvo da ofensiva da Fiesp. E também com medida desencadeada duas semanas depois, quando 24 pessoas, entre advogados e empresários, a maioria de São Paulo, foram presas pela Polícia Federal após buscas e apreensões em cinco escritórios de advocacia para investigar esquemas de sonegação, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Os aparatos também contaram com servidores do Ministério Público e da Receita Federal.
O que esses acontecimentos na esteira das denúncias do mensalão mostraram para o Grande ABC é que já se esgotou a tática de as entidades supostamente integracionistas como Consórcio de Prefeitos, Agência de Desenvolvimento Econômico, Câmara Regional, e também as instituições que representam o capital, repassarem olimpicamente a responsabilidade de reagir contra os efeitos do esvaziamento industrial.
É preciso colocar na alça de mira tanto o descaso do governo estadual como o desinteresse do governo federal. Afinal, o Grande ABC exige investimentos para reformatar o parque produtivo e para amenizar as agruras sociais. Mas tanto uma ação como outra não saltará da teoria para a prática sem inspirar-se no tratoraço explícito ou no disfarce lobista dasluniano. Como se o MST já não bastasse.
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