Economia

Periferia é meca
de bons negócios

WALTER VENTURINI - 05/11/2005

Mercado potencial aguarda empreendedores na periferia do Grande ABC. O anúncio não existe, mas a possibilidade já está sendo trabalhada pela Rede de Economia Solidária Alternativa, formada há pouco mais de um ano em São Bernardo e que reúne empreendimentos como padarias, distribuidoras de água, bazares e oficinas mecânicas. O grupo desenvolve ações de associativismo nos moldes dos pólos de micro e pequenas empresas que são referência na economia italiana. O resultado começa a aparecer com a geração de postos de trabalho e realização de experiências como a troca de produtos e serviços entre os associados sem o uso de dinheiro.

São cerca de 110 mil pessoas distribuídas em 15 bairros carentes da periferia de São Bernardo, onde um dos mais graves problemas é o desemprego. A parceria inédita envolve Igreja Católica, Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), empresas brasileiras e cooperativas e entidades italianas.

O produto é uma espécie de agência de desenvolvimento que incentiva o empreendedorismo voltado ao mercado de menor poder aquisitivo. Com carteira assinada cada vez mais rara, a alternativa foi fomentar micro e pequenos empresários em bairros como a favela do Oleoduto, Jardim Silvina, Golden Park e outros onde faltam trabalho e capital e sobram pobreza e violência. 

Cadeia de negócios 

A rede conta com cursos profissionalizantes e de empreendedorismo, além de consultorias e microcrédito — ou seja, toda a cadeia de formação de negócios.

Criada em janeiro de 2004, a Rede de Economia Solidária Alternativa reúne 37 empreendimentos formais e informais como padarias, confecções, bazares, gráfica, bares e mercadinhos, além de prestadores de serviço, oficinas de reciclagem e até uma cooperativa de construção civil. No primeiro semestre deste ano, registrou faturamento de R$ 1,3 milhão, que corresponde à movimentação de uma média empresa, além de garantir 90 postos de trabalho. 

Há sete anos o padre missionário italiano Léo Comissari começou a desenvolver ações contra o desemprego na favela do Oleoduto ao criar uma escola profissionalizante com o apoio do Senai. “Desde aquela época, a ação do padre Léo visava criar alternativas para o desemprego. Ele percebia que os alunos saiam dos cursos mas não conseguiam encontrar emprego com carteira assinada” — lembra Airton Galdino de Almeida, administrador do Centro Profissionalizante Padre Léo Comissari. 

Escola e assassinato 

A percepção do religioso e do grupo que o acompanhava no trabalho social era de que o resultado de um curso profissionalizante significava quase nada diante da crise que atingia o Grande ABC e que se manifestava principalmente pelo processo de desindustrialização. No mesmo ano de criação da escola, padre Léo foi assassinado por marginais envolvidos com o tráfico de drogas. Não viveu para ver a rede de associativismo para atender população carente com a qual convivia.

Se a dedicação do missionário era voltada aos mais necessitados, o mercado dos 15 bairros da periferia de São Bernardo apresentava potencial que ia muito além da caridade e da ação social. “Na periferia já existe um mercado latente. Mesmo com baixo poder de compra, as pessoas consomem. Para esse mercado, a Rede Solidária tem trabalho muito interessante” — afirma a gerente do Escritório Regional do Sebrae de São Bernardo, Silvana Pompermayer. 

Estudo da Latin Panel, empresa de pesquisa de mercado de alcance mundial, indica que no Brasil as chamadas classes C, D e E representam 77% da população e ainda estão relegadas a segundo plano pelos grandes grupos econômicos. São poucas as exceções — como as Casas Bahia, que se transformou em grande rede de magazines populares focando o mercado de baixo poder aquisitivo. 

Maioria renegada 

Trata-se de um filão que representa nada menos que 77% da população domiciliar brasileira e 79% do consumo de bens não duráveis. O mesmo estudo da Latin Panel indica que se trata de consumidores que, desde o ano passado, passaram a consumir produtos como leite condensado, salgadinho, cerveja e maionese.

Incentivar cadeias de micro e pequenas empresas com políticas de associativismo não é idéia recente. 

Com a economia devastada pela 2ª Guerra Mundial, a Itália construiu eficiente rede de pequenos negócios e cooperativas que serviu de base para a estrutura econômica do norte do país, justamente o mais industrializado. Foi dessa região que veio o principal apoio para a formação da Rede de Economia Solidária Alternativa. 

Primeiro com o aporte financeiro da Sacmi, cooperativa de bens de produção da região de Ímola, para a construção do prédio da escola profissionalizante. A Sacmi cresceu a ponto de realizar investimentos fora da Itália, inclusive no Brasil. “Lá é uma cooperativa, mas aqui é multinacional” — comenta a advogada italiana Mariela Tamburrelli, que dá assessoria na formação da rede. Cooperativas, comitês de ajuda social e entidades ligadas à Igreja Católica da região de Ímola são parceiros da Rede de Economia Solidária Alternativa. 

Cooperativismo dissecado 

O administrador do Centro Profissionalizante Padre Léo Comissari, Airton Galdino de Almeida, passou três anos em Ímola estudando cooperativismo. São parcerias como essa que permitem que um curso de Qualidade Máxima, ministrado pelo Sebrae ao custo de R$ 270,00, seja oferecido pela rede a R$ 5,00. 

A Rede de Economia Solidária Alternativa desenvolve duas linhas de ação entre os empreendedores da periferia. Uma é a formação de grupos de compras, para se obter ganho na negociação junto a fornecedores. Outra iniciativa é o consumo e a prestação de serviços entre os membros da rede. Uma distribuidora de água que faz parte da rede vai procurar uma gráfica que integra o grupo para produzir panfletos. 

Caso da Autopeças Rica, no Jardim Silvina: desde que passou a integrar a rede, registrou aumento de 10% no faturamento, principalmente por ser procurada pelos associados. “Passei a ter muitas indicações da rede” — garante o proprietário da loja, Aristóteles Marcos da Silva, há 10 anos no mercado e que conta com ajuda do filho de 16 anos e de um funcionário que estudou no Centro Padre Léo. 

Planejamento financeiro

O maior ganho de Aristóteles, eletricista de formação, foi ampliar e sofisticar a arte do gerenciamento. Sempre às voltas com pagamentos de promissórias, aluguel do prédio da loja e da própria residência, o comerciante descobriu as vantagens do planejamento financeiro com cursos como fluxo de caixa ministrados pelo Sebrae. “Descobri que podia aplicar 10% do capital de giro. Ao me organizar, saí do vermelho no banco, expandi minha loja e consegui financiar um apartamento para morar” — conta Aristóteles que, como seu xará grego, fez de operações numéricas a chave para conquistas.

Aristóteles não precisou recorrer ao microcrédito que a rede disponibiliza em parceria com o Banco do Povo — Crédito Solidário. Mas Valquíria Soares Cardoso Tibúrcio não dispensou o recurso e fez três financiamentos. O primeiro, de R$ 500, em abril de 2004, foi para montar loja de cestas de café da manhã e presentes, na favela do Oleoduto, às vésperas do Dia das Mães. “Consegui lucro e investi para o Dia dos Namorados” — conta Valquíria, já no terceiro empréstimo, de R$ 3 mil. 

Em pouco mais de um ano, a microempresária conseguiu transferir a loja para a entrada da favela, um ponto privilegiado. De quebra construiu casa própria na parte de cima do imóvel. Com uma funcionária para ajudá-la, a comerciante pretende implantar até o final do ano uma máquina para cartões eletrônicos e colocar um toldo na frente da loja.

Fogão industrial 

Maria de Lourdes Machado de Almeida também teve de recorrer ao microcrédito para entrar de vez no negócio de alimentação. Há 15 anos servindo marmita no Golden Park, a microempresária recorreu ao Banco do Povo para comprar fogão industrial e máquina de assar frangos. Seu maior projeto vai virar realidade até o final do ano, quando transformará a garagem de casa em pequeno restaurante para atender principalmente pedreiros e motoristas de caminhão. Dona Lourdes pretende esticar o que já faz com relativo sucesso nos dias úteis: vender feijoada aos sábados e frangos e costela assada aos domingos.

Crédito Solidário, uma Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) recebeu aporte financeiro de entidades italianas como Sacmi para poder financiar empreendimentos da rede. Até agora, foram realizados 96 empréstimos, num total de R$ 183 mil. Consultores do Sebrae e monitores da Rede de Economia Solidária Alternativa acompanham os empreendimentos, que contam com planos de negócios.

Esse é o primeiro projeto do Sebrae com a tipologia de desenvolvimento econômico voltada para áreas carentes. “O Sebrae passou a atingir um público que antes não tinha contato” — explica Jairo José de Oliveira, um dos coordenadores da rede. “Foi interessante porque nos trouxe experiência que não tínhamos” — confirma Silvana Pompermayer, gerente do Sebrae. 

Cerca de 22% dos empreendimentos associados à rede estão na formalidade. Por volta de 60% dos empreendedores são mulheres. O projeto associativista que está sendo criado em São Bernardo conta com pouco apoio oficial. “No plano municipal e regional, a gente não conseguiu nada” — reclama a advogada Mariela Tamburrelli.

Para superar a falta de apoio e mesmo de capital, a rede pretende adotar neste semestre a experiência do clube de trocas, onde os participantes atuam diretamente sem o recurso do papel moeda. “Com isso, eliminamos uma burocracia tremenda e nos livramos do financiamento de bancos” — garante Mariela, que ajuda a rede a implantar a modalidade. 

O clube de troca já funciona em bairros carentes de São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Florianópolis e Porto Alegre. Na Argentina, o primeiro clube de trocas foi criado em 1995. Hoje a experiência envolve cerca de 500 mil argentinos e movimenta aproximadamente US$ 4 bilhões por ano. Na França, o Clube de Trocas foi criado em 1994 e conta com mais de 60 mil pessoas. “O clube de troca tem a vantagem de não utilizar capital de giro, o que interessa bastante para o grupo de empreendedores de São Bernardo” — afirma Silvana Pompermayer, do Sebrae.

Outra iniciativa que está começando é a adoção do Selo de Economia Solidária e Ambiental, que certifica negócios da rede que respeitam valores éticos, associativistas e ambientais, além de garantias mínimas de qualidade. Oficinas e padarias que integram o grupo passam por fiscalização para não descartar resíduos líquidos que possam contaminar o meio ambiente. Com isso, a idéia é garantir fidelização de clientes da própria comunidade ou não. 

A venda de produtos com selo social e ambiental para o consumidor de médio e alto padrão aquisitivo ainda não está sendo tentada, mas a Rede de Economia Solidária Alternativa já realizou duas vendas pontuais de artesanato em papel para os Estados Unidos e a Itália.



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