Economia

Miopia ideológica explica
"utopia do livre mercado"

ANDRE MARCEL DE LIMA - 20/02/2017

Em recente entrevista ao Valor Econômico, o economista norueguês Erik Reinert propôs espécie de epílogo ao “Fim da História”, expressão cunhada pelo pensador Francis Fukuyama para caracterizar o triunfo da economia de mercado e da democracia participativa após séculos de experimentos malfadados como o feudalismo e o socialismo/comunismo. Isso logo após a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o término da Guerra Fria.

De acordo com o professor da Universidade de Tallin, na Estônia, e PhD pela Cornell University dos Estados Unidos, o ano de 2016 teria marcado o que ele considera “uma ruptura importante com a utopia do livre mercado”, por conta do Brexit (referendo que sacramentou a saída do Reino Unido da União Europeia) e do discurso vitorioso de Donald Trump embalado por viés protecionista.

“Eu saúdo a mudança como um alerta ideológico necessário” – destacou Erik Reinert ao principal veículo impresso de economia e negócios do Brasil. As suas credenciais incluem a presidência da Fundação The Other Canon (O Outro Cânone) e autoria do livro “Porque os Países Ricos Ficaram Ricos e Porque os Países Pobres Continuam Pobres”, lançado no Brasil pela Editora Contraponto e pelo Centro Internacional Celso Furtado de Políticas Públicas.  

Cuidado, frágil

O acadêmico norueguês comete falha grave ao propor ideia tão ousada – “a ruptura da utopia livre mercado” – com base em argumentos tão frágeis. O Brexit pode ter significado muita coisa, menos uma rejeição do Reino Unido (formado por Inglaterra, Escócia, Irlanda do Norte e País de Gales) ao livre fluxo de bens e serviços entre os países europeus. Pelo contrário: o retrocesso no livre comércio entre o Reino Unido e as demais nações do Velho Continente é visto por todos como efeito colateral do novo posicionamento motivado por dois fatores particularmente incômodos: a política migratória da União Europeia e a custosa burocracia supranacional exercida pela entidade sediada em Bruxelas, na Bélgica.

Em linguagem direta, os motivos que levaram os britânicos a optar pela saída do bloco -- por estreitíssima margem de votos -- foram o desconforto com o fluxo migratório crescente dos chamados asylum seekers (caçadores de asilo), e os custos de manutenção da engrenagem burocrática da instituição cujas origens remontam ao final da Segunda Guerra Mundial.

Ao votar pelo “leave” (deixar a UE), os britânicos se insurgiram contra a média de 500 novos imigrantes que diariamente aportavam em seu território e esboçaram movimento de reação ao que interpretam como perda de soberania. Tomaram a decisão apesar -- ou seria melhor dizer sem se dar conta -- das perdas com o livre comércio, e não por causa do livre comércio, como o acadêmico norueguês erroneamente vê.

O melhor dos mundos para os britânicos seria poder arbitrar a própria política migratória, recuperar a soberania longe das amarras de Bruxelas, continuar viajando livremente para os países vizinhos sem a necessidade de visto de entrada e, naturalmente, continuar se beneficiando das trocas comerciais consagradas pelos cânones liberais do bloco econômico. Mas recentes ataques terroristas na Europa potencializaram o apelo pela segurança dos moradores e o voto emocional no “leave” colocou conquistas históricas do liberalismo econômico a perder.

Sugerir que o livre comércio representa o bode na sala do Brexit expressa o que por estes trópicos convencionou-se condensar com a expressão desonestidade intelectual. Veículos como The Guardian e The Economist discordam apenas em relação ao tamanho das perdas financeiras e das baixas de empregos deflagradas pela saída de uma ilha geográfica totalmente integrada do ponto de vista econômico. Nada menos que 45% das exportações do Reino Unido têm como destino os (ex) parceiros europeus, percentual que atinge 53% em relação às importações.

O intempestivo “leave” deixou as autoridades do Reino Unido com uma batata quente nas mãos: precisam operacionalizar a retirada do bloco ao mesmo tempo em que negociam mecanismos que permitam reduzir inevitáveis estragos em renda, empregos e impostos. 

Produtividade 

O discurso protecionista de Donald Trump -- a outra perna a conduzir o corpo teórico trôpego de suposta “ruptura da utopia do livre mercado” – está igualmente muito longe de representar aquilo que os ideólogos de esquerda mais gostariam: um sinal de exaustão do livre comércio no panorama praticamente hegemônico do capitalismo. É fácil entender a razão: por mais que Trump logre êxito em evitar que montadoras deixem o território norte-americano para se instalar no México ou em qualquer outra região onde os custos de produção sejam mais baixos, por meio do aumento do imposto de exportação aos Estados Unidos, por exemplo, tais manobras serão sempre temporárias e só se sustentarão enquanto a produtividade americana compensar a manufatura com custos mais elevados.

Como tal condição não deve se estender por muito tempo num segmento em que a competitividade mundial é voraz, é bem provável que, num futuro não muito distante, tal manobra protecionista seja aniquilada justamente sob os auspícios do livre mercado: ao se tornarem comparativamente ineficientes ou pouco competitivas no próprio território, montadoras americanas perderão espaço para concorrentes asiáticas e europeias mais enxutas e talhadas em ambientes mais competitivos.

Obviamente consumidores americanos não aceitarão pagar mais caro por carros piores, apenas porque um governo protecionista resolve sobretaxar importações sobre pretexto de proteger a indústria nacional. O livre comércio e sua implacável mão invisível a alocar recursos humanos e materiais da forma mais eficiente possível, como descrito por Adam Smith, tornou-se uma instituição autônoma que nenhum mandatário seria capaz de revogar de forma definitiva.  

Da mesma forma que a democracia pode ser a pior forma de organização social, desde que se excetue todas as outras, o livre comércio pode ser o modelo de trocas comerciais mais criticado, desde que não seja comparado ao sistema de produção planejado estatal dos países socialistas e comunistas varridos pela história devido justamente à notória ineficiência. É preciso muito mais que malabarismos ideológicos desprovidos de lógica, bom senso e zelo por fatos recentes ou passados para quem deseja ousar revogar o que a queda do Muro de Berlim e o término da Guerra Fria de fato representaram: o fim da busca pelos sistemas mais evoluídos para lidar com duas das necessidades humanas mais importantes: de representação política e de atendimento às necessidades materiais. Se reinventar a roda é ruim, pretender desclassifica-la é pior. 



Leia mais matérias desta seção: Economia

Total de 1894 matérias | Página 1

21/11/2024 QUARTO PIB DA METRÓPOLE?
12/11/2024 SETE CIDADES E SETE SOLUÇÕES
07/11/2024 Marcelo Lima e Trump estão muito distantes
01/11/2024 Eletrificação vai mesmo eletrocutar o Grande ABC
17/09/2024 Sorocaba lidera RCI, São Caetano é ultima
12/09/2024 Vejam só: sindicalistas agora são conselheiros
09/09/2024 Grande ABC vai mal no Ranking Industrial
08/08/2024 Festejemos mais veículos vendidos?
30/07/2024 Dib surfa, Marinho pena e Morando inicia reação
18/07/2024 Mais uma voz contra desindustrialização
01/07/2024 Região perde R$ 1,44 bi de ICMS pós-Plano Real
21/06/2024 PIB de Consumo desaba nas últimas três décadas
01/05/2024 Primeiro de Maio para ser esquecido
23/04/2024 Competitividade da região vai muito além da região
16/04/2024 Entre o céu planejado e o inferno improvisado
15/04/2024 Desindustrialização e mercado imobiliário
26/03/2024 Região não é a China que possa interessar à China
21/03/2024 São Bernardo perde mais que Santo André
19/03/2024 Ainda bem que o Brasil não foi criado em 2000