Como administrar um mundo em que a maior parte dos empregos atualmente existentes deverá evaporar em consequência de avanços tecnológicos proporcionados pela Inteligência Artificial? Como assegurar o mínimo de equilíbrio socioeconômico em nível global num cenário em que o ser humano se tornará peça dispensável para a produção de bens e serviços, de forma inédita na história? Como fazer com que a busca constante pela produtividade, de tantos benefícios engendrados especialmente desde a Revolução Industrial, não termine por marginalizar parcela expressiva da humanidade, tornando-a descartável?
Essas questões aparecem tão rapidamente quanto resultados pesquisados em um motor de busca para quem se debruça sobre Rise of Robots: Technology and the Threat of Jobless Future (Ascensão dos Robôs: Tecnologia e Ameaça de um Futuro sem Emprego), best-seller do norte-americano Martin Ford.
O assunto não é novo nem seus efeitos inéditos. Há até quem considere que a insatisfação de parcelas populacionais expressivas responsável pela condução de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos e pelo Brexit no Reino Unido tenha como um dos principais componentes justamente os efeitos excludentes que a tecnologia digital já opera no mercado de trabalho global, embora esse fator esteja escamoteado em causas mais facilmente identificáveis, como imigração e exportação de empregos no panorama da globalização.
Entretanto, tudo o que já se viu até agora em termos de substituição do homem por máquinas e softwares representa café pequeno diante das projeções para um futuro mais que próximo, já à porta. E este é o dado coletivamente preocupante que transforma a obra de Martin Ford em peça de estudo obrigatório.
Impactos monumentais
A afirmação se justifica em informação embasada em Rise of Robots: entre 30% e 60% dos empregos deixarão de existir em apenas 20 anos, dependendo do estágio produtivo de cada país. Para os Estados Unidos, a estimativa consubstanciada em estudos da Universidade de Oxford é de que 50% dos postos de trabalho serão ceifados num horizonte mais curto que o de uma geração.
“Máquinas, robôs e algoritmos vão absorver cada vez mais trabalhos na economia e passarão a fazer muito do que as pessoas agora fazem. Mudanças estruturais decorrentes deste fenômeno deverão colocar pressão sem precedentes sobre as sociedades. É difícil imaginar algo que terá tanto impacto nos próximos anos” – observa Martin Ford.
Existem dois fatores que dão ares especificamente preocupantes à onda tecnológica agora em curso e com ápice de rebentação previsto para daqui duas décadas. Em primeiro lugar desponta o fato de que praticamente inexistem especialidades imunes à automação – o que significa que a onda deverá engolir a todos, sem distinção de conhecimento acadêmico ou nível profissional. Além disso, a onda é abrangente e avança sobre todos os setores econômicos ao mesmo tempo, sem que existam ilhas naturais de escape como ocorreu com as mudanças da Revolução Industrial.
Fim de migrações
A ideia da tecnologia como usurpadora de empregos humanos paira há pelo menos 200 anos, mas o que se vê desde o advento das primeiras fábricas têxteis na Inglaterra é a prevalência de um mecanismo de compensação: empregos dinamitados em decorrência de uma determinada inovação sempre foram criados em outro setor ou ramo de atividade. O ponto nevrálgico para Martin Ford, entretanto, é que, dadas as características sem precedentes do fenômeno atual, desta vez é diferente. Empregos absorvidos por algoritmos, softwares e mecanismos de automação estão muito longe de serem recriados.
“Os céticos citam que os empregos sempre migraram entre setores na economia: foram concentrados na indústria a partir da mecanização da agricultura e passaram para o segmento de serviços após a automação da manufatura. Mas desta vez o sentido é outro: todos os setores econômicos são afetados ao mesmo tempo. Além disso, é preciso levar em consideração que a natureza fundamental do trabalho não mudou muito ao longo da história. O trabalho permaneceu relativamente rotineiro e repetitivo, primeiro nas fazendas, depois nas fábricas e posteriormente nos serviços” – observa Martin Ford.
É justamente essa natureza até então intocável que passa a ser colocada em xeque, ou xeque-mate, sob os auspícios da Inteligência Artificial. Em se tratando de tarefas já no tempo presente e ainda mais no futuro próximo, tudo o que é previsível se desmancha no ar. O adjetivo previsível, no caso, é muito mais complexo e abrangente que o predicado “repetitivo”, o qual deu o tom da robotização das linhas de montagem no século passado.
“Se um trabalho é fundamentalmente marcado por uma rotina, significa que está altamente suscetível à automação. Mas o conceito vai muito além de tarefas repetitivas numa linha de montagem. Já estamos muito além desse ponto. Em vez de rotina, a palavra que melhor define as funções suscetíveis à automação é previsibilidade, isto é, se o tipo de tarefa que você faz pode ser previsível com base no que já foi feito no passado. Se uma pessoa observadora pode aprender o trabalho em questão, quanto mais máquinas inteligentes dotadas de algoritmos com dados e registros detalhados” -- explica Ford, ao expressar na prática o machine learning, conceito que abrange softwares e mecanismos capazes de “aprender”, ou assimilar rotinas por meio de análises de dados.
“Se você for um Michelangelo, que cria algo novo a todo tempo, pelo menos em relação ao futuro próximo seu emprego estará relativamente salvo. Mas o número de pessoas pagas para fazer esses trabalhos altamente criativos representa uma pequena fração da população economicamente ativa” – considera.
Blockbuster versus Netflix
Há quem defenda que os setores e serviços que surgirão nos próximos anos em função das próprias tecnologias ceifadoras de empregos contribuirão de forma satisfatória para equilibrar a geração de vagas. Visão tecno-otimista que não faz a cabeça de Martin Ford. “Nanotecnologia, biologia sintética e realidade virtual serão setores importantes no futuro, mas não são intensivos em mão-de-obra” – destaca.
Exemplo da nova configuração da força laboral à luz da tecnologia e seus desdobramentos: em 2004 a rede Blockbuster tinha 84 mil funcionários e faturamento de US$ 6 bilhões de dólares. Em 2016, a Netflix – que praticamente aposentou o negócio de locação de filmes ao investir maciçamente em streaming (veiculação via internet) -- faturou US$ 9 bilhões com 4,5 mil empregados.
A visão tradicional segundo a qual a tecnologia – simbolizada em robôs -- substitui prioritariamente trabalhadores pouco qualificados é tão obsoleta quanto o controlador de voo, o intermediador de ações em bolsa de valores e o especialista em diagnóstico de doenças que já perderam espaço para cérebros digitais.
“O que temos visto de forma clara é que muitos dos empregos considerados mais qualificados são na verdade tão ou mais fáceis de automatizar do que os menos qualificados. Aquele trabalho em que o sujeito se senta num cubículo em frente ao computador, lidando com algum tipo de tarefa ou analise repetitiva -- produzindo relatórios, por exemplo – está no início da fila da automação. Bastam softwares inteligentes para absorver e automatizar esses procedimentos. Nem é preciso de robôs ou braços mecânicos, que embutem o inconveniente de serem mais caros” – considera Martin Ford. Empregos de escritório típicos da classe média estariam, portanto, prioritariamente ameaçados.
Por outro lado, muitos empregos considerados de baixa qualificação estariam relativamente a salvo, por dependerem de percepção visual e destreza manual. “Construir um robô capaz de replicar o que um ser humano pode fazer em relação à complexidade de perceber todo um ambiente ainda está no reino da ficção científica” – considera Ford.
Alguns desses empregos são considerados bons, como os da área de enfermagem, nos quais se requer destreza, habilidade e alto nível de resolução de problemas. Mas outros estão longe de serem vistos como ideais de futuro no imaginário infantil, como cuidador domiciliar de idosos – uma função em demanda crescente por conta do aumento da expectativa de vida em praticamente todo o mundo. Está devidamente apresentado o paradoxo segundo o qual uma série de empregos de matiz intelectual são mais disponíveis para máquinas.
“A solução óbvia de mandar as pessoas de volta para a escola e dar-lhes mais treinamento não vai funcionar mais, uma vez que a questão não será galgar degraus na escada da qualificação para buscar empregos de cunho mais intelectual e nem mudar de posto da fábrica ou do estoque para o escritório” – analisa o especialista.
Efeitos socioeconômicos
Ford dedica-se não apenas a descrever a natureza e os efeitos do fenômeno, mas também a esboçar possível solução para os dilemas socioeconômicos dele decorrentes. De acordo com o autor, será preciso estabelecer alguma rede de proteção de caráter nacional e até internacional a fim de assegurar mínimo potencial de consumo aos que forem expulsos do mercado de trabalho.
Na hipótese de consenso entre lideres empresariais, sociais e governamentais, seria colocado em prática o primeiro sistema global de transferência de renda por obsolescência funcional da força de trabalho. E provavelmente a primeira vez, em termos históricos, que se dissociaria o trabalho do salário de uma forma ampla e generalizada. Um desafio comparável à descoberta do elixir da juventude.
“Se o alto desemprego tecnológico levar à erosão do mercado de consumo, que tem sido o motor da prosperidade desde a Segunda Guerra Mundial, existe o risco de a prosperidade ser ameaçada e o perigo de entrarmos numa espiral viciosa, no qual empresas cada vez mais cortam preços gerando deflação, algo que já acontece na Europa. Continuo acreditando no capitalismo, melhor do que qualquer outro sistema, mas os mercados não vão resolver essa questão. É preciso tomar decisões, pois esse dilema não vai se resolver de forma automática".
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