Economia

O passado
como inimigo

ANDRE MARCEL DE LIMA - 05/03/2003

A Volkswagen atravessa crise existencial sem precedentes neste mês em que comemora 50 anos de atividades no Brasil. A subsidiária da montadora alemã que por décadas dominou confortavelmente o mercado interno nunca teve sua fatia de mercado tão enfraquecida quanto nos últimos tempos. Depois de perder a liderança para a Fiat por dois anos consecutivos, em 2001 e 2002, a Volks ainda foi vista pelo retrovisor da General Motors, que ultrapassou a arqui-rival em dezembro e janeiro últimos. Além de ceder o primeiro lugar no pódio, a Volks Brasil deixou o posto de segunda operação internacional mais importante para a matriz, ultrapassada pela fábrica dos Estados Unidos em 2001.  

A derrocada da participação num mercado que insiste em patinar desde o recorde histórico de produção e vendas, em 1997, representa o sintoma de um emaranhado de paradigmas ultrapassados e impregnados no carma corporativo. A verdadeira raiz das turbulências remonta à dificuldade de fazer uma transição bem-sucedida entre o modelo de negócio reinante nos tempos de mercado fechado, protegido e oligopolizado, e um figurino que seja mais indicado para esses tempos de globalização e hipercompetitividade.  

“Precisamos tomar cuidado com a maldição do sucesso” — chegou a alertar em tom premonitório o austríaco Herbert Demel, ex-presidente substituído pelo engenheiro inglês Paul Fleming em outubro de 2002. Fleming assumiu o comando da Volks brasileira após resgatar de prejuízos recorrentes a subsidiária inglesa da Europcar, empresa de locação de veículos do Grupo Volkswagen. Resta saber se o executivo de 43 anos, que já atuou em montadoras como Rover e Jaguar, reunirá energia e vitalidade suficientes para reanimar a maior empresa privada brasileira.

Escolha explicada  

Analistas do setor automotivo atribuem a escolha de Paul Fleming à sua intimidade com o universo do marketing e das vendas. Dizem que ele se encaixa com perfeição às necessidades da subsidiária brasileira, que teria derrapado ao conferir muita ênfase à engenharia em detrimento das estratégias de comunicação, principalmente em relação à rede de concessionárias. Pode até ser parte da verdade, mas o fato é que o inferno astral da Volks tem raízes estruturais muito mais profundas. 

Durante a maior parte dos 50 anos em que atua no Brasil, a marca exerceu folgada liderança com base em circunstâncias e predicados que já não existem mais. O mercado era blindado à competitividade internacional com alíquotas altíssimas de importação. Além da ausência de ameaças externas, a quantidade diminuta de concorrentes no Brasil era um convite ao comodismo. Não havia grandes preocupações com eficiência, qualidade de mão-de-obra e redução de custos porque o isolamento econômico inviabilizava a importação de tecnologia e o ingresso de know-how na mesma proporção em que tornava as vendas praticamente automáticas num cenário em que os consumidores tinham poucas opções de escolha. 

É desse passado modorrento, porém cheio de boas recordações, que a Volkswagen precisa se desprender em busca de caminho alternativo. E não é nada fácil, porque a mudança precisa ser processada no terreno mais complexo e intrincado de qualquer grande empresa tradicional: a cultura corporativa. A Volks brasileira luta para abandonar vícios arraigados e para se adequar à competitividade deflagrada pela globalização. Morosidade, burocracia, super-estrutura, inflação de custos, distanciamento da rede de concessionários e uma série de pecados tolerados no passado de vacas gordas tornaram-se simplesmente letais em tempos de concorrência sem fronteiras e ocupação maciça por novas e antigas montadoras no Brasil. 

Longa caminhada  

A bilionária revolução física e tecnológica que proporcionou a vinda do modelo Polo para a fábrica Anchieta foi apenas o primeiro passo de uma caminhada que se exige muito mais longa. Diferentemente do carro mundial montado nas versões hatch e sedan, os demais modelos produzidos em São Bernardo estão na terceira idade. Casos da picape Saveiro, do Santana e do Gol, sem falar da veterana Kombi, que já tem 40 anos. A maior prova de que o mix da Volks sofre de obsolescência está no fato de o Gol, projeto brasileiro de 15 anos, ser responsável por 80% das vendas da marca no País. A Volks reconhece a vulnerabilidade do Gol e apressa a materialização do Tupi, como é conhecido o projeto do novo produto com que pretende explorar o segmento dos automóveis mais simples e acessíveis.  

Embora pertença à plataforma do Polo, o Tupi voltado ao mercado interno será produzido na fábrica paranaense de São José dos Pinhais — sindicalistas de São Bernardo reivindicam para a fábrica Anchieta a produção da versão voltada para o mercado externo. Certo mesmo é que, para voltar a ter um pouco do brilho perdido, a montadora precisa ampliar e muito o ritmo dos lançamentos, como faz a concorrência. 

Enquanto a General Motors pôs pelo menos quatro novidades no mercado no último ano, a Volks pouco se mexeu. Prova disso é que não oferece opção nacional nos segmentos de minivans e utilitários esportivos, que estão entre os que mais crescem no Brasil. GM e Renault disputam o mercado de minivans com Zafira e Scènic e a Ford prepara o lançamento do utilitário esportivo EcoSport, produzido na fábrica baiana de Camaçari. 

Fardo trabalhista

Além de renovar e ampliar o mix, a Volks precisa eliminar outra erva daninha crescida à sombra do então mercado farto. Trata-se do superdimensionamento e dos altos custos associados ao quadro de pessoal na fábrica Anchieta. Apesar de ter passado por dietas radicais — os atuais 16 mil funcionários representam apenas um terço do efetivo empregado no passado —, a Volks ainda carrega sobrepeso insustentável. 

Além de ter mais empregados do que o figurino enxuto dos novos concorrentes recomenda, os salários em São Bernardo representam pelo menos o dobro dos oferecidos pelas plantas instaladas fora do Estado de São Paulo. Para eliminar essa enorme desvantagem competitiva, sindicalistas do Grande ABC tentaram até instaurar — sem sucesso — espécie de piso salarial de amplitude nacional. 

O ex-diretor adjunto de Recursos Humanos Enrique Lozano tocou na ferida ao afirmar em entrevista a LivreMercado em 2001 que a diferença nos custos de mão-de-obra embutidos em um carro produzido em São Bernardo atingia R$ 1,3 mil em relação ao automóvel montado pela Fiat em Betim. E que a desvantagem seria ainda maior para a montadora do Grande ABC se a comparação fosse feita com plantas mais novas, como a da General Motors na gaúcha Gravataí.  

Mais recentemente, o ex-presidente Herbert Demel pôs mais lenha na fogueira ao dizer que a linha de montagem do Polo não demanda mais que seis mil funcionários em um cenário de operação a todo vapor, isto é, com a família de automóveis completa. 

Custos elevados  

O imbróglio trabalhista é provavelmente o que mais atrapalha a vida da Volks na medida em que corrói a plataforma da sustentabilidade financeira. Custos fixos elevados submetem a empresa a uma espiral descendente porque minam a rentabilidade, comprometem a capacidade de investimento e tornam vulnerável o relacionamento da subsidiária deficitária com a matriz. Por outro lado, não é fácil quebrar o ciclo vicioso porque demissões em massa despertam a agressividade de trabalhadores sindicalizados e levantam poeira de negativismo social prejudicial à imagem da marca. Por isso o lema é adotar PDV’s (Planos de Demissões Voluntárias), banco de horas e outros paliativos politicamente menos incorretos.  

O passivo trabalhista da Volks é o mais robusto entre as montadoras de automóveis do Grande ABC porque nenhuma outra está tão comprometida com a região berço da indústria automobilística brasileira. Com a criação de uma fábrica de motores em São Carlos, no Interior paulista, uma fábrica de caminhões em Resende, no Rio de Janeiro, e uma terceira planta de automóveis na paranaense São José dos Pinhais (a segunda fica em Taubaté, no Vale do Paraíba), a Volks também procurou seguir a cartilha da descentralização adotada por Ford e GM. Mas ainda continua — de longe — a montadora mais atrelada ao Grande ABC e a seus indesejáveis custos históricos, pois mantém na fábrica Anchieta quase 60% do total de 26 mil funcionários e a maior estrutura física de uma montadora na América do Sul. 



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