Economia

Metamorfose econômica (16)

DANIEL LIMA - 21/05/2009

Ninguém produziu ao longo dos tempos mais material do Rodoanel Mário Covas do que este jornalista. Especialmente sobre o trecho sul, em obras e com previsão de inauguração para este final de ano, a vantagem é maior ainda. Por isso fico muito à vontade para escrever alguns capítulos desta série tendo essa prevista serpentina viária de 170 quilômetros como parte importantíssima de análises.

Estou vasculhando meus arquivos para ir a fundo nas abordagens passadas de forma a ratificar o histórico da obra, em vez de oportunismo.

Sim, porque não faltarão os oportunistas da vez para destilar sapiência quando as baterias de fogos de artifícios forem acionadas para comemorar a finalização do trecho sul.

O Rodoanel é a noiva da vez no calendário político-eleitoral. A programação de inauguração está vinculadíssima à pré-temporada eleitoral. Não retiro dos políticos o direito de explorar eventos como esses, porque faz parte da natureza democrática aqui e em qualquer lugar do planeta. Minha preocupação com o Rodoanel é outra.

No livro “República Republiqueta”, que lancei em noite de autógrafos para 800 convidados em novembro de 2003, reproduzi um artigo que publiquei em 21 de novembro de 2002 na newsletter “Capital Social Online”. O título é autoexplicativo de minhas inquietações: 

 ”Vamos colocar a pauta do Rodoanel na área econômica?”

Lamentavelmente, por mais que tenha investido este jornalista neste assunto ao longo das temporadas, praticamente nada se realizou para o Grande ABC preparar-se com alguma arte e algum empenho à chegada do trecho sul do Rodoanel. Vivemos sob a inspiração do improviso, do salve-se-quem-puder.

Seleciono os trechos mais importantes daquela newsletter para levar aos leitores a absoluta fidelidade dos fatos que envolvem nosso cacife quando o Rodoanel surge em cena.

Sugiro que a leitura seja contextualizada àquele novembro de 2002 e projetada para estes dias. O que tivemos nesse período foi uma indigência completa no tratamento sugerido à chegada do Rodoanel. Nem mesmo o contínuo adiamento da obra, que chega com pelo menos uma década de atraso em relação ao cronograma inicial, desencadeou uma paradoxal vantagem para a economia do Grande ABC.

Afinal, nesse período, poderíamos ter nos preparado convenientemente para tornar o trecho sul do Rodoanel aliado garantidamente leal, em vez de roleta russa, porque, da mesma forma que poderá atrair investimentos pelas facilidades logísticas, recrudesce antigos ímpetos de evasão.

Agora, uma leitura atenta de um dos capítulos de “República Republiqueta”. Convenhamos que a denominação que escolhi para o livro encaixa-se perfeitamente nas realidades retratadas. O caso do Rodoanel é emblemático.

Vejam, portanto, vários dos parágrafos selecionados: 

 (…) O que pretendemos fazer do traçado do Rodoanel Sul como ferramenta de incremento econômico com amplas repercussões sociais?

 Trata-se simplificadamente do seguinte: agentes econômicos e sociais que estejam realmente preocupados com a prospecção de novas matrizes de desenvolvimento econômico sustentável da região têm de assumir a dianteira nos debates sobre o trecho sul que passará ao redor de alguns dos municípios da região (Ribeirão Pires, Mauá, Santo André, São Bernardo e Diadema), retirando dos ambientalistas o controle exclusivamente preservacionista da obra.

 Calma lá, senhores ambientalistas. Não estou aqui a desfraldar a bandeira da irresponsabilidade. Tanto não estou que destaco a importância do desenvolvimento econômico sustentável em todas as intervenções em busca de novos caminhos para o Grande ABC. Entretanto, defendo também que o debate não se limite a um megatratado ambientalista exacerbado, como já se observa aqui e ali.

 (…) Na geografia da região aparentemente não há empecilhos incontornáveis. Entretanto, exatamente porque as facções desenvolvimentistas não se mobilizam, os ambientalistas conseguiram sustar as audiências públicas programadas, inclusive em municípios do Grande ABC e, com isso, agigantam-se as probabilidades de o cronograma de obras fugir do acasalamento estratégico com que todo homem público sonha — ou seja, inaugurar esse novo trecho na boca das urnas eleitorais de 2006, quando uma nova chefia de governo estadual se disputará em São Paulo.

 (…) É uma boa notícia a afirmativa de José Carlos Paim, secretário-executivo da Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC. Ele dá conta de que será programado um evento multilateral para aquecer a fogueira da instalação desse temário acima de geleiras de defesas eventualmente conservadores do conceito de desenvolvimento econômico. Muito se fala e se escreve sobre o trecho do Rodoanel que poderá recolocar o Grande ABC na rota dos investimentos produtivos na Grande São Paulo, mas jamais se expôs a questão como neste Capital Social Online: precisamos saber o que queremos obter de possíveis vantagens estratégicas oferecidas pelo traçado que circundará o Grande ABC.

 (…) Alguns pressupostos precisam ser cautelarmente registrados e atacados, contando para tanto com uma força-tarefa necessariamente a ser liderada pelo governo do Estado, pelos chefes de Executivos e empreendedores da região.

 Talvez ainda não seja tarde, mas é indispensável que se elabore minucioso estudo sobre o perfil territorial, topográfico e de propriedade das vastas áreas que estarão próximas do trecho sul do Rodoanel. A especulação imobiliária poderá neutralizar a possibilidade de o Grande ABC expandir-se na direção de bordas opostas às da Capital tão vizinha e asfixiante, provavelmente com a inserção de novas configurações econômicas porque assim os mananciais tão próximos exigem.

 A prioridade de prestigiar pequenas e médias empresas não pode ser enterrada pela ausência de medidas preventivas.

 (…) A própria Fundação Vanzolini poderia ser chamada a contribuir com planejamento, estudos, propostas e projetos especificamente voltados ao trecho sul do Rodoanel. Afinal, como instituição integrada à ramificação da Universidade de São Paulo, a Fundação Vanzolini provavelmente poderia ter convocatória recomendada pelo governo do Estado. Basta vontade política para que os técnicos especializados nas mais diversas atividades se juntem aos agentes sociais, econômicos e políticos do Grande ABC para que se evite na alça sul do Rodoanel o mesmo desvario do trecho oeste já terminado: a completa ausência do Estado como agente organizador do espaço adjacente à serpentina asfáltica.

 Essa é a função, e, mais que isso, a vocação de um Estado minimamente competente. Deixar ao deus-dará a guerra santa pela disputa econômica de espaços especialmente estratégicos para a qualidade de vida e o equilíbrio socioeconômico da Grande São Paulo é muito mais que imprevidência — é o suprassumo da irresponsabilidade.

 Esperamos que as instituições regionais — sobretudo a Agência, a Câmara Regional e o Consórcio de Prefeitos — se mobilizem imediatamente para levar até o governo do Estado uma síntese com as principais âncoras de um planejamento de ocupação econômica e socialmente inteligente ao longo do Rodoanel.

 São essas e outras questões que, expostas, minimizam o escopo exclusivamente ambientalista com que tem sido tratado o Rodoanel sem, entretanto, reduzir a importância de impedir que predadores de plantão se locupletem.

 Mais caro que o preço da imprevidência ecológica é acrescentar a isso uma morfologia ocupacional em contraste com a potencialidade econômica que o traçado sul sugere.

Escreveremos ainda mais sobre o Rodoanel, espécie de túmulo do Estado inerte.



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