Economia

Metamorfose econômica (21)

DANIEL LIMA - 24/06/2009

O esquartejamento da pequena e da média indústria do Grande ABC é um crime de lesa-região cometido durante a desastrada abertura econômica dos anos 1990. Prevalecia o contexto de insensibilidade do governo federal, de omissão desavergonhada do governo estadual e de mistificação do descaso dos governos municipais. Tudo, cumulativamente, com o incentivo de uma insensata guerra fiscal entre municípios e estados da federação.

Se o padrão de definição do PIB (Produto Interno Bruto) não obedecesse a critérios cada vez mais contestados por especialistas em sustentabilidade social e ambiental, é muito provável que seria ainda maior a perda média anual de mais de 1% da produção industrial acumulada pelos municípios do Grande ABC entre 1995 e 2007. As pequenas e médias indústrias familiares, base do equilíbrio social da região, foram para o beleléu. Não é à toa também que derrapamos no ranking de Potencial de Consumo. Somos cada vez menos importantes no País.

Querem a prova mais flagrante de que não estou exagerando numa vírgula sequer quando denuncio, mais uma vez, esse descalabro? Procurem o endereço da Anapemei (Associação Nacional das Pequenas e Médias Empresas Industriais) e a lista de associados.

Não se encontrará nada. Até mesmo o quase sempre presidente da entidade e principal ideólogo daquele agrupamento, Cláudio Rubens Pereira, sumiu do mapa regional. A Anapemei chegou a reunir 150 empresas de pequeno porte no Grande ABC dirigidas por empreendedores familiares. Foi concebida, entre outros motivos, para fazer frente a uma das bobagens reconhecidas recentemente pelo próprio presidente Lula da Silva: o tratamento igualitário de reivindicações trabalhistas para universos desiguais. As pequenas e médias empresas que giravam em torno da Anapemei, principalmente do setor metalmecânico, eram colocadas no mesmo saco de cobranças das montadoras de veículos.

Genocídio empresarial

Quem chegar à conclusão de que se tratava de genocídio empresarial não estará dramatizando. Tanto é verdade, verdadeira, que faz algum tempo Cláudio Rubens Pereira revelou que daquele grupo de filiados não sobrou nenhuma empresa para contar a história. Desapareceram por conta da voracidade do mercado, se mandaram para endereços longe do Grande ABC ou trocaram de mãos, principalmente para estrangeiros beneficiadíssimos com a política econômica de Fernando Henrique Cardoso. O ex-presidente tratou desigualmente os desiguais pós-Plano Real. Protegeu as montadoras de veículos com alíquotas fiscais elevadas e colocou as autopeças no olho do furacão com drástica redução da proteção fiscal num período de moeda valorizada.

Por mais que se possa lembrar que os pequenos e médios empreendedores familiares industriais do Grande ABC não eram uma Brastemp gerencial, administrativa e operacional, forjados numa realidade de mercado protegido e com as benesses de definição de preços que premiava o comodismo e relações setoriais incestuosas com organismos do Estado, a situação não era diferente entre as médias-grandes e grandes empresas.

Todo mundo de fato se lambuzava com a generosidade de um nacionalismo produtivo que ruiu com a queda do Muro de Berlim. A globalização colocou fogo na roça de comodismo geral e irrestrito. Foi aí que os pequenos se viram lançados à fogueira da competitividade sem mitigação, enquanto os grandes conglomerados nadaram nas águas da adaptação com grandes investimentos em tecnologia, em processos, em reciclagem de profissionais, além, evidentemente, de vantagens fiscais e tributárias.

Alheamento geral

Absolutamente alheio ao conjunto da obra de desmonte do parque industrial de pequenas e médias empresas, o Grande ABC dos administradores públicos, das entidades de classe empresarial, das entidades de classe sindical, principalmente, está pagando o preço salgadíssimo do esvaziamento econômico.

Nem mesmo os seis anos de crescimento ininterrupto da economia regional durante o governo Lula da Silva, entre 2003 e 2008, recompôs o tônus produtivo e arrecadatório, tantos foram os desfalques entre 1994 e 2002. Já os desequilíbrios sociais, com o avanço dos excluídos e a quebra da mobilidade social, foram mais pronunciados.

Uma catástrofe se abateu sobre o Grande ABC no período. A pequena e a média indústria familiar foram golpeadas sem dó nem piedade. Sem possibilidade alguma de se adequarem aos novos tempos. Saíram da sala-de-estar de um regime protecionista que penalizava larga parcela de consumidores, submetidos a preços escandalosamente elevados e à qualidade sofrível de veículos. Com isso, foram jogadas no quartinho de despejo de um mercado livre que de fato favorecia o capital internacional não só pelas especificidades monetárias, cambiais e fiscais, mas sobretudo pelo poderio corporativo.

O massacre se consumou ao longo dos anos sem que qualquer movimento ao menos se esboçasse. E nisso não há surpresa alguma. As grandes indústrias, sobretudo as montadoras de veículos (e os grandes conglomerados da indústria química) sempre cultivaram um modelo de competitividade que se tornou fratricida para os fornecedores. Não convinha às montadoras (e às químicas), então detentoras dos cordéis de planilhas de definição de preços juntamente com burocratas do Estado, estabelecer complementaridade sistêmica entre centenas de pequenas e médias indústrias fornecedoras de autopeças. Tornando-as competidoras entre si, as montadoras (e as químicas) ganhavam nas negociações de preços, prazos e outros pontos.

Realinhamento geral

A abertura econômica mudou tudo e novos parceiros, agora sim comprometidos com desafios de rentabilidade, substituíram velhos e desgastados fregueses. O universo de empresas que abastecem as grandes indústrias reduziu-se fortemente. O enxugamento de fornecedores foi doloroso. É um processo que está longe de terminar.  Aperta mais na medida em que o coquetel de indicadores macroeconômicos realinha a oferta e demanda. Os chineses estão chegando para tornar o nó ainda pior.

Sempre me mantive alerta ao movimento da embarcação econômica do Grande ABC durante os 20 anos de comando da revista LivreMercado. Por isso, quando me refiro à linha editorial daquela publicação avoco o testemunho histórico para enfatizar que, em meio ao redemoinho de desinteresse geral ao balanço do navio, me coloquei em posição atentíssima. Não há almoço grátis.  Alguém — ou muitos — pagaria o preço daquela desordem generalizada. 

O assassinato de pequenas e médias indústrias no Grande ABC está no feixe de imprevidências institucionais da região. Clube dos Prefeitos, Fórum da Cidadania, Agência de Desenvolvimento Econômico, Câmara Regional, entidades empresariais, instituições sindicais não moveram uma palha para reagir. 

Como gosto de matar a cobra e mostrar o pau, recorro a um dos capítulos do livro “Meias Verdades”, que lancei num sintomático 1º de abril de 2003 em Santo André. Reúno naquela obra algumas dezenas de exemplos de matérias publicadas por jornais e revistas cuja veracidade de dados e informações ruiu na mesma medida do amarelecimento físico do papel. No caso do relacionamento entre montadoras e autopeças e, principalmente, do tratamento do governo Fernando Henrique Cardoso, seleciono alguns trechos sob o título “Crônica anunciada do setor automobilístico”. Elimino desta abordagem o que os jornais publicaram (texto que consta da obra) e passo apenas às minhas explicações: 

 O torpedeamento da economia do Grande ABC dependente em demasia da indústria automotiva é uma crônica anunciada que pode ser sintetizada nas três notícias cronologicamente tão próximas quanto tardias. A omissão do governo federal se rivaliza em nocividade com o descaso do governo estadual e com o desleixo dos governos municipais locais como provas irrebatíveis do rebaixamento da economia regional.

 Não foi levada a sério nem mesmo a propagação, por fontes especializadas, de que o cenário de competitividade internacional espremeria o Grande ABC contra a parede e que, portanto, recomendava ações de força-tarefa para reduzir o grau do estrondo provocado pela abertura econômica. Diferentemente, portanto, de hecatombes que atingem municípios, regiões e países surpreendidos por travessuras da natureza, como enchentes, vendavais, terremotos e mesmo distúrbios políticos e étnicos, a gênese da debacle do Grande ABC é genuinamente marcada por despropósitos gerenciais.

 (…) A abertura econômica no governo Fernando Collor de Mello, em 1990, iniciou jornada de sangria regional que na sequência Itamar Franco e, principalmente, Fernando Henrique Cardoso, consolidaram. (…) O problema é que a cadeia automotiva do Grande ABC foi quase que totalmente sucateada ou desnacionalizada, como de resto no País entregue na bacia das almas. Dados do Sindipeças indicam que o capital estrangeiro domina 77% de um segmento que foi predominantemente nacional até os anos 1990. (…) Como poderiam resistir aos então novos conceitos de competitividade internacional pequenas e médias empresas que ao longo de décadas viveram à sombra do protecionismo de um mercado fechado, de substituição de importações? (…) Um estudo do professor de Economia e então pesquisador do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas) Marco Aurélio Bedê, publicado em 1996, dá a idéia mais precisa e científica do arraso da política automotiva no Brasil.

 As montadoras de veículos tiveram ampla proteção do Estado, enquanto os fornecedores, então a maioria de capital nacional, foram preteridos contundentemente. A estratégia era clara: permitir que as montadoras se atualizassem tecnologicamente em processos e recursos humanos. Uma proteção pela metade, porque jogou as pequenas autopeças às feras da internacionalização. Enquanto as montadoras registravam até o final de 1995 blindagem de 148%, as autopeças ficaram protegidas em 15%. Os cálculos do pesquisador abrangiam desde alíquotas do Imposto de Importação de veículos e peças até margens brutas de cada setor, incluindo as diferenças em custos, despesas e outros valores adicionados.

 Um exemplo do próprio economista simplifica o entendimento da diferença. Um carro importado que custa 100 é vendido para o consumidor brasileiro por 170 (70% de Imposto de Importação). Já uma peça importada que também vale 100 custa à montadora 104,8 (4,8 de alíquota). A diferença de proteção entre os dois segmentos é o espaço que a montadora tem para aumentar preços, sustentou Bedê. “O resultado é a transferência de renda dos fornecedores e do consumidor para o fabricante de carro”. Em suma: a política governamental para o setor automotivo durante larga etapa dos anos 1990 levou as montadoras a incorporar menos componentes nacionais a bordo da redução das tarifas de importação. E tornou mais vulnerável o setor local de autopeças, que teve o poder de barganha sensivelmente reduzido frente às montadoras. Como bater o pé por preços mais justos se a guilhotina das importações estava armada num período em que o real sobrevalorizado em relação ao dólar tornava a desigualdade de tratamento fiscal ainda mais cruel?

Poderosos de sempre

A recuperação de parte do texto de um dos capítulos de “Meias Verdades” não estava em meus planos. Tenho outras jóias produzidas ao longo dos anos que constarão desse novo segmento temático desta série. Costumo dizer para os amigos mais chegados que só costumo respeitar jornalistas que tenham passado de comprometimento social na forma de matérias que saiam do lugar comum, do oba-oba. Não é uma tarefa fácil, porque significa atingir em cheio os poderosos de plantão, muitos dos quais ocupam os mesmos cargos há muito tempo e seguem sem fazer absolutamente nada.



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