Economia

Metamorfose econômica (23)

DANIEL LIMA - 08/07/2009

A principal fonte desta série de análises é o trabalho coletivo por mim coordenado à frente da revista LivreMercado durante 19 anos, a partir de março de 1990. É indispensável a recuperação comentada dos arquivos daquela publicação que, infelizmente, desde março último, virou uma revista sem inquietude analítica e sem qualquer resquício de comprometimento com a sociedade. Estender-me sobre a situação das pequenas empresas industriais no Grande ABC é obrigação jornalística. Não posso descartar, portanto, novos capítulos que reorganizem a lógica informativa do que se passou por aqui a partir da abertura econômica do governo Fernando Collor de Mello e, principalmente, do desembarque destruidor de Fernando Henrique Cardoso.

Costumo responder em forma de brincadeira a alguns amigos, quando alguém me lembra que recebi há alguns anos o título de Cidadão Honorário de Santo André, que queimaria aquela distinção em praça pública se algum legislador da cidade ousasse apresentar proposta de título idêntico a Fernando Henrique Cardoso e, pior ainda, se os pares aprovassem.

Reforço que se trata apenas de uma brincadeirinha, mas no fundo, no fundo, sou mesmo capaz de levar a empreitada avante. Nos outros municípios da região, proposta e aprovação idênticas deveriam ser igualmente recepcionadas por quem recebeu título semelhante ao conferido a este jornalista.

Homenagear Fernando Henrique Cardoso em qualquer instância de poder no Grande ABC tem o mesmo significado que condecorar a diretoria do São Paulo por demitir Muricy Ramalho –para ficar num exemplo mais popular de estupidez.

FHC destruidor

A gestão de Fernando Henrique Cardoso tem série de méritos que os adversários políticos esquecem ou omitem. Como não sou adversário político do ex-presidente, mas apenas jornalista, fico com o factual e histórico: ninguém foi mais pernicioso ao Grande ABC. Ao longo de oito anos de mandato o então presidente cometeu as maiores barbaridades com um território. Esta série, entre outras incursões, também trata disso.

Se acham que é exagero meu posicionamento sobre os rescaldos do governo Fernando Henrique Cardoso no Grande ABC, independentemente de juízo de valor sobre políticas públicas que aplicou nos demais territórios do País, vejam o que disse há exatos seis anos, numa entrevista concedida a mim à revista LivreMercado, o engenheiro e empresário Cláudio Rubens Pereira, a maior liderança do Grande ABC entre os pequenos e médios industriais, sobretudo da área metalúrgica, base da maioria dos filiados da Anapemei (Associação Nacional de Pequenas e Médias Empresas Industriais).

Perguntei a ele, provocativamente, porque sabia que ele não fugiria da raia, como jamais fugiu: 

 Quanto pesou no processo de desmoronamento completo do pequeno negócio industrial do Grande ABC a política de abertura econômica a partir dos anos 1990, agravada com a artificialização da moeda?

Eis a resposta de Cláudio Rubens Pereira, direta, contundente, seis anos atrás.

 O start foi realmente a abertura dos portos no governo Collor de Mello, mas o golpe final foi da pessoa que a gente menos esperava, porque tinha todo o preparo acadêmico. Basta ver o resultado dos oito anos de governo, de quanto entrou e de quanto saiu do potencial econômico empresarial de pequeno e médio porte do Grande ABC.

Não resisti, naquela histórica entrevista que capturo em meu arquivo material, organizadamente disposto no sótão de minha residência, e voltei ao assunto FHC mais algumas perguntas adiante:

 Qual foi o pior acontecimento dos últimos oito anos no Grande ABC: o fato de Fernando Henrique Cardoso ter vindo aqui uma única vez ou o Grande ABC jamais ter ido em caravana a Brasília?

A resposta de Cláudio Rubens Pereira:

 O Grande ABC jamais fez uma caravana para ir a qualquer lugar. Nem ao governo do Estado. Por isso, o segundo caso é pior.

Riscos da abertura

Embora mantivesse com Cláudio Rubens Pereira relação sempre construtiva, jamais fomos muito próximos. Seria impossível tanta proximidade naqueles anos 1990, quando criei LivreMercado e Cláudio Rubens estava mergulhado nas tratativas para ajudar a salvar as pequenas indústrias metalúrgicas do Grande ABC. Mas sempre nos encontramos profissionalmente em momentos decisivos. O primeiro, nas primeiras edições de LivreMercado, em 1990, foi profético. Cláudio Rubens foi a primeira e única liderança empresarial da região a alertar para os riscos implícitos da abertura econômica aos pequenos negócios. Apaixonei-me pela temática dos pequenos empreendedores a bordo da saga de Cláudio Rubens Pereira na Anapemei, da mesma forma que mergulhei em profundidade na regionalidade com Celso Daniel.

Lembrado naquela entrevista de julho de 2003 sobre as declarações premonitórias de 1990, Cláudio Rubens Pereira afirmou que os efeitos da globalização o surpreenderam porque superaram o esperado. “Os resultados foram mais profundos e atingiram outros segmentos também” — afirmou. E explicou:

 Defendíamos na Anapemei a necessidade de mudar a estrutura de trabalho nas empresas porque, seguramente, estava em processo de mudança. A política econômica federal era de internacionalização da economia, com atração de empresas multinacionais por causa da mão-de-obra mais barata em relação ao Primeiro Mundo, com custos operacionais mais em conta, incentivos para importação de subprodutos que passariam a integrar componentes nacionais. Essa lógica valia para diferentes setores industriais, não só automotivos.

Indagado sobre as outras caras da globalização que o surpreenderam, Cláudio Rubens Pereira foi didático:

 A segunda onda foi a concentração de indústrias de transformação. O que se percebe é que grandes empresas se verticalizaram novamente. Só que em vez de estarem sob o mesmo guarda-chuva de produção, criaram subsidiárias, inclusive como mecanismo redutor da carga tributária. As indústrias transformadoras são as mais atingidas pela carga de impostos. São cadeias de produção internas, corporativas, que se estruturam visando série de fatores de competitividade, entre os quais a carga tributária.

A memória da entrevista com Cláudio Rubens Pereira vai ocupar mais um ou dois capítulos desta série. Recuperar o conhecimento daquele que foi durante muitos anos o cérebro de uma entidade que cantou a bola da própria morte é mais que um exercício de sabedoria jornalística. É uma nova prova de compromisso com a reconstrução de informações e análises que podem contribuir intensamente para o futuro de um Grande ABC que, infelizmente, insiste em desdenhar a inteligência como mecanismo de restabelecimento de parte das riquezas que perdeu. Os oportunistas de plantão adoram essa situação.



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