Somente agora, tanto tempo depois do primeiro capítulo, em fevereiro deste ano, chegamos ao núcleo mais importante desse trabalho. É claro que estou me referindo ao setor automotivo, sobre o qual gira toda a engrenagem econômica, social e cultural do Grande ABC.
Não pensem os leitores que deixei a objetividade de lado ao ter postergado tanto a entrada em cena de atividade econômica tão importante. Considerei no caso que era preciso oferecer o cardápio das grandes transformações, principalmente econômicas, dos anos 1990 no Grande ABC. Queria provocar ou reviver os choques que frequentemente impusemos. E olhem que a tarefa não foi fácil.
Exércitos de bajuladores e aproveitadores insistiam em bloquear o acesso profilático a cidadelas em decomposição. Insistiam esses falsos regionalistas em esconder os estragos da abertura econômica abusada, da guerra fiscal descarada e da inapetência institucional. Não se pode omitir, também, que havia e continua havendo outro lado, não com a numerosidade e a hierarquia graduada de um exército, mas de um batalhão de inconformistas que, por razões diversas, preferem se resguardar. Até porque sabem o custo da contrariedade pública. Como bem sei, com meu modo todo delicado de manifestar indignação.
Doença holandesa
O setor automotivo é nossa doença holandesa. Historicamente gera frondosas riquezas mas também esparrama a perniciosidade da dependência econômica exageradíssima. Nada mais justo, portanto, do que essa matriz econômica ocupar capítulos desta série.
O marco histórico de análises deste jornalista e de profissionais com os quais compartilhei a cobertura do setor automotivo no Grande ABC (nos últimos anos quem assumiu de fato a liderança editorial desse temário foi André Marcel de Lima) está numa Reportagem de Capa publicada em fevereiro de 1997 sob o título “Grande ABC tem futuro?”. Antes disso, fizemos outras abordagens do setor automotivo, mas foi aquela Reportagem de Capa de março de 1997 o divisor de águas, a travessia da ponte de interpretação com olhos no passado, no presente e no futuro. Aquela revista LivreMercado, como se sabe, morreu de morte natural no começo deste ano, quando passei a marca para um recuperador de tributos que não teve a humildade de reconhecer-se péssimo aprendiz de jornalismo. Mas isso é outra história.
Estão ali naquela Reportagem de Capa as raízes de sobriedade, responsabilidade e clarividência de um trabalho jornalístico sem paralelo no mercado regional brasileiro. Escrevi aqueles textos juntamente com Maria Luisa Marcoccia, jornalista brilhante que, muito antes de mim, provavelmente porque é mais inteligente e preserva mais a qualidade de vida, resolveu afastar-se do que chamaria de imprensa convencional, optando por assessoria de comunicação.
Para que os leitores compreendam o que reservam os próximos capítulos, reproduzo o texto que preparei a “orelha” da versão em livro de “Grande ABC tem futuro?”, obra editada naquele mesmo ano. Disponho de pouquíssimos exemplares, mas faço uma promessa à audiência cada vez maior e seletiva deste espaço que nos próximos dias vai chamar-se CapitalSocial: prepararemos também a inclusão deste material em nosso arquivo digital.
Leiam o que escrevi na “orelha” da versão livro a respeito daquela Reportagem de Capa que já completou 12 anos:
É bobagem pretender construir o Grande ABC de que necessitamos sem que o passado seja pedagogicamente revolvido. Desprezar essa verdade acaciana teria o mesmo sentido fraudulento de perscrutar a mente sem levar em conta as teorias de Freud, discutir futebol sem considerar a genialidade de Pelé, desprezar Picasso quando o assunto for artes plásticas ou rastrear publicações desconsiderando Gutemberg. Esta reportagem especial transformada em livro não tem a pretensão de expor nos mínimos detalhes o desempenho do Grande ABC nas últimas décadas, porque não se trata de um desses cansativos exercícios de retórica intelectual permeados de ideologias geralmente soterradas pelos fatos e por números incompreensíveis. O pressuposto de mostrar à sociedade em forma jornalística um retrato-falado da economia regional talvez seja a principal característica deste trabalho. A diferença é que, contrariamente aos retratos-falados convencionais, que partem de determinadas informações evidentes de quem guarda na memória traços fisionômicos que precisam ser fielmente resgatados em forma de imagem, este trabalho foi conduzido num processo inverso, mas não menos verdadeiro, de construir o perfil sócio-econômico de uma região que aos olhos de todos, ou da grande maioria, parecia intocavelmente forte. Produzida a toque de caixa, a reportagem é instrumento obrigatório para quem planeja conhecer o mínimo necessário do Grande ABC dos últimos 40 anos. É verdade que em muitos pontos não há o aprofundamento que os mais exigentes por certo sugeririam, mas isso foi proposital para que não se enredasse em minúcias que poderiam provocar a perda de foco. E o foco é a economia do Grande ABC, com suas óbvias implicações sociais. A indagação do título, Grande ABC tem futuro?, foi o ponto de partida da pauta que gerou esse material. Talvez ninguém antes tenha ousado tanto e, particularmente, pelo momento de entusiasmo que se vivia em fevereiro deste ano, quando a inédita Câmara Regional do Grande ABC apresentava-se como catalisadora de propostas da comunidade, a interrogação soou como provocação. O sentido foi instigante mesmo, porque é preciso mexer com os brios daqueles que sentem algo de positivo pelo Grande ABC. É preciso substituir o ufanismo vazio e tolo pelo bairrismo responsável e produtivo. Este trabalho não tem outro objetivo senão contribuir para despertar a consciência de todos que habitam num dos sete municípios da região. Grande ABC tem futuro sim é a resposta à indagação. A diferença em relação a tantas outras respostas semelhantes é que não é deitado no berço esplêndido de falsas conjeturas, não é submetido à vassalagem da conveniência que se veste muitas vezes de politicamente correta, não é entregue à lavagem cerebral de deformadores de opinião e não é sufocado por cortinas de fumaça de dissimulações em forma de marketing que será possível trocar o ponto de interrogação pelo de exclamação. É preciso muito mais. É preciso enfrentar os problemas herdados do passado e os novos, por conta da globalização, com responsabilidade, lucidez e senso de conjunto — escrevi há 12 anos.
Como se pode perceber, os próximos capítulos são indispensáveis tanto quanto os anteriores para a compreensão da magnitude dos problemas que o Grande ABC apresenta e sobre os quais, sinceramente, não conseguimos encontrar mais que alguns fachos de luminosidade resolutiva.
O compromisso que este jornalista tem com as novas gerações estudantis é semelhante ao que o colocou em frequente rota de colisão com os prevaricadores que abundam no Grande ABC desde sempre. Saber que há profissionais que recomendam a seus alunos os escritos deste jornalista, como é o caso de Alessandro Bernardo, um regionalista de valor que atua na Universidade Anhanguera, é a maior recompensa que poderia ter.
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