O Grande ABC tem-se mostrado incapaz para escapar da arapuca da dependência excessiva da indústria automobilística. Não é de hoje que estou no contrafluxo do endeusamento da atividade que provocou em 40 anos a maior onda de mobilidade social que uma região já vivenciou mas que, em contraste, evidencia-se como versão da doença holandesa.
Os administradores públicos locais nadaram de braçadas com efeitos enriquecedores do pólo automotivo, mas, desde o início dos anos 1990, com a abertura econômica e, principalmente, com a estabilidade monetária e a descentralização da atividade, o Grande ABC balança sem parar.
Nem mesmo a recuperação parcial da produção e do emprego nos anos Lula da Silva neutraliza a situação. Os estragos foram demais. A recomposição está muito aquém do crescimento da população Economicamente Ativa.
Naquela Reportagem de Capa de fevereiro de 1997 que acabou virando o livro “Grande ABC tem futuro?”, escrito por mim e por Maria Luisa Marcoccia, a matéria de abertura foi uma convocação à luta: “Sociedade é que vai dar as respostas sobre o futuro do Grande ABC”.
Infelizmente, como se viu durante esses 12 anos, o quadro só piorou. E piorou muito, inclusive no aspecto institucional, embora exista alguma coisa no ar que indique recomeço de mobilizações. A timidez ainda é muito maior que a sustentabilidade. Quando do lançamento daquele livro, havia certa euforia com um novo Grande ABC que parecia aflorar. Não poderíamos abrir mão daquele ambiente de confiança que redundou em desencanto. Querem ver? Então, leiam:
Como temer o futuro uma região geograficamente metropolitana que reúne sete prefeitos igualmente decididos a empreender gestões integracionistas? Como temer o futuro uma região que dispõe de um Fórum da Cidadania que, em quase três anos de atividades, só coleciona sucessos como agente mobilizador da sociedade? Como temer o futuro uma região que tem em seus respectivos municípios secretários de Desenvolvimento Econômico decididos a implementar ações conjugadas, tal qual seus chefes ou prefeitos? Como temer o futuro uma região eleita pelo governo do Estado para sediar o lançamento da Câmara Regional, primeira e inusitada experiência de gestão compartilhada de uma numerosa agenda de intervenções da qual farão parte, além do próprio Estado, os prefeitos, através do Consórcio Intermunicipal, os vereadores, que também arregaçaram as mangas, a sociedade civil através do Fórum da Cidadania, liderança sindicais e empresariais diversas?
Como temer o futuro uma região de 2,3 milhões de habitantes que representam o quarto maior potencial de consumo do País? Como temer o futuro uma região que conta com retumbantes investimentos nas áreas comercial e de serviços, que abriga grandes indústrias, que reúne operariado de qualificação superior à média nacional, que tem gama imensa de executivos que disputam novo filão de negócios na área de consultoria? Como temer o futuro uma região em que uma de suas principais empresas, a Ford, anuncia o lançamento da produção de um avançado modelo de veículo, o Ka? (…) O Grande ABC tem esses e outros motivos para acreditar no futuro. E deve insistir nessa perspectiva, até porque o contrário seria catastrófico.
Contrapontos essenciais
É claro que os leitores mais atentos e historicamente mais conhecedores de meus trabalhos, e dos trabalhos da equipe que dirigi na revista LivreMercado (aquela que virou “Deus me livre” sob outra direção) estariam a indagar de onde vem a fama de rigidez e certo ceticismo manifestados ao longo dos tempos. Calma, porque os parágrafos seguintes daquela obra de 1997 são esclarecedores:
Mas o bom senso não pode escamotear uma dura e inquietante realidade: toda essa movimentação praticamente sem paralelo no País, pelo menos no volume e intensidade com que vem sendo concebida, são fantasmas exorcizados dos armários do comodismo, da dispersão, da insensatez e do descaso coletivo durante quatro longas décadas — exatamente a partir do momento em que o Grande ABC começou a ganhar a configuração de uma poderosa região econômica, com a implantação da indústria automotiva.
(…) Fórum reformulado, Executivos públicos irmanados, Legislativos interessados, só faltaria o governo do Estado entrar com sua contribuição. Disso tratou o secretário de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento, Emerson Kapaz, que costurou a constituição da Câmara Regional. O Estado dá tamanha importância a essa espécie de pacto que se desenha que o próprio governador garante presença no salão nobre da Prefeitura de São Bernardo, para o lançamento do programa. Representantes sindicais e empresariais, outros vetores imprescindíveis dessa nova amarração institucional, também vão participar da Câmara Regional, cujas instâncias de decisões se assemelham às do Fórum da Cidadania, inclusive com grupos temáticos. O tema desenvolvimento econômico é peça-chave desse tabuleiro de negociações que tentarão dar à indagação sobre que futuro aguarda pelo Grande ABC um tom menos provocativo e respostas consistentes.
Mais ponderações
Sempre na linha de engatar uma segunda marcha de novos tempos, mas sem descuidar-me do freio da desconfiança da efetividade das ações, escrevi naquele fevereiro de 1997, quando os novos prefeitos, eleitos em outubro de 1996, acabavam de assumir seus postos:
Mas não será nada fácil. Sinceramente, é um conjunto de desafios que espera pela sociedade regional em combinação com o governo do Estado. A começar pelas montadoras automotivas e autopeças que garantem a estabilidade socioeconômica da região, o quadro que se tem é senão apavorante, pelo menos desconfortável. A máscara suave dos investimentos tecnológicos que a globalização econômica exige esconde as faces do desemprego. Some-se a isso a descentralização da produção de veículos, com as respectivas fugas de autopeças, e se encontra algo parecido com a casa mal-assombrada dos parques de diversão. A diferença é que não se está no Playcenter, não é um jogo de faz-de-conta. Que alternativa será estabelecida para o baque das montadoras da região que já foram monopolistas na produção e hoje não passam de 41% do mercado nacional?
A infraestrutura regional, tanto física quanto legal, se assim pode ser chamado o calhamaço de leis municipais que não guardam qualquer relação integracionista, é tão receptiva a empreendimentos quanto a amizade entre Tom e Jerry. Absurdos legislativos de longa data ainda assustam pretendentes a investimentos. O sistema viário interno dos municípios estraçalharia até os nervos dos escravos de Jó. A Via Anchieta e a Avenida dos Estados, portas de entrada e de saída dos municípios, levam os motoristas mais irônicos a meditar sobre a conveniência de trocar os veículos motorizados por tração animal. A velocidade seria a mesma e o custo com combustível desapareceria.
Há série de outros inconvenientes que maltratam a vida social e econômica do Grande ABC. Caso da pitoresca, ou trágica, Lei de Proteção dos Mananciais, uma fornada de bobagens que já completou 20 anos, impediu a ocupação de indústrias não-poluentes e incentivou a invasão eleitoral de moradias que lançam esgoto diretamente nas águas da Represa Billings, o precioso reservatório de água da região. (…) Os morros estão apinhados de gente pobre e desempregada. O deslocamento da população rumo a uma periferia cada vez mais violenta, que chega a ter índices de criminalidade só superados pelos desmanches no Embu, é um ritual de claro empobrecimento regional. Grande ABC tem futuro? Há quatro décadas essa pergunta seria ridicularizada. Hoje provoca no mínimo meditação.
Sonho de verão
Numa análise reducionista mas intocável, arriscaria afirmar que, 12 anos depois, de todos os problemas apontados naquela abertura de Reportagem de Capa, os índices de criminalidade foram os únicos que de fato passaram por rebaixamento acentuado. Em 1995 o Grande ABC chegou a acumular mais de 1,3 mil assassinatos, contra menos de 400 no ano passado.
Quanto às perspectivas de um salto para o futuro, um futuro que já chegou, o desenho daquela nova proposta institucional que se apresentava quase ao final do século passado não passou, infelizmente, de sonho de verão. Do qual continuaremos a tratar, porque a pauta é ampla e as dificuldades cada vez mais acentuadas.
Quem não aprende com os erros dos outros é ruim da cabeça ou doente da alma.
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