Economia

Metamorfose econômica (34)

DANIEL LIMA - 14/09/2009

As rusgas entre capital e trabalho estão para a economia assim como a disputa entre centroavante e goleiro adversário. Pretender que haja conforto no relacionamento entre representações de trabalhadores e do empresariado é sonhar acordado. Mas, alto lá: também não é preciso exagerar. Centroavante que usa de métodos antidesportivos para enganar o goleiro, e goleiro que faz trapaça para impedir que o centroavante fique próximo do gol, têm de ser punidos.

No caso do Grande ABC, as esfregas entre sindicalismo e empresariado, que reduziram de decibéis mas estão longe de acabar, ganharam tonalidades fortíssimas desde o movimento liderado no final dos anos 1970 pelo agora presidente Lula da Silva. Perderam e ganharam as duas partes. Os trabalhadores ganharam influência política e dignidade no chão de fábrica, mas viram as chamadas conquistas sindicais restringirem-se a categorias cada vez mais esquálidas. O empresariado ganhou experiência no relacionamento com recursos humanos, buscou nos profissionais parceiros importantes de negócios mas o preço para quem não resistiu às estocadas foi elevadíssimo. Principalmente para empresas de autopeças, então prevalecentemente formada por capital nacional, muitas vezes familiar.

Nessa recomposição da história econômica do Grande ABC, o desenlace vai demorar muito, mas muito mesmo. À frente da revista LivreMercado (aquela que virou “Deus me livre” sob o comando do contador Walter Sebastião dos Santos) jamais faltou ambiente contestador, analítico, determinado a sair do lugar comum de escrever apenas para preencher espaços que sobravam de inserções publicitárias.

Acervo riquíssimo

Disponho do mais rico acervo editorial do período mais tortuoso do Grande ABC, os anos 1990 e este primeiro decêndio do novo século. É um manancial de consulta obrigatória para quem quer compreender o que se passou por aqui — e muito do que ainda se passará. Todo esse material foi plasmado por profissionais que talvez até não tenham se apercebido do quanto ajudaram a erguer a maior barricada de conhecimento jornalístico do período no Grande ABC. Completamente à prova dos nove das demais publicações locais porque jamais nos conformamos em apenas relatar informações. Metabolizamos as informações no sentido de contextualizá-las sempre.

Na edição de fevereiro de 1997, que considero uma das mais importantes dos 19 anos à frente daquela publicação que dirigi, houve confronto à distância, embora próximo, entre o então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, Luiz Marinho, o mesmo Luiz Marinho hoje prefeito da cidade, e o então e ainda presidente do Sindipeças (Sindicato das Autopeças) Paulo Butori.

Antes de colocá-los no ringue memorial, explico o paradoxo da dissonância da frase “confronto à distância, embora próximo”. Para que os leitores não me chamem de alucinado, porque de outras coisas até mais cabeludas alguns costumam me chamar, explico que “confronto à distância” se explica porque Luiz Marinho e Paulo Butori deram as entrevistas em momentos e locais distintos à jornalista Malu Marcoccia. Já “embora próximo” diz respeito ao fato de que os trabalhos foram editados sequencialmente, primeiro as páginas dedicadas às declarações do então sindicalista, depois ao representante do empresariado.

Marinho e Butori foram vizinhos de edição porque assim determinava o bom senso. Aliás, para os leigos, nada melhor do que explicar o que seja edição. É compatibilizar temáticas. Por isso o noticiário policial não se mistura com o noticiário político e tampouco com o esportivo. Com o político, convenhamos, nem sempre. Mas aí a deformação é dos protagonistas, não do editor.

Êxtase institucional

Naquela altura do campeonato — estamos nos referindo ao início de 1997, quando Fernando Henrique Cardoso era presidente da República, Mário Covas governador do Estado e o PT acabara de assumir cinco das sete prefeituras do Grande ABC — a região já passava por forte processo de desindustrialização. Com base em indicadores sustentáveis de Valor Adicionado, de Potencial de Consumo, de distribuição do ICMS, de avanço do desemprego, entre outros, já apontava as consequências que se prenunciavam de uma abertura econômica destrambelhada, dos efeitos da estabilização da moeda e, principalmente, da guerra fiscal, iniciada para valer mesmo no final dos anos 1980.

Entretanto, vivendo êxtase de institucionalidade, o Grande ABC não dava a menor bola para os desarranjos. Havia tanta comemoração em torno da criação da Câmara Regional, do fortalecimento do Clube dos Prefeitos e da chegada para valer do Fórum da Cidadania que se desqualificava quem se metesse a lembrar que tudo aquilo tinha uma razão evidente — o Grande ABC dava sinais de exaustão e, principalmente, de recuo socioeconômico.  Era crime de lesa-região qualquer menção ao entorno de estrangulamento social e econômico. Imaginem então, os leitores, o que este pobre coitado de jornalista teimoso em seguir a cartilha de seriedade, passou desde então. A fama de briguento, que ainda outro dia ouvi de um noviciado na arte da política administrativa, como se fosse eu um pecaminoso, espalhou-se entre os triunfalistas.

Extraio daquela dupla entrevista (que integrou o livro “Grande ABC tem futuro?”, que escrevi juntamente com Malu Marcoccia), alguns dos melhores momentos das declarações de Luiz Marinho e de Paulo Butori. Colocados no mesmo ringue, eles exprimiam o sentimento classista sempre sob a ótica de que verbalizavam verdades absolutas. Daí a imagem do goleiro e do centroavante na disputa entre capital e trabalho.

Vejam o que disse Luiz Marinho, considerado um sindicalista moderado, conciliador, sempre tendo como base de comparação a maioria dos antecessores no cargo mais importante de representação dos trabalhadores no País: 

 A categoria passa por profunda transformação. Mudou o perfil do dirigente, o perfil da categoria, o perfil do sindicato, a conjuntura, o País, mudou o mundo. Tínhamos um tipo de atuação na qual, provavelmente, as características minhas e do Guiba (Heiguiberto Navarro, ex-presidente do sindicato), mais as minhas do que as do Guiba, não dessem certo de jeito nenhum naqueles tempos. Nos anos 70 e 80 tínhamos enfrentamentos compulsórios. Muitos diziam que o (Jair) Meneghelli era carrancudo, não negociava, mas ia negociar com quem? Como o Lula. Iria negociar com quem? Não tinha negociação. Dirigentes sindicais que atuavam no interior das empresas sequer tinham espaço para conversar com trabalhadores. Precisavam se esconder no banheiro. Isso se constituía em enfrentamento para a conquista de democracia dentro das fábricas. Isso ainda não está plenamente consolidado, mas é evidente que avançou muito. O que explica que a característica do dirigente sindical obedece à realidade do momento. O tipo de sindicato que temos hoje está adequado ao perfil da liderança que o conduz — afirmou Luiz Marinho.

Agora leiam o que disse o líder dos empresários do setor de autopeças, Paulo Butori, 12 anos atrás:

 Sem dúvida o Grande ABC continua importante, mas isso vai mudar. O papel do sindicato trabalhista ainda aterroriza. Nas consultas de investidores, falamos da região e a primeira reação é torcer o nariz. A maioria prefere outros Estados. Quando São Paulo é mencionado, fala-se imediatamente do Interior. O custo da mão-de-obra no Grande ABC é um entrave. Em Minas Gerais se pagam 40% do salário da região e não há o grau de benefícios que os sindicatos reivindicam. Só um louco, eu diria, vai hoje para o Grande ABC, diante da necessidade de reduzir cada vez mais custos para competir. (…) Quando falo que a cara do Grande ABC vai mudar, é por causa disso. Está perdendo empresas, repetindo o que aconteceu em Detroit, nos Estados Unidos, e Turim, na Itália, porque as fábricas se mudam mesmo, atrás de custos menores. Detroit está horrível: muita gente passando fome, muita gente de nível baixo pelas ruas, fruto do desemprego. Havia dois milhões de trabalhadores e hoje não são 800 mil. No ABC, há empresas que até perderam dinheiro para deixar a região. Prédios e galpões que valiam 20 anos atrás US$ 10 milhões foram vendidos recentemente por US$ 2,5 milhões. Mesmo que comércio e serviços cresçam, essa mudança de perfil vai alterar a qualidade do emprego, porque o nível salarial cai, e bastante. O mercado consumidor se retrai e, aí, as próprias prestadoras de serviços e redes de varejo migram para outras regiões, deteriorando ainda mais o quadro. Por isso, quando os sindicatos trabalhistas chegam com aquelas exigências absurdas, chamo atenção para se têm consciência do que estão fazendo — afirmou Paulo Butori.

Considero imperdível o próximo capítulo. Marinho e Butori seguirão em confronto. Quem não aprende com as luzes da história, se perde nas trevas da história.



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