Fiquei desconcertado com a intervenção de um convidado ao final do show de tango que intercalou a apresentação do grupo de 101 conselheiros editoriais do Diário do Grande ABC, em 22 de fevereiro, no Teatro Municipal de Santo André. Estava no fundo do teatro, quase à saída, acompanhando em pé os últimos minutos do espetáculo.
Transpirava sob um blazer que, como alguns poucos de meu guarda-roupas, só utilizo em ocasiões muito especiais. De bate-pronto, educado mas incisivo, o convidado dirigiu a palavra a mim:
“Por que você chamou apenas um negro para o Conselho Editorial? Isso é discriminação”.
Confesso que tive dificuldade de articular a resposta. Atordoado como um boxeador que acabara de receber um cruzado na mandíbula, só não balancei o corpo descordenadamente porque estava apoiado na parede, entre dois amigos que, igualmente, pareciam atônitos. Lembro-me que disse ao interlocutor que nem me dera conta da cor da pele ao preparar a lista de conselheiros e muito menos ao vê-los, naquela noite, no palco. Aliás, vários deles nem conhecia pessoalmente. Foram indicados por terceiros de absoluta confiança. Inclusive por dirigentes de universidades públicas e privadas locais.
A condição para o chamamento não incluía raça, credo religioso, paixão clubística, preferência sexual, opção partidária, nada disso. Apenas que fossem especializados em alguma coisa que pudesse ser útil à comunidade regional e que se dispusessem a atuar voluntariamente na gestão intelectual de informações.
O conselheiro negro ao qual se referia meu duro interlocutor igualmente negro fora indicação de Valmor Bolan, reitor da Faenac (Faculdade Editora Nacional) e agora também reitor da Universidade de Guarulhos. Bolan me apresentara rapidamente Hamilton Rangel, especialista em Direito Constitucional, durante visita que fiz a um dos campi da Faenac. Fez-lhe tremendos elogios. Confiei-lhe a indicação porque Valmor Bolan é desses intelectuais que conseguem luminosidade também na operacionalização do conhecimento. Não é mero propagador de idéias.
Pouco me interessei, também, se Hamilton Rangel, o conselheiro negro, reside no Grande ABC. Há certas especialidades que exigem apenas que os titulares tenham atuação regional. Dotes intelectuais e técnicos dispensam geografia. Outras especialidades, entretanto, dependem eminentemente de experiência e conhecimentos locais. Caso, por exemplo, de urbanistas, de técnicos em segurança pública. Alguns afoitos andaram trocando as bolas ao não entenderem a flexibilidade conceitual de regionalidade na indicação de nomes para o Conselho Editorial.
Hamilton Rangel, o conselheiro negro, é uma sumidade. Quando escreveu seu primeiro ensaio para este Diário, publicado numa edição de domingo, fiquei encantado. Recebo diretamente toda a correspondência eletrônica dos conselheiros. Preparo durante a semana a edição do material utilizado geralmente nas edições de domingo. Li o ensaio de Hamilton Rangel sobre regionalidade aberta à globalização pelo menos três vezes num orgasmo múltiplo. Um texto praticamente impecável mesmo à luz das normas de redação deste jornal.
Confesso que quando recebi o material temi por um artigo hermético, desses que nos levam a acrobacias interpretativas. Direito Constitucional não é exatamente um prato do dia de restaurante popular. Pois Hamilton Rangel o destrinchou de tal maneira que me levou ao êxtase intelectual.
Pensei comigo: está certo que fui desastrado ao não considerar o politicamente correto de convidar mais negros para o Conselho, mas com esse eu tapo a boca de todos os maledicentes. Foi, evidentemente, uma reação senão raivosa contra eu mesmo, pelo menos censora do descuido. No fundo, no fundo, entretanto, quero que se dane qualquer restrição que eu mesmo tenha feito a mim, mesmo porque não consigo agir adredemente para agradar interlocutores.
Detesto o politicamente correto, essa mania de forçar a barra nas relações pessoais e públicas para ficar bem na fita. Não saí e não sairei garimpando negros competentes para enfiá-los no Conselho Editorial pela única razão de que aqueles aos quais chamei, brancos, pardos, amarelos e negros, jamais compuseram painel étnico em minhas avaliações. Foram vistos e analisados pura e simplesmente pelo conteúdo profissional. Não podemos cair no reducionismo estúpido de, para nos livrar de eventual pecha de racismo intelectual, praticar o inverso, ou seja, o privilégio racial.
Chega a dramatização do caso Grafite, uma marmelada racista patrocinada por um narrador de futebol mestre em discriminar os adversários brasileiros e de tornar vergonhosamente parcial as transmissões de futebol que envolvem a nossa Seleção.
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06/12/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (40)