O presidente Lula da Silva recebeu semana passada o prefeito eleito de São Bernardo, Marcelo Lima, na Capital Federal. Trataram do desembaraço político e burocrático de recursos orçamentários para a Capital Econômica da região. Se fosse possível levar ao campo metafórico o simbolismo daquela cena estampada nos jornais locais, diria que algoz e vítima se encontraram quase meio século depois.
Também participaram do encontro, entre outros, o ministro Luiz Marinho, duas vezes prefeito de São Bernardo e anteriormente presidente do mesmo sindicato liderado por Lula da Silva, e o deputado estadual Luiz Fernando Teixeira, candidato a prefeito derrotado por Marcelo Lima.
Ou seja: o flagrante é emblemático de duas realidades conexas: o prefeito de São Bernardo eleito em outubro quer política de boa-vizinhança com o PT Nacional e Municipal para conduzir a cidade à recuperação competitiva e, com isso, consequentemente, tornar o passado recente de rivalidade eleitoral em pretendida cooperação.
50 ANOS DEPOIS
Temos p0rtnato um fato interessante quando se observa o quadro sob ótica especial. Não vou ser politicamente correto. Lula da Silva e o jovem Marcelo Lima ocupam extremos cronológicos de transformações profundas de São Bernardo e do Grande ABC. Da riqueza em expansão à pobreza disseminada, esses 50 anos são uma fração do tempo histórico, mas uma bomba de efeitos dilacerantes. Lula da Silva e Marcelo Lima representam duas gerações opostas.
Marcelo Lima nasceu em 1982. Alguns anos depois de Lula da Silva e sindicalistas inconformados com o que sofriam nos chãos de fábrica ao decidirem promover a primeira greve da história, na fábrica da Scania, em 1978, em São Bernardo. Daí em diante tudo mudou. O que temos hoje de passivos sociais e econômicos tem tudo a ver com aquilo que Marcelo Lima e muitos jovens não viram. Avanços seletivos na composição de classes sociais também passaram pelo sindicalismo lulista.
Metalúrgicos de montadoras e grandes e médias autopeças fizeram a mala de conquistas sociais e econômicas. Uma mala hoje submetida à artilharia pesada de concorrência nacional e internacional.
MAIS QUE SNDICALISMO
Seria covardia limitar a Lula da Silva e a bravos sindicalistas que impactaram diversas atividades produtivas na região responsabilidade exclusiva pela decadência do Grande ABC, particularmente de São Bernardo da Doença Holandesa Automotiva.
Coloquem também na conta do empobrecimento da região outros fatores, sobre os quais já cansei de escrever e que são a base do livro Detroit à Brasileira, que escrevo com vagar.
Entram nesse inventário a guerra fiscal incentivada no Estado de São Paulo pelo governo tucano, a abertura indiscriminada dos portos durante o governo Collor de Mello, o Plano Real discricionário às pequenas empresas de Fernando Henrique Cardoso, o trecho sul do Rodoanel, também do governo tucano de São Paulo, o desastre de Dilma Rousseff. Novas armadilhas estão montadíssimas. Vou escrever sobre cada um desses novos impactos em outro texto. Já pincelei em análises anteriores.
Então, para não deixar pedra malvada de dúvida sobre pedra malvada de dúvida, esclareço a bem da realidade histórica: o movimento sindical está na raiz da decadência regional, mas não ocupa o pódio sem ser assediado pelos vetores mencionados acima. Tampouco deva ser demonizado por estar na raiz da decadência. Seria um erro ignorar outros vetores. Como, também, a tentativa de divinizar o movimento sindical como uma constelação de iniciativas redentora de Lula da Silva e seus discípulos, sem efeitos colaterais.
PEQUENOS SOFRERAM
Não vou entrar em detalhes sobre a transversalidade econômica e social do comportamento sindical na região. Basta lembrar um ponto reconhecido há alguns anos pelo próprio Lula da Silva, durante o segundo mandato presidencial: exagerou-se demais na dose de tratar desiguais de forma igual.
Ou seja: pequenas e médias empresas industriais foram colocadas no mesmo saco de reivindicações e conquistas. Temos histórias fabulosas sobre isso.
Diria que o movimento sindical aplicou um cruzado estonteante, embora não nocauteador, na economia regional quando se contextualizam os fatos às repercussões no empresariado que procurou outros endereços ao empreendedorismo. O que veio em seguida, em cadeia de impactos monumentais, liquidou de vez com qualquer possibilidade de recuperação. Mais que isso: se aprofunda ano a ano o buraco sem fundo.
Somente durante o segundo mandato de Lula da Silva, por conta d balança comercial febril movida por chineses em crescimento de dois dígitos, o Grande ABC estruturalmente automotivo recuperou parte do vigor perdido especialmente nos oito anos de Fernando Henrique Cardoso. Entretanto, a conta de gastos sem freios e receitas declinantes veio em seguida com Dilma Rousseff. Foram 20% de quebra do PIB do Grande ABC – ante 7% da média nacional entre 2015 e 2016. Em termos por habitante, São Bernardo perdeu 30%.
ENCONTRO COLABORATIVO
Foi o representante máximo do sindicalismo que emergiu no Grande ABC na segunda década dos anos 1970 que Marcelo Lima, nascido apenas em 1982, encontrou na semana passada em Brasília. Rodeado de petistas, Marcelo Lima foi em busca de recursos para tapar os buracos de infraestrutura social e material de São Bernardo.
Marcelo Lima é um prefeito eleito que se tem revelado ecumênico, pronto a trançar os pauzinhos com representantes de todos os partidos e ideologias. Quer construir uma frente em prol de São Bernardo. Seria uma espécie de pacificador. Resta saber até que ponto eventuais convergentes à causa de unidade jamais tentada e jamais conseguida vão entrar nesse barco com finalidade distinta, ou seja, de um passeio político-administrativo circunstancial, do qual saltarão quando se aproximar a hora de a vaca da individualidade partidária deixar o brejo da adesão.
Imaginar que Marcelo Lima fosse recebido em Brasília com uma pauta político-administrativa que remetesse a tempos passados seria ingenuidade. Já imaginou se o prefeito eleito de São Bernardo comunicasse ao distinto público que iria a Brasília com uma lista de reivindicações que supostamente teriam como origem o movimento sindical no período já mencionado?
E que, em seguida, fosse ao governador Tarcísio de Freitas e também fizesse a entrega de um documento que mostrasse o quanto os antecessores no Estado mais rico da Federação provocaram de estragos na região, com omissão ou desastradas intervenções? Só o Rodoanel Mario Covas, especialmente o tramo Sul, representa a quase eutanásia regional, por si só mambembe.
TEMPO DEFINIDOR
Esse prefeito pacificador estaria trafegando em direção a uma conciliação de interesses que colocariam São Bernardo acima de divergências políticas, partidárias e individuais. Resta saber o quanto essa iniciativa que flerta com uma espécie de Alzheimer institucional dará resultado de verdade. Parecerá cada vez mais improvável que se mantenha num compartimento de desprezo todas as razões e motivações que tornaram São Bernardo uma paiol de pólvora quando se projeta o futuro de uma década, por exemplo.
O desafio de São Bernardo é o confronto contínuo com o processo de desindustrialização que não tem fim. A Doença Holandesa Automotiva mascara a realidade dos fatos industriais tanto quanto a Doença Holandesa Petroquímica exerce poderes mistificadores em Santo André.
Quando se depende demais de uma determinada atividade – daí a metáfora automotiva e petroquímica com a Doença Holandesa – e essa mesma atividade está sujeita a navegações erráticas, muito se consolida de equívocos tanto quando há respostas positivas e negativas em forma de PIB (Produto Interno Bruto).
LINHAS RESTRITAS
O PIB de São Bernardo e o PIB de Santo André crescem ao sabor dessas duas atividades. E escondem fracassos contínuos em outros setores industriais. Tanto que as duas cidades não contam com outras cadeias produtivas. São lojas que só vendem a mesma linha de produtos. No caso de São Bernardo, um produto acirradamente disputado em âmbito internacional, sobretudo pelos atrevidos chineses e seus trabalhadores escravos.
O mais sensato é observar todos os passos políticos e estruturais da economia de São Bernardo agora sob o controle de Marcelo Lima. Recursos estaduais e federais são sempre bem-vindos, mas assustam na medida em que poderiam, de novo, representar as únicas fontes de arrecadação incremental da Prefeitura.
APENAS NICHOS
É preciso criar riqueza que começou a esvair quando Lula da Silva comandou a greve na Scania e os trabalhadores ganharam visibilidade e um poderio econômico corporativo que forjou um novo tipo de classe média na região, a classe média de operários bem-assalariados. Agora o que resta é um nicho dessa classe cada vez mais enxuta no conjunto de trabalhadores industriais.
O prefeito Marcelo Lima provavelmente conheça pouco do passado de São Bernardo, o que é natural para quem só chegou depois da revolução sindicalista. No fundo, até que esse distanciamento dos fatos contribuiu para fazer o que fez na semana passada em Brasília. É melhor não ter sentido na pele a fita de largada de uma transformação de ganhos e perdas, com mais perdas do que ganhos, do que ruminar conhecimento em torno dos danos provocados, o que certamente o levaria à inação. Entretanto, não custa nada entender que passado e presente formam linha de comunicação irredutível e esclarecedora para que articulações sejam pragmáticas. A São Bernardo do passado já virou descarte há muito tempo.
A São Bernardo do presente ainda é uma joia econômica-industrial que requer todo o cuidado, sem mistificações como se pretende em forma de reindustrialização. São Bernardo precisa ser reinventada como força propulsora de mobilidade social há muito desativada. Tudo isso e muito mais estão no estoque desta publicação, desde 1990. Fechar os olhos a isso tudo é contratar ineficiências e estimular novas decepções.
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09/12/2024 ALGOZ RECEBE VÍTIMA EM BRASÍLIA. ENTENDA