Economia

Quem olha para
os pequenos?

DANIEL LIMA - 05/08/1998

Há tantas carências microorganizacionais na economia do Grande ABC, território que jamais conseguiu conjugar o verbo planejar exceto na primeira pessoa do singular, sempre em proveito próprio, que se torna até difícil definir prioridades. O envelhecimento da indústria automotiva, da indústria química e petroquímica e da indústria moveleira, tripé sobre o qual gira uma engrenagem socioeconômica que range dores de esvaziamento e de empobrecimento, é apenas uma das faces da moeda. Felizmente, embora tarde mas não tardiamente, cada um desses setores finalmente está sendo levado a negociações de revitalização.

O setor comercial, que multiplica unidades de negócios desde que megaempreendedores descobriram que o Grande ABC não era apenas sangue, suor e poluição, jamais foi tratado com responsabilidade estrutural. Deslumbramos todos com os aportes de novos e luminosos investimentos, em forma de shoppings, de grandes redes de supermercados e de franquias milionárias, mas deixamos escapulir pelo vão da prudência legislativa uma combinação de mecanismos que pudesse evitar que a região se tornasse sumidouro de projetos, dinheiro e ilusões. Principalmente de pequenos empreendedores, que buscaram alternativa de sobrevivência depois que foram desalojados em grande parte da indústria em processo de evasão e de reestruturação administrativa e tecnológica.

Não existe, como se sabe e está provado pela história da humanidade, outro regime econômico cujos desdobramentos resultem em constante melhoria da qualidade de vida e do exercício da democracia, em todos os sentidos, que não o da liberdade de empreender. A economia centralizada, como se sabe, é irmã siamesa da ditadura política de direita ou de esquerda. O conceito de LivreMercado, entretanto, não prescinde da participação coordenadora do Governo em suas várias instâncias administrativas -- a União, os Estados e os Municípios. O problema todo neste País é que essas esferas de poder público, com raras exceções, jamais ou poucas vezes desempenharam funções arbitrais indicadas para evitar os desvios do mercado; preferiram, em realidade, ou a omissão acomodatícia ou o oportunismo arrecadatório.

O Grande ABC já cristalizou processo de canibalismo empresarial no setor comercial e de serviços cujo desenlace não está distante da carnificina econômica e da brutalidade social. À parte a falta de preparo de boa parcela dos pequenos empreendedores, o que se praticou neste território foram sucessivos estupros econômicos. Abriram-se as porteiras para a boiada dos megaempreendedores ingressar sem cerimônia. Numa repetição doméstica do que o governo federal promoveu em relação à abrupta redução das alíquotas alfandegárias que elevou às alturas as taxas de mortalidade industrial, as autoridades públicas da região mais que incentivaram investimentos comerciais e de serviços portentosos sem atentar para princípios básicos não de proteção de mercado, que seria condenável, mas de oferecer estrutura legislativa que possibilitasse o desenvolvimento de capacidade sistêmica dos segmentos mais frágeis à competição aberta. Exatamente o que se faz na Europa tão decantada da social-democracia. 

A constatação, revelada nesta edição, de que nos últimos oito anos 17 mil empresas dos setores comercial e de serviços conseguiram surgir e resistir a todas essas indiferenças, o que dá o saldo médio de 177 atividades consolidadas por mês, é apenas parte de uma equação, já que respostas para a contracapa deste quadro não existem -- quantos empreendedores deram com os burros nágua nesse mesmo período exatamente por não contar com legislações municipais menos permissivas? Quantos sonhos foram destroçados pela falta de coordenação dos poderes públicos, tanto de Executivos quanto de Legislativos? Até quando empreender vai ser apenas uma loteria, em que a proporção de vitoriosos é infinitamente menor do que a de derrotados? Até quando as autoridades públicas que tanto proclamam o inerente papel coordenador do Estado na economia assistirão de camarote a esse show macabro de orfandade explícita?

Para que não digam que o colunista só aponta falhas, basta rápido exercício de imaginação para se obter alguns exemplos de como poderia ter sido amenizado o quadro de desbalanço socioeconômico que  ainda não entrou na pauta regional. Repare o leitor que o verbo está no passado. Tudo porque a descoberta do ouro ocorreu antes que os administradores públicos se dessem conta de que o futuro de cada Município estava, como ainda está, relacionado com os demais. Que Grande ABC não é uma expressão de marketing, mas uma realidade geopolítica e econômica. Teimaram em enxergar o abstrato da territorialidade dos  mapas. Mesmo agora, que há consenso  sobre regionalismo e cidadania, mesmo agora que Fórum, Câmara Regional e Consórcio Intermunicipal formam comissão de frente institucional, ainda falta muito para o conceito de interdependência consolidar-se.

Os megainvestimentos que aportam na região poderiam ter sido monitorados por legislações de uso e ocupação de solo que não agredissem a capacidade de sobrevivência dos pequenos negócios. Também  poderiam ter contrapartidas técnico-operacionais, reservando-se valores financeiros para o financiamento de grupos de trabalho que tivessem como norte a capacitação dos empreendedores e o estímulo à formação de cooperativas de atividades assemelhadas, de forma a promover a inflexão estrutural desses negócios. Esses são apenas alguns exemplos que, em síntese, fortaleceriam o fôlego de quem até então navegava nas águas plácidas de involuntária reserva de mercado. A maioria não estava preparada para o dilúvio que se viu. Quem perde com isso também são os cofres públicos, que ganharam com  os impostos recolhidos pelos megaempreendimentos, mas perderam com o definhamento dos pequenos.

Todo o imbróglio que envolve o comércio aos domingos -- e é um grande imbróglio mesmo, porque os interesses dos grandes são a perdição dos pequenos -- seria menos traumático se a região, como de resto o País, não fosse um festival de improvisação e imprevidência também nas atividades econômicas. O Estado não cumpre o papel que tanto reivindica em defesa do equilíbrio das relações e quem sofre são a sociedade e os empreendedores de menor porte, principalmente.


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