Economia

Acordo inédito dá
fôlego temporário

ANDRE MARCEL DE LIMA - 05/01/1999

Nem gesto de vocacional cooperação ou de traição sindical, nem a descoberta empresarial do milagroso antídoto contra os efeitos da globalização misturada com recessão. O anunciado acordo entre Volkswagen do Brasil e Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (e também de Taubaté), filiado à CUT, que poupou de imediato 7,5 mil postos de trabalho, estabelece mesmo é histórica marca divisória nas relações entre capital e trabalho na maior montadora de veículos do Brasil. A decisão a que chegaram os negociadores Fernando Tadeu Perez, vice-presidente de Recursos Humanos da Volkswagen, e Luiz Marinho, presidente do Sindicato, revela o amadurecimento tanto de quem sabe que não fica impune a imagem de uma empresa que coloca de sopetão, no olho da rua, tantos trabalhadores, nem um sindicato que, à custa de leva de demissões, bata o pé pela manutenção de conquistas dos tempos de bonança. Situação bem diferente da Ford Brasil, em São Bernardo, onde, na semana seguinte, foram anunciadas 2,8 mil demissões.


O prevalecimento do bom senso entre Volks e sindicato ameniza os efeitos sociais da crise por que passa a indústria automotiva instalada na região, responsável por metade da produção nacional e por perto de 60% do PIB regional, considerando-se toda a cadeia direta e indiretamente envolvida com o setor. Entretanto, há sombras demais no horizonte, como as demissões na Ford, para que se comemore além da conta o resultado de negociação mantida à providencial distância da Imprensa. A perspectiva de continuar em baixa a produção de veículos, por força do desaquecimento econômico, e o já evidente excesso de capacidade de oferta, com as novas fábricas instaladas em outros territórios do País, conduzem qualquer agente social e econômico responsável a interpretações cautelosas sobre os impactos socioeconômicos no Grande ABC. 


O acordo entre Volkswagen do Brasil e Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (e também de Taubaté) não tocou numa velha ferida da qual os sindicalistas fogem e sobre a qual os executivos das montadoras comentam muito reservadamente: o custo trabalhista do Grande ABC, esmiuçado há três meses por esta revista. Como se trata de questões enraizadamente mais complexas, cujo desembaraço mais dia menos dias acabará mobilizando os dois lados porque a tendência é de que o torniquete da competitividade vai apertar cada vez mais, a Volkswagen preferiu desconsiderá-las nos acertos com o sindicato. Já a Ford lhe deu tratamento de choque. Tarefas típicas do Estado, como transporte, saúde, educação básica e mesmo profissionalizante, além de assistência previdenciária, ajudam a encharcar os custos das montadoras com recursos humanos e distorcem o padrão de competitividade interna e externa. 


15% menos -- A partir deste mês, os 26 mil trabalhadores das fábricas de São Bernardo e de Taubaté vão ter a carga de trabalho e os salários reduzidos em 15%. O que até há algum tempo poderia parecer provocação às lideranças do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC tornou-se a salvação da lavoura de empregos cada vez mais escassos. O presidente Luiz Marinho teve coragem para romper velhos dogmas, mas foi criticado por isso. O vice-presidente da CUT e presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo, João Vaccari Neto, embora pertença à corrente política de Marinho, não se furtou a estocar o dirigente. Vaccari disse que o acordo provocou constrangimentos à central sindical e acusou Marinho de agir precipitadamente, porque deveria ter debatido o assunto com a cúpula da CUT. Para quem não conhece a cultura da organização, a alternativa certamente seria a negativa sindical de contrabalançar o aumento dos custos relativos da montadora com menos salários. Provavelmente por saber o que lhe restava de opção, Marinho decidiu-se pela negociação direta.


O que a CUT mais teme é o efeito-cascata do acordo. Mas se depender do presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Campinas, Geraldo Mendes de Melo, o que valeu para São Bernardo e Taubaté está fora de cogitação no Município. O sindicato campineiro também integra a CUT e seu presidente foi menos cortês ao analisar a decisão de Luiz Marinho. Disse que foi um gesto de rendição que desmontou toda a estratégia da central de resistir à política do governo de retirar direitos dos trabalhadores. 


A resistência a Luiz Marinho também está localizada, mas disfarçada, no próprio Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Há forças dispersas que preferem o confronto à negociação. Eles não reclamam apenas das perdas financeiras, mas do restante do acordo. A economia de R$ 200 milhões que a Volks terá na folha de pagamentos é inferior aos ganhos que poderiam ser obtidos com o corte de 7,5 mil empregos, estimados em R$ 390 milhões. Mas isso não importa para os rebeldes. Até porque também foi acertado que a empresa vai reduzir o quadro dos atuais 21 mil trabalhadores de São Bernardo em cinco mil postos nos próximos cinco anos, período reservado à continuidade da reestruturação produtiva. 


É possível que os radicais preferissem o desemprego ao rebaixamento salarial, como se tornou rotina nas montadoras. Assim, teriam mais munição política para os embates com o governo federal. Mas Fernando Tadeu Perez e Luiz Marinho foram comedidos. A Volks, multinacional de capital alemão que se proclama sensível às questões sociais, precisava combinar a queda mensal de produção de 52 mil para 31 mil veículos com menos custos. A tentativa inicial de 20% de rebaixamento salarial e de redução da carga de trabalho acabou fracassando. Chegou-se, então, aos 15%. 


A novidade do acordo é que os trabalhadores vão continuar recebendo 100% dos salários. A mágica é simples. Os R$ 2,1 mil relativos ao pagamento da PLR (Participação nos Lucros e Resultados) vão ser subdivididos em pagamentos mensais. A empresa também pagará reajuste de 2,98% nos salários, conforme inflação medida pelo INPC. Também nesse caso introduziu-se novidade: a diferença será paga como abono. Os valores só serão agregados aos salários -- com consequentes encargos trabalhistas previstos na emaranhadíssima legislação de proteção social ao trabalhador e de sustentação de um modelo sindical dos tempos da ditadura de Getúlio Vargas -- se a concorrência praticar a mesma medida. 


40 horas -- O sindicato cedeu parte dos anéis para não perder os dedos, mas também conseguiu a garantia de que antiga reivindicação, em forma de semana de 40 horas semanais, será incorporada à fábrica assim que, prometeu Perez, o mercado voltar ao que chama de normalidade. Mesmo assim, as eventuais 40 horas não serão simplesmente homologadas. Há um trato entre as partes em que se coloca a necessidade de estudar meios de compensar o aumento real de custos decorrente da redução da carga horária com autênticas blitzes contra o desperdício. Enfim, a produtividade não poderá ser sacrificada. 


As fábricas de São Bernardo e de Taubaté ganharam também, com o acordo, a perspectiva de que o projeto PQ24, que comporta nova família de veículos, seria preferencialmente programada para o Grande ABC e o Vale do Paraíba. Fernando Tadeu Perez aposta na liderança histórica da Volks no mercado nacional, que tem no Gol o veículo campeão de vendas, mas advertiu sobre as dificuldades de investimento num mercado em retração. 


Cortes na Ford -- Já a situação na Ford São Bernardo é muito mais problemática. A empresa  anunciou a uma semana do Natal que começaria 1999 com menos 2,8 mil dos 6,8 mil funcionários,  por conta da persistente queda de produção. Um lacônico comunicado distribuído à Imprensa informou que a empresa passará a funcionar este ano com apenas um turno de trabalho. A direção da Ford não acredita que o mercado vá se recuperar este ano, depois de mergulhar numa queda de 40% desde a crise asiática. "As políticas de contenção monetária e o aumento da carga fiscal não indicam a probabilidade de modificação do atual quadro a curto prazo" -- informou a montadora. 


A radical decisão da Ford, contraposta ao gradualismo da Volkswagen,  indica que não existe uniformidade estratégica para tratar de redução do quadro de colaboradores entre as montadoras sediadas na região. Nem poderia ser diferente, porque têm culturas distintas. General Motors e Scania têm incentivado as demissões voluntárias, um meio caminho entre o avanço da Volks e o jogo duro da Ford. A Ford Brasil, segundo o presidente Ivan Fonseca e Silva, contabilizou ao final do ano a quarta temporada seguida de prejuízos. A participação da Ford no mercado tem oscilado entre 9% e 12%, apenas. 


As demissões na Ford são uma péssima notícia para o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC por pelo menos dois fortes motivos. Primeiro, o processo foi unilateral, sem que a empresa ao menos se dispusesse a ouvir o presidente Luiz Marinho. Segundo, porque quebra boa parte da espinha dorsal da mais aguerrida representação sindical das montadoras da região, característica que pesou na decisão da empresa de efetuar os cortes durante as férias coletivas, enviando telegramas aos demitidos. 


Paradoxalmente, a decisão da Ford acabou por fortalecer a posição negociadora de Luiz Marinho, cujos resultados derivam da aproximação que mantém com a direção de recursos humanos da Volkswagen. Regida pela mão invisível do mercado e permanentemente brutalizada pela imprevidente ação do Estado, a livre-iniciativa não encontra saída para sustentar-se senão o convencionalismo de recorrer à dispensa impactante ou gradual de trabalhadores. A decisão da Ford consagrou a flexibilidade de Marinho.


Em parafuso -- Depois de navegar em águas plácidas de produção sempre crescente a partir de 1994, quando foi lançado o Plano Real, a indústria automotiva brasileira entrou em parafuso com a crise que atingiu primeiramente a Ásia, depois a Rússia e em seguida o Brasil. O impacto da abertura econômica, entretanto, não poupa a mão-de-obra pouco preparada que durante décadas abasteceu um mercado fechado e sem referências de qualidade. Em novembro último, as montadoras brasileiras somavam menos de 100 mil trabalhadores -- exatamente 97.786. Foram 10 mil postos de trabalho a menos em relação a novembro do ano anterior e um total equivalente a 1973, quando o setor produziu 750 mil veículos, praticamente a metade dos 12 meses de 1998.


Esse enxugamento de pessoal a níveis de 25 anos atrás é uma das consequências dos efeitos da produtividade pós-abertura do mercado. Durante muitos anos a indústria automobilística nacional foi representada por apenas quatro fabricantes -- General Motors, Fiat, Volkswagen e Ford -- mas agora conta com outras 11 logomarcas. 


A previsão inicial de que a produção em 1998 atingiria a 2,5 milhões de veículos foi para o espaço. Anualizada, a produção de novembro somaria metade desse total. A projeção para 2001 é de que o Brasil terá capacidade de produzir três milhões de unidades. Resta ver onde vão se enfiar tantos veículos, quando se sabe que o mercado europeu tem crescimento vegetatino, o asiático é altamente competitivo, o americano já está bem coberto e o sul-americano, muito abaixo dos índices ideais, convive com a crônica dificuldade de deixar a condição de emergente.


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