Economia

O planeta de
rodas para o alto

RAFAEL GUELTA - 05/09/1999

Diálogo do repórter de LivreMercado com um gerente da Scania Latin America, por telefone, na quarta-feira 4 de julho de 1999:

-- A Volvo vai ou não comprar a Scania? -- pergunta o jornalista.

-- O Grupo Investor (ex-controlador da Scania) acaba de fazer grande investimento em ações e aumentou sua participação de 40% para 50%. Ganhamos fôlego para seguir em frente. Não seremos vendidos -- responde o gerente de bate-pronto.

Três dias depois, sábado 7 de julho de 1999, sai a notícia da compra da Scania pela Volvo.

O casamento encerrou namoro entre duas gigantes mundiais de caminhões e ônibus pesados, ambas com sede na Suécia, que começou em meados de 1998 e se tornou público em janeiro deste ano, na Feira Internacional de Bruxelas, na Bélgica.

O que aconteceu com a Scania, que tem a matriz latino-americana em São Bernardo, é ínfima parte de um processo de megafusões que agita o fim de século e atingirá direta ou indiretamente toda a cadeia produtiva da indústria automobilística entre os próximos cinco e 10 anos. Sob o lema Nada É Certo, Mas Tudo É Possível, o setor entra no terceiro milênio literalmente de rodas para o ar. Especulações, boatos e fofocas proliferam nos bastidores das linhas de montagem. Quando menos se espera, nova fusão é anunciada. Morre uma empresa com anos e anos de tradição para que a marca e o negócio sobrevivam sob novo comando. A expectativa é de que permaneçam seis ou sete megacorporações. É a lei da selva tecnológica, competitiva e globalizada.

"As megafusões vão se intensificar principalmente nos próximos cinco anos" -- prevê o economista e consultor automotivo Glauco Arbix, da USP (Universidade de São Paulo). Recém-chegado ao Brasil de estágio de três meses no conceituadíssimo MIT (Massachussets Institute of Technology), nos EUA, um dos principais pólos geradores de estudos e novos conceitos para globalização, Arbix confirma a previsão de especialistas norte-americanos de que sobrevivam no máximo sete megacorporações. "Eles já consideram definidas General Motors, Ford, DaimlerChrysler, Toyota e Volkswagen. Entendem que as montadoras coreanas estão fora, devido à instabilidade econômica do mercado asiático, e acompanham com redobrada atenção os movimentos da Ford, que numa só tacada pode comprar Fiat, Honda e BMW" -- analisa.

José Roberto Ferro, economista da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e um dos principais consultores da indústria automotiva no Brasil, acredita que o tempo para consolidação do novo cenário pode se estender pelos próximos 10 anos. "Honda e BMW garantem que pretendem permanecer independentes. Ainda não sabemos se terão fôlego para isso. A Volkswagen, mesmo com tendência de lucros decrescentes, continua sendo empresa forte. General Motors, Ford e DaimlerChrysler estão plenamente consolidadas. A Toyota se movimenta para expandir negócios nos mercados da Europa e Estados Unidos, manobra fundamental para sua sobrevivência. Na Ásia, a única companhia em condições de permanecer é a Hyundai, que comprou a Kia Motors. A Renault pode ser bem sucedida, pois se associou à Nissan, mas para isso é preciso que a Nissan supere dificuldades financeiras" -- relata o especialista.

O que José Roberto Ferro faz questão de sublinhar, e com isso acrescenta pitada de tempero picante no debate das megafusões, é que mudanças estruturais e tecnológicas que ocorrem a mil quilômetros por hora na cadeia automotiva terão influência decisiva. "Se as megafusões tivessem ocorrido há 20 anos, seria realmente evento extraordinário de compra e venda de um fabricante de veículos por outro. Mas é preciso observar que hoje montadoras são apenas um pedaço do negócio. Cada vez mais abrem mão da produção, enquanto fornecedores sistemistas como a Dana ampliam presença na linha de montagem" -- observa o consultor. A Dana, que comprou duas autopeças no Grande ABC -- Nakata e Stevaux --, faz 26% da picape Dakota que a Chrysler produz no pólo automotivo do Paraná. Outra gigante do setor, a Delphi, que se tornou independente da General Motors, é exemplo de fornecedor sistemista que ficou maior do que muitas montadoras.

Novos impérios -- Casamentos estratégicos como o da norte-americana Chrysler com a alemã Mercedes-Benz, que constituiu o segundo maior império da indústria automobilística, a DaimlerChrysler, celebraram-se com êxito no ano passado. Corporações financeiramente saudáveis e consolidadas em seus mercados, mas com dificuldades imensas para transpor limites territoriais na disputa por maior escala, Mercedes e Chrysler mataram dois coelhos com uma só cajadada. A montadora alemã conquistou a América, onde precisava se estabelecer para continuar crescendo. A gigante norte-americana abriu portas na Europa, mercado onde tinha dificuldade para atuar. A DaimlerChrysler atingiu no ano passado faturamento de US$ 154,6 bilhões em vendas. Só perdeu para a maior companhia do mundo, General Motors, que faturou US$ 161,3 bilhões.

Avaliado em US$ 92 bilhões, o casamento da Mercedes com a Chrysler extrapolou o sentido de simples megafusão automobilística. As duas empresas agregaram à parceria também negócios aeroespaciais, de serviços, sistemas sobre trilhos, motores a diesel e operações de eletrônica. Surgiu um grupo de proporções gigantescas que tem 421 mil empregados e gera sinergia com intercâmbio de componentes e tecnologia, poder mútuo de compras e logística combinada de distribuição. A expectativa é de que a médio prazo se intensifique a troca de knowhow nos campos da engenharia e produção. Como resultado esperam-se novos produtos e, mais que isso, ocupação de fábricas Mercedes por modelos Chrysler e de fábricas Chrysler por modelos Mercedes.

Também pelos mesmos laços empresariais da busca de novas tecnologias, modelos de gestão, produtividade, competitividade e escala mundial, a francesa Renault e a japonesa Nissan juntaram plataformas. Numa só tacada a companhia francesa investiu US$ 5,4 bilhões na compra de 36,8% do capital da Nissan Motor e 22,5% do capital da Nissan Diesel, e ainda anunciou disposição de adquirir integralmente as filiais da montadora japonesa na Europa por US$ 320 milhões. O acordo de parceria global, assinado em Tóquio, constituiu teoricamente a quarta maior indústria automobilística do planeta em capacidade de produção: 4,8 milhões de veículos/ano. A Renault fechou o exercício de 1998 com faturamento de US$ 40,6 bilhões, enquanto a Nissan, atolada em dívidas, atingiu US$ 49,7 bilhões.

Questão nacional -- Algo fora do comum nos negócios globalizados ocorreu no casamento da Volvo com a Scania, avaliado entre US$ 6 e 7 bilhões. Por tratar-se de empresas de mesma nacionalidade e fabricantes de produtos idênticos (caminhões pesados, ônibus e motores marítimos), o processo de fusão foi incentivado pelo governo da Suécia. Desde que as negociações tiveram início, em meados do ano passado, as autoridades suecas acompanharam atentamente todos os passos das duas companhias, numa tentativa de o país sobreviver no primeiro escalão da indústria automotiva. Volvo e Scania unidas constituem a maior fabricante de caminhões e ônibus pesados da Europa e a segunda maior, nos mesmos segmentos, no resto do mundo. 

O interesse da Volvo em adquirir a rival sueca foi manifestado oficialmente em 15 de janeiro deste ano, durante a Feira Internacional de Bruxelas, na Bélgica. O presidente da Volvo, Leif Johansson, informou na ocasião que a companhia adquirira 13% das ações da Scania e tinha interesse em assumir totalmente o controle da concorrente para aumentar lucros coordenando as duas operações. Em 22 de fevereiro as negociações para aquisição total foram interrompidas, com proposta da Volvo para que as duas montadoras criassem projeto de cooperação tecnológica de base e de componentes. Entre abril e maio passados a Volvo adquiriu mais ações da Scania e chegou a 20% do controle. No dia 6 de agosto, quando a aquisição foi concretizada, em Estocolmo, ficou definido que a Volvo terá participação de 49,3% no capital e 69,6% dos direitos de voto na Scania, com oferta pública para compra dos papéis que continuam em poder de outros acionistas.

Ser empresa atraente, com sistema de produção moderno e boa rentabilidade média, mas ao mesmo tempo ter ações com baixa cotação na Bolsa de Estocolmo, onde ingressou em 1996, foi o calcanhar de Aquiles da Scania. "Uma empresa com baixa cotação na bolsa corre o risco de ser comprada" -- havia alertado em março o presidente da montadora, Leif Östling, em editorial da revista Scania World, distribuída para funcionários de todas as unidades mundiais da empresa. No mesmo texto, em que pedia mais produtividade aos funcionários com o próprio de brecar os avanços da Volvo, Östling enfatizava que fusão com concorrente significa desativação de unidades de produção, redução da participação no mercado e desemprego. "Essas perspectivas foram confirmadas pelas análises feitas por nossas consultorias, entre as quais Alfred Berg e Deutsch Bank" -- escreveu o executivo.

O que vai acontecer com Volvo e Scania é segredo guardado a sete chaves. Fonte da cúpula da Scania Latin America diz que a médio prazo não devem ser mudadas as operações das duas empresas no Brasil -- em São Bernardo e Curitiba. Mas alerta para um componente fundamental da competitividade: o salário pago no Paraná equivale à quase metade do que recebem os trabalhadores da Scania no Grande ABC. Isso não significa que a Volvo venha a optar pela transferência da produção para o Paraná, até porque a fábrica da Scania em São Bernardo é mais produtiva que a da matriz, na Suécia -- seis caminhões homem/ano contra quatro caminhões homem/ano -- e tornou-se uma das mais modernas do grupo depois de ter recebido investimentos de US$ 300 milhões nos últimos quatro anos. É possível, contudo, que a nova operadora reposicione o negócio, com alguma perda para o Grande ABC. 

Efeito megafusão -- Em cenário tão complexo uma montadora não precisa ter ultrapassado o sinal vermelho do prejuízo, ou fracassado nas vendas, para ser absorvida por outra. A Scania, que vende 96% da sua produção fora da Suécia, é líder disparada no mercado brasileiro de caminhões e ônibus pesados. Registrou participação de 33,4% em 1998. A Volvo é terceira no ranking nacional. Detém 26% e fica atrás da Mercedes-Benz, que acumula 28,3%. Também na Suécia, onde a megafusão foi selada, Scania vende mais que Volvo -- 46,1% contra 44,7%, respectivamente.

Não é difícil desenhar esboço dos efeitos que as megafusões causam. Tomem-se como exemplo as participações de Mercedes, Volvo e Scania em alguns mercados internacionais. Na Suíça, onde a Mercedes fechou 1998 no topo do ranking com naco de 24,6%, a liderança agora se transfere teoricamente para a união Volvo/Scania, empresas que individualmente tinham participações respectivas de 15,3% e 17,9%. No México, mercado liderado pela norte-americana Kenworth (34,7%), nem mesmo o esforço da fusão fará com que Volvo e Scania consigam ultrapassar a Mercedes, segunda no ranking. As suecas somam participação de 6%, contra 29,8% da concorrente alemã.

O que por enquanto é a principal novidade da megafusão Volvo/Scania é a disposição das duas companhias em ampliar o foco de negócio para um novo produto: caminhões de médio porte. Ulf Selvin, presidente da Volvo do Brasil, anunciou recentemente em Curitiba que a montadora pretende fabricar caminhões de médio porte para entrar firme na concorrência com Ford, General Motors e Volkswagen. O mesmo tipo de produto vem sendo desenvolvido no centro de pesquisas da Scania na Suécia, numa evidência de que antes da associação as duas empresas já estavam antenadas nos próximos passos necessários para ganhar escala na economia globalizada. A Volvo vendeu para a Ford seu negócio com automóveis para concentrar-se exclusivamente em caminhões, ônibus e motores marítimos.

A tendência do mercado disputado pela megafusão Volvo/Scania é tornar-se cada vez mais concentrado, em consequência da competição crescente e de crises econômicas que pipocam no Terceiro Mundo. O que injeta esperança de negócios crescentes nas companhias é a mudança de perfil do consumidor. Ao mesmo tempo em que são menos numerosos, compradores de caminhões e ônibus exigem melhores produtos e serviços, além de linhas de financiamento para ampliar negócios.

Aí vem mais -- Megafusões que ocorreram até agora representam só o começo de uma revolução que se opera na indústria automobilística sem que seus principais atores tenham necessariamente controle da situação. O assunto do momento nos bastidores das montadoras é a Ford, que dispõe de US$ 23 bilhões em caixa para aquisições. Especula-se muito sobre a possibilidade de a gigante norte-americana, que até 1997 era a segunda maior indústria do planeta, comprar a italiana Fiat. Apesar de desmentidos das duas partes, não será surpresa se o negócio for fechado de uma hora para outra. Segunda do mercado automotivo no Brasil, onde ameaça ano a ano a liderança da Volkswagen, a Fiat tem pouquíssimo cacife para sobreviver independente de megafusão no resto do mundo porque é fortemente identificada como marca de um único país, a Itália.

As ações da Ford para crescer não param por aí. Proprietária da Lincoln, Mercury, Jaguar, Aston Martin, Volvo e 35% da Mazda, a montadora está de olho na Honda e BMW, montadoras com elevado índice de tecnologia e modernidade nos produtos. Com faturamento global de US$ 144,4 bilhões no ano passado, a Ford tem ambição de entrar no terceiro milênio como primeira maior montadora de veículos do planeta.  É essa a meta do Projeto 2000, desenvolvido nos Estados Unidos e aplicado em unidades de todos os continentes, que culmina no Brasil com a construção da fábrica mais moderna da corporação, no Pólo Petroquímico de Camaçari, na Bahia, onde será produzido o Amazon.

Eterna rival da Ford, a General Motors também está de olho na japonesa Honda e se movimenta na Coréia para adquirir a Daewoo. A montadora com sede brasileira em São Caetano elevou para 12% a participação no controle da Suzuki, que por sua vez é controladora da indiana Maruti em 40%. A GM possui as marcas Chevrolet, Saturn, Cadilac, Pontiac, Oldsmobile, Buick, Opel, Vaushall e Holden, além de participações de 50% na Saab e 37% na Isuzu.

Já nos bastidores da Volkswagen há muita expectativa sobre possível aquisição da igualmente alemã BMW. A Volks controla a Audi, Seat, Skoda, Bentley, Lamborghini e Bugatti e nos últimos anos expandiu negócios no Brasil com a construção de fábricas de caminhões em Resende (RJ), motores em São Carlos (SP) e automóveis Golf e Audi na Grande Curitiba (PR). Integrante do clã das sobreviventes, a gigante japonesa Toyota, que tem sede brasileira em São Bernardo, é controladora plena da Lexus e mantém 33% das ações da Daihatsu e 10% da Hino. Trata-se da única montadora, entre as grandes, que não abre mão de cuidar integralmente da manufatura dos produtos. 

País que sediará o maior número de montadoras no próximo século -- 16 ao todo --, o Brasil sofrerá efeitos diretos e indiretos das megafusões. Glauco Arbix diz em tom sarcástico que será preciso fazer garagens em forma de beliche para abrigar o volume de veículos que as automobilísticas pretendem fabricar no início do terceiro milênio. "As indústrias terão de trabalhar com 50% da capacidade ociosa, porque mesmo que o mercado cresça entre os próximos dois ou três anos, não há como vender três milhões de carros ao ano" -- analisa o consultor e professor da USP. Objetivo em sua forma de antever o futuro mercado, Arbix diz que o Brasil precisa desenvolver-se rapidamente em duas frentes -- emprego e exportação -- se não quiser assistir a tétrico espetáculo de canibalismo entre montadoras locais.

A exemplo das análises que valem para o mundo todo, Glauco Arbix enfatiza que General Motors, Ford, Volkswagen, DaimlerChrysler e Toyota têm mercado garantido no Brasil do próximo século. Sua expectativa é quanto ao desempenho das francesas Renault, que já produz na Grande Curitiba (PR), e Peugeot, que terá fábrica em Porto Real (RJ). "Não está descartada a hipótese de essas duas companhias se juntarem para criar sinergia" -- prevê o consultor. Sobre a fábrica de automóveis da Mercedes-Benz em Juiz de Fora (MG), Arbix diz que é grande a possibilidade de o projeto Classe A fracassar: "O preço é muito elevado para um carro subcompacto. Pode acontecer no Brasil o que aconteceu com a Mercedes na Europa, onde a montadora fracassou com o subcompacto Smart fabricado na França".

A análise do especialista José Roberto Ferro é voltada para o desenvolvimento tecnológico dos produtos. "Daqui para frente vai se reduzir bastante o ciclo de vida dos veículos, que ficará entre quatro e cinco anos, com reestilização após dois anos e meio do lançamento" -- afirma. Como também ocorrem megafusões entre fornecedores de autopeças, Ferro prevê que deve aumentar gradativamente o conteúdo de componentes importados em veículos manufaturados no Brasil. "Daqui para frente as megafusões terão impacto cada vez maior na produção automobilística brasileira" -- avalia o consultor.



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