Poucos assuntos dividem tantos corações e mentes como a globalização. O sinal mais claro disso é a promoção anual e simultânea de dois eventos antagônicos que polarizam as atenções planetárias: o Fórum Econômico Mundial, que reúne os maiores empresários, economistas e autoridades públicas do Primeiro Mundo, e o Fórum Social Mundial, que atrai acadêmicos, políticos, organizações não-governamentais e militantes sobretudo da esquerda à Capital gaúcha de Porto Alegre. Paralelamente aos dois encontros, também o jornal Folha de São Paulo convidou especialistas para um debate acalorado sobre assunto. Como era de se esperar, os argumentos pró e contra a globalização ficaram longe de desvendar a complexidade do tema, mas ajudam a jogar luzes sobre o fenômeno que influencia diretamente a vida de mais de seis bilhões de terráqueos.
Única participante estrangeira do evento, a franco-americana Susan George figura entre os principais críticos da mundialização econômica intensificada nas últimas décadas. Doutorada pela Escola de Altos Estudos e Ciências Sociais de Paris, autora de uma dezena de livros e vice-presidente da Attac (Associação pela Taxação das Transações Financeiras para a Ajuda aos Cidadãos), Susan George diz que a globalização é fenômeno economicamente injusto e socialmente perverso porque beneficia conglomerados empresariais ao mesmo tempo em que piora as condições de vida da população. Sua definição de globalização dá o tom da insatisfação: "Globalização significa liberdade para grupos empresariais investirem onde quiserem, no que quiserem e por quanto tempo desejarem. É a liberdade para controlar capital e pessoas e comprar e vender com a menor intervenção possível por parte do governo e de organizações sociais ou de trabalhadores".
Para a escritora e ativista, a globalização serve aos interesses de corporações transnacionais e dos mercados financeiros, o que condenaria vastos contingentes populacionais à marginalidade da civilização. "Nos últimos 20 anos, a desigualdade cresceu enormemente não apenas entre países ricos e pobres, mas também individualmente, dentro das nações. O que se observa em vários estudos é que os ricos estão mais ricos e poderosos e os pobres, cada vez mais pobres. Chegamos ao ponto em que 400 bilionários do mundo controlam riqueza equivalente à disponível para metade da população mundial, de três bilhões de pessoas. A realidade da globalização é de desigualdade e exclusão crescentes" -- acredita Susan George.
Se a globalização é tão nefasta para a maior parte da humanidade, porque as mobilizações não se avolumam e continuam restritas a eventos pontuais como o Fórum Social Mundial de Porto Alegre e aos protestos no Fórum Econômico Mundial? Se a internacionalização econômica consome bilhões de humanos como fogo em brasa, por que ativistas anti-globalização seguem sendo minoria incapaz de virar a mesa? De acordo com Susan George, o problema está no predomínio de uma ideologia pró-globalização que enfeitiça, distorce os sentidos e evita que quem mais sofre possa enxergar a verdade dos fatos.
"Globalização é uma daquelas palavras que nos dão a impressão de que todas as pessoas do mundo estão de mãos dadas, caminhando juntas em direção à Terra Prometida. Uma palavra messiânica, quase religiosa" -- satiriza. "Desfazer a ilusão da globalização entre cidadãos comuns é o primeiro grande objetivo de movimentos sociais como o de Porto Alegre. Devemos mostrar que não se trata de algo inevitável ou para o qual não existe alternativa, como sustentou a ex-primeira ministra inglesa Margareth Thatcher. Existem outras maneiras de organizar a sociedade. É preciso combater com essa idéia de que a globalização é tão natural quanto a lei da gravidade" -- afirma a ativista.
Susan George defende que é preciso atacar as inverdades, a seu ver, que sustentam o mito da globalização. "A noção segundo a qual as pessoas mais ricas do mundo se conscientizarão de que já têm o bastante e começarão a distribuir sua riqueza espontaneamente é uma das maiores ilusões que tentamos combater" -- afirma. "A realidade tem mostrado que não há limites máximos para as somas que podem ser acumuladas por indivíduos ou corporações. Conhecemos o limite mínimo, da destituição e da morte, mas os máximos não são estipulados" -- sustenta.
Susan George entende como outra falácia a crença de que a dívida externa dos países mais pobres será cancelada pelos mais ricos porque credores se sensibilizariam a respeito do sofrimento humano que a drenagem da cobrança de juros acarreta. "Eu sinto em dizê-los que tenho lido muito sobre o assunto e nada indica que haverá movimento espontâneo para o cancelamento das dívidas externas dos países pobres. E por uma razão muito simples: trata-se da melhor ferramenta política que já foi inventada, muito melhor que o colonialismo" -- diz, exemplificando com o caso brasileiro: "O Brasil pagou mais de US$ 587 bilhões em serviço da dívida entre 1980 e 2000".
Susan George até aventa a hipótese de que a globalização é movida por conspiração internacional. "Está claro que alguma coisa está indo terrivelmente errado no mundo. Ou nós podemos argumentar, em vez disso, que as coisas estão acontecendo exatamente da maneira como foi planejado, que estão indo perfeitamente bem, porque talvez as premissas do sistema sejam que os ricos devam enriquecer mais e dominar a maior parte dos recursos" -- observa.
Falso alarme -- Eduardo Gianetti da Fonseca expande o raio da discussão. O economista, sociólogo e professor do Ibmec (Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais) alarga o conceito de globalização transmitido pela ativista. "A definição de Susan George refere-se apenas a um componente da globalização, que é sua dimensão de integração econômica, comercial e financeira. Sem dúvida é um vetor importantíssimo do processo, mas gostaria de lembrar que existem muito mais coisas acontecendo. Citaria aspecto ainda mais fundamental que é o da mudança tecnológica, o surgimento de tecnologias que potencializam a comunicação e proporcionam um processo decisório global, integrado, ágil, extremamente rápido. A tecnologia está por trás de boa parte das mudanças econômicas" -- explica.
Eduardo Gianetti também considera como outro vetor importante a formação de blocos econômicos integrados, que a Europa vem liderando desde a criação da CCE (Comunidade Econômica Européia). "Entendo que cada um desses vetores deve ser discutido em seus próprios méritos, pois não são exclusivamente benefícios e incorrem em custos e benefícios que precisam ser ponderados com pragmatismo" -- pondera.
Ressalva feita em relação à abrangência da discussão, o professor do Ibmec discorda de Susan George sobre o caráter intrinsecamente maléfico da globalização. "Nem tudo são sombras e catástrofes nesse mundo de crescente globalização. É claro que existem problemas e desafios, mas nada que justifique o falso alarme permanente dos críticos da globalização" -- defende.
Eduardo Gianetti ilustra seu ponto de vista mencionando algumas conquistas importantes para a humanidade. Lembra que a esperança de vida média no mundo, incluindo países de menor renda, aumentou mais nos últimos 40 anos do que nos quatro mil anos precedentes: passou de 56 anos em 1960 para 67 anos atualmente. "Isso significa que quem nasce hoje vive, em média, 122 mil horas a mais do que alguém nascido quatro décadas atrás" -- reforça. Enquanto explicava que a elevação da expectativa de vida representa uma conquista universal, Eduardo Gianetti foi interpelado por uma voz feminina vinda da platéia que bradou: "Menos na Rússia". Ao que respondeu: "De fato, a Rússia é um dos poucos países do mundo onde a expectativa de vida reduziu-se marginalmente, provavelmente por conta do regime falido que foi o planejamento central da ex-União Soviética".
Eduardo Gianetti cita também que o poder aquisitivo da humanidade aumentou exponencialmente nas últimas décadas, muito mais do que os mais otimistas poderiam supor no passado. "A humanidade produz em 17 dias o que a economia dos nossos avós no início do século produzia em um ano. As novas tecnologias e a revolução científica são conquistas universais importantíssimas que não podemos perder de vista" -- afirma.
Ele menciona ainda que um domicílio típico dos países desenvolvidos tinha 80% de sua renda comprometida com moradia, alimentos e roupas no início do século XX. Atualmente apenas um terço da renda é empenhada nessas necessidades básicas. "Cada domicílio trabalhava 1,4 mil horas por ano para suprir necessidades com alimentação há um século. Hoje são 260 horas de trabalho" -- expõe. Outro dado: apenas 10% da população dos Estados Unidos estavam acima da atual linha da pobreza há 100 anos. Hoje, 15% da população norte-americana está abaixo da mesma linha de pobreza, atualizada pela inflação do período. "O número ainda é elevado, porém houve uma inversão para melhor" -- compara.
Em meio a inúmeros dados, Eduardo Gianetti toca num ponto primordial em qualquer discussão equilibrada sobre globalização: "A desigualdade aumentou, porém lembremos: os indicadores sociais melhoraram no mundo inteiro durante o século. O que aumentou foi a desigualdade relativa. Em termos absolutos, o mundo está claramente melhor" -- acredita.
Apesar do contraponto à visão exclusivamente negativista de Susan George, Eduardo Gianetti não deixa de apontar os efeitos colaterais da globalização. Cita a questão ecológica como uma das mais graves. "Existe uma grande dúvida quanto à sustentabilidade ambiental à luz do atual padrão de desenvolvimento econômico, sobretudo se países como Índia e China estiverem consumindo energia e recursos naturais tal como consome hoje o cidadão dos Estados Unidos ou da Europa" -- observa Gianetti. Com ele concorda o presidente da Fundação Abrinq, Helio Mattar, que também participou do debate. "Do ponto de vista ambiental há risco de uma crise brutal a curto prazo, por volta de 2025. A água está terminando em várias partes do mundo" -- lembra Mattar, conselheiro do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social e um dos fundadores do PNBE (Pensamento Nacional das Bases Empresariais).
A argumentação de que o progresso econômico potencializado pela globalização traz a reboque o comprometimento do meio ambiente deve ser contextualizada na realidade histórica para que não se incorra no maniqueísmo simplista. É bom lembrar que foi na ex-Alemanha Oriental enclausurada por décadas de regime comunista que vicejaram péssimas condições ambientais. Fábricas tecnologicamente obsoletas consumiam muito mais recursos naturais e geravam muito mais subprodutos tóxicos do que vizinhas do outro lado do Muro de Berlim. Com a unificação do país a partir da derrubada do Muro, em 1989, a Alemanha capitalista precisou socorrer a irmã oriental com bilhões de dólares empregados na recuperação do passivo ambiental. A criação de normas ecologicamente responsáveis como a ISO 14001, cada vez mais exigida sobretudo nas cadeias produtivas química e automobilística, representa mecanismo espontâneo de auto-preservação imprescindível nas análises mais acuradas.
Helio Mattar também analisa os efeitos da globalização sobre a cultura dos povos. Afirma que bens culturais têm sido transformados em bens econômicos numa velocidade espantosa, e que isso não é bom para a pluralidade que dá sentido à existência. "Para se transformar em bem econômico, o bem cultural necessita de escalas de produção e de demanda, de modo que a diversidade é reprimida em benefício do mercado. A diversidade cultural, que é uma característica básica do ser humano na medida em que confere sentido à vida, vem sendo acachapada por produtos que recorrem apenas aos apelos a que o ser humano tem de pior, que são suas emoções primárias" -- conceitua o presidente da Fundação Abrinq.
É verdade que a prevalência de interesses comerciais está por trás da superexposição de lixos musicais e cinematográficos que encontram campo fértil na pobreza cultural dos consumidores. Mas é verdade, também, que bons filmes e boas obras musicais nunca foram tão acessíveis graças à economia de escala de produção. Obras-primas de ícones da música clássica como Mozart e Bach deixaram de ser privilégio de poucos na época em que foram concebidas para se transformarem em domínio praticamente universal no limiar do século XXI graças ao mercado fonográfico. O mesmo ocorre com os livros no mercado editorial. Em se tratando de globalização, é sempre recomendável relativizar e contextualizar as análises para não correr o risco de tropeçar no vale do extremismo.
Ou como bem diz o ex-ministro Bresser Pereira, que também participou do debate: "É perda de tempo discutir se a globalização é boa ou não. O desafio é estender seus benefícios ao maior número possível de pessoas" -- afirma o professor da FGV e da USP.
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