Que diferença existe entre uma empresa privada especializada em auditoria financeira e uma agência de capital público e privado que se apresenta como especializada em produção e interpretação de pesquisas econômicas? Depende do endereço, eis a resposta mais sensata. A Arthur Andersen e a Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC têm dimensões e atividades diferentes, mas trabalham com um mesmo produto de consumo decisivo nestes tempos de globalização: informação.
A Arthur Andersen se enroscou na maquiagem de números da gigante americana de eletricidade Enron, entre outros motivos, porque está sediada num país democraticamente consolidado. Já a Agência de Desenvolvimento Econômico não encontrou ainda na esfera judicial uma única oposição à manipulação de dados que dissemina, feitos para enganar eventuais investidores. Analogamente, a interpretação dada aos levantamentos da Agência tem o mesmo sentido fraudulento que abalou não só a matriz da Arthur Andersen, mas também todas as ramificações da empresa espalhadas pelos mais diferentes cantos do mundo.
A Arthur Andersen está enredada na amortização dos prejuízos de acionistas, credores e empregados da Enron, que faliu há quatro meses. O complô entre administradores da companhia elétrica e auditores provocou um dos maiores colapsos no setor de consultoria e consultoria e auditoria financeira no mundo. A Arthur Andersen continua a registrar baixas de clientes do portfólio. Um abalo sísmico para quem faturou no ano passado US$ 4,5 bilhões só na América do Norte. Se o valor é por si só estratosférico, porque significa cinco vezes o orçamento coletivo das sete prefeituras do Grande ABC, os prejuízos são ainda maiores -- perto de US$ 50 bilhões, ou quase tudo que o Brasil exportou no ano passado.
O que a Arthur Andersen fez ao auditar os balanços da Enron é semelhante ao que o pesquisador João Batista Pamplona exibe como coordenador de pesquisas da Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC. Enquanto a empresa norte-americana escondia dívidas de bilhões de dólares e turbinou os lucros por longo período contando com auxílio de um auditor (ir) responsável que fez desaparecer documentos comprometedores depois de se dar conta de que o barco afundava, João Batista Pamplona maquiava dados sobre a realidade econômica do Grande ABC. Tudo em nome de um triunfalismo propositadamente preparado para tornar a região objeto de desejo de investidores.
Esclerose -- As bravatas estatísticas e interpretativas de João Batista Pamplona à frente da coordenadoria de pesquisas da Agência estão impressas não só em documentos oficiais da entidade que é mantida por recursos públicos e privados, mas também na Imprensa. Um exemplo da esclerose dos dados massificados por Pamplona sem que ao menos a mídia (exceto LivreMercado e o boletim eletrônico Capital Social) movesse um único músculo de estranhamento está nas edições de 6 de setembro do ano passado, um dia depois de o professor-doutor da Agência reunir repórteres em entrevista coletiva. O jornal Valor Econômico, sob o título Pesquisa Descarta Fuga de Indústrias da Região do ABC, apresentava as seguintes informações:
O dinamismo da indústria na região do ABC, na Grande São Paulo, manteve-se intacto nos anos 90. Pesquisa inédita da Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC mostra que o chamado esvaziamento industrial da região não ocorreu. A participação da indústria local no Valor Adicionado fiscal do Estado de São Paulo manteve-se na média história de 15% ao longo da década (...) Ele (João Batista Pamplona) admite que a produção física possa ter diminuído, mas o valor da produção permaneceu no mínimo igual. (...) A tese do economista é de que as empresas locais foram forçadas à modernização a partir da abertura da economia, no início dos anos 90. Ao mesmo tempo, enfrentaram a sobrevalorização dos primeiros anos do real. A moeda fortalecida artificialmente derrubou as exportações, mas facilitou parte do processo de modernização, via importação de máquinas. (...) O ABC passou a produzir itens de maior valor adicionado, com uso mais intenso de tecnologia e menor de mão-de-obra. Isso ajudou a manter sua participação proporcional no bolo da economia paulista, ainda que a produção oscilasse ao sabor da expansão ou contração da economia. (...) A pesquisa chegou também a um dado surpreendente: a saída de algumas fábricas ou linhas de produção entre 1990 e 1996 foi compensada pela chegada à região de novas unidades fabris. E praticamente na mesma proporção. (...) Ele (Pamplona) considera "surpreendente" o fato de a região continuar mantendo sua participação no bolo do Estado e do País, já que é "muito mais fácil novas áreas industriais crescerem mais rápido que regiões maduras".
Fossem os consumidores de informações econômicas sobre o Grande ABC tão maduros quanto os clientes da Arthur Andersen, o pesquisador João Batista Pamplona e a Agência de Desenvolvimento Econômico estariam em maus lençóis, porque as fantasias levadas aos leitores de Valor Econômico e de outras publicações significam manipulação pura. A Gazeta Mercantil, na edição de 20 de setembro, publicou a mesma linha triunfalista do professor estatístico sob o título Estudo Derruba Tese de Esvaziamento do ABC. Alguns trechos selecionados mostram bem o tamanho do rombo na credibilidade da Agência:
A um custo de 100 mil empregos perdidos, as indústrias do ABC reestruturaram suas linhas de produção em ritmo mais acelerado que em qualquer outra região do Estado de São Paulo durante a década de 1990. A informação consta de uma pesquisa divulgada ontem pela Seade (Fundação Estadual de Análise de Dados e Estatísticas) e pela Agência de Desenvolvimento do ABC. Para a fundação, os números derrubam a tese de que as indústrias do ABC fugiram em massa da região nos anos 90. Com informações de 1996, mas tabuladas somente neste ano, o estudo revela que 1,1% de todas as indústrias do ABC receberam novas linhas de produção entre 1994 e 1996. Embora baixo, o índice refere-se a um universo de empresas em geral de grande porte, responsáveis por 22,7% de todo o Valor Adicionado fiscal gerado pela indústria do ABC. (...) "Por ter se modernizado muito, a indústria do ABC está apta a crescer com fatores macroeconômicos mais favoráveis" -- afirma o coordenador de pesquisa da Agência do ABC, João Pamplona. (...) "O mito da desindustrialização do ABC foi construído em torno da perda de empregos industriais, e não com base na geração de riquezas dessa indústria" -- diz a pesquisadora Maria de Fátima Araújo, do Seade.
LivreMercado tem-se debruçado historicamente sobre os dados e as realidades do Grande ABC e, sistematicamente, faz alertas sobre fantasias construídas com objetivos nem sempre claros, como a maquiagem que envolveu os consultores da Arthur Andersen e que implodiu a Enron. Vejam alguns pontos de análise desta publicação:
No período de 1980 a 2000, sempre levando-se em conta um intervalo de cinco anos e considerando apenas o Estado de São Paulo, a participação do Grande ABC no Valor Adicionado estadual manteve-se declinante, exceto entre 1990 e 1995, segundo dados oficiais e não-manipulados pela Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo. O único período de evolução, na comparação ponta-a-ponta a cada quinquênio, deu-se de 1990 a 1995 porque a base de comparação (90) e o topo (95) opuseram fases distintas, de recessão do Plano Collor e de pleno vigor do Plano Real.
Numa comparação ponta-a-ponta da geração de riquezas no Grande ABC entre 1980 e o ano 2000, que reúne os dados mais atuais, a região perdeu um terço (exatamente 32,7%) de participação no VA do Estado. O Grande ABC tinha 13,68% de participação em 1980, contra 9,35% no ano 2000. Em vez de gerar R$ 21,2 bilhões em 2000, a região deveria ter gerado RS 31,6 bilhões para manter estável sua participação no Valor Adicionado do Estado.
Os cinco primeiros municípios do Interior do Estado no bolo do Valor Adicionado do Estado saltaram no mesmo período (1980-2000) de 8,12% para 16% -- uma clara inversão na comparação com o Grande ABC.
Os números esgrimidos pelo consultor João Batista Pamplona nos anos 90 são seletivamente dissimulados. Em 1994, primeiro ano do Plano Real, o Grande ABC totalizou 13,86% do Valor Adicionado do Estado. Sete anos depois, em dezembro de 2000, o Grande ABC registrava apenas 9,35% de participação, segundo dados oficiais da Secretaria da Fazenda do Estado e de estudos conjuntos de LM e ASPR Auditores e Consultores. Nesse período, São Bernardo, a Capital Econômica da região, perdeu 25% de Valor Adicionado, descontada a inflação do período.
Em 1995, segundo dados oficiais da Fundação Seade e sempre considerando a atualização da moeda até dezembro de 1999, o Grande ABC gerou R$ 24,4 bilhões de Valor Adicionado. Quatro anos depois, em 1999, o mesmo Grande ABC gerou R$ 19,7 bilhões. A diferença significa que a região deixou de gerar riquezas equivalentes a dois municípios de grande porte do Estado, casos de Osasco e Ribeirão Preto, que somaram R$ 4,7 bilhões de Valor Adicionado em 1999.
Os 4,54 pontos percentuais que separam o Valor Adicionado conjunto do Grande ABC na comparação ponta-a-ponta (1980 e 2000) significam todo o Valor Adicionado de Osasco, Sorocaba, Jundiaí, Franca, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra juntos.
Santo André é o caso mais grave entre os sete municípios do Grande ABC que sofreram a desindustrialização negada pelo representante da Agência de Desenvolvimento Econômico. Em 1980, a cidade contava com 3,4% de participação no Valor Adicionado do Estado e 24,4% do Valor Adicionado gerado dentro da região. No ano 2000, a participação de Santo André no bolo estadual caiu para 1,62% e sua força regional foi reduzida a 18,5%.
São Caetano, outro Município fortemente desindustrializado, foi a primeira cidade do Grande ABC a dar sinais de enfraquecimento industrial. Em 1980 sua participação no Valor Adicionado do Estado chegava a 1,98%. No ano 2000, caiu praticamente à metade, com 0,96%.
João Batista Pamplona mistifica os dados do Grande ABC sem considerar um ponto de agravamento do quadro de desindustrialização, ao retirar das análises uma avaliação mais ampla, envolvendo o País. Isso significa que mesmo que afirmasse verdades, e não bobagens, o Grande ABC colecionaria perdas. Tudo porque a Região Metropolitana de São Paulo perdeu participação na produção da indústria de transformação do País de 44% em 1970 para 26% em 1999, conforme pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas). Internamente, no mesmo período, a RMSP desceu sua participação de 76% em 1970 para 54% no valor de transformação industrial do Estado de São Paulo. Conclusão: como o Grande ABC foi quem mais perdeu dentro da Região Metropolitana de São Paulo e como a Região Metropolitana de São Paulo perdeu para o Interior do Estado de São Paulo e como o Estado de São Paulo perdeu para o Brasil, está claro, embora pareça confuso, que a participação relativa do Grande ABC em qualquer período que se faça -- e mesmo no único período em que subiu em relação a cinco anos antes -- manteve-se inexoravelmente declinante.
O Índice de Potencial de Consumo produzido anualmente pela Target Marketing e Pesquisas com base em coquetel de dados que tem o IBGE como principal fonte alimentadora detectou que nos últimos 10 anos o Grande ABC perdeu o equivalente a US$ 2,5 bilhões. O montante significa uma Santo André inteira de perda de potencial de consumo.
A afirmação do professor-doutor de que o dinamismo da indústria do Grande ABC manteve-se intacto é algo semelhante ao auditor da Arthur Andersen avalizar os balanços da Enron. Isso porque a pretensa manutenção do Valor Adicionado é uma manobra numérica que, entre outras armações, transformou o conceito de Valor Adicionado utilizado pela Secretaria da Fazenda do Estado em Valor Adicionado Fiscal. VA Fiscal não existe como medidor de geração de riqueza. Trata-se de uma evidente maquiagem que não consta das estatísticas mais responsáveis da Secretaria da Fazenda do Estado.
Segundo João Pamplona, o uso mais intenso de tecnologia e de menos mão-de-obra tem influência na suposta manutenção da participação proporcional do Grande ABC no bolo da economia paulista. A avaliação é incorreta: primeiro, porque não se manteve a produção; segundo, porque, contrapondo-se aos investimentos tecnológicos que geram efetivamente mais Valor Adicionado, o número de empreendimentos que faliram ou evadiram da região gerou resultados negativos muito mais expressivos.
Pamplona confessa surpresa com o fato de o Grande ABC continuar mantendo sua participação no bolo do Estado e do País, já que é "muito mais fácil novas áreas industriais crescerem mais rápido que regiões maduras". A surpresa, no caso, é subproduto direto da maquiagem dos números.
A pesquisadora Maria de Fátima Araújo, da Fundação Seade, afirma que "o mito da desindustrialização do ABC foi construído em torno da perda de empregos industriais, e não com base na geração de riquezas dessa indústria". A companheira de João Batista Pamplona na coletiva à Imprensa adquiriu o vício da deturpação das análises. LivreMercado jamais vinculou diretamente a desindustrialização ao desemprego, e sim aos dados econômicos de várias fontes. Entretanto, a sincronia entre um e outro é evidente: entre 1985 e 2000, segundo dados do Ministério do Trabalho, a região perdeu 143 mil empregos com carteira assinada na indústria. Uma perda que segue em paralelo com a redução do Valor Adicionado na indústria de transformação.
Os dados divulgados por João Batista Pamplona pecam pela descontextualização cronológica, já que os números se referem a informações coletadas (e desvirtuadas) em 1996, enquanto as análises foram produzidas no final do ano 2001. Havia informações mais atualizadas, como revela LM, que estudiosos mais cautelosos e menos fantasiosos utilizariam para construir interpretações mais sérias. Ao deslocar do tempo as considerações relevantes, João Batista Pamplona e a Fundação Seade apresentaram aos investidores consumidores de informação algo parecido com a avaliação do balanço da Construtora Encol cinco anos depois, quando os indicadores não resistiram à realidade das transformações que, inclusive, a levaram à derrocada.
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