A julgar pelo afogadilho da Carta da Câmara do Grande ABC formulada pelo
presidente do Consórcio Intermunicipal e prefeito de Santo André, Celso Daniel,
e pela predominância de representantes do Poder Público nos trabalhos dos grupos
temáticos, o documento que vai ser apresentado como Acordo do Grande ABC talvez
se consagre como repeteco da desajuizada Constituição dos Miseráveis, como assim
a batizou o ingenuamente premonitório Ulysses Guimarães.
O risco de que o documento seja tão detalhista quanto dispersivo e de que o
romantismo sobreponha-se ao pragmatismo não pode ser desprezado quando se sabe
que o perfil de boa parte dos formuladores das propostas de recuperação do
Grande ABC está voltado para o Estado provedor que morreu de morte morrida e nem
direito à missa de sétimo dia teve.
São aflitivas as questões que castigam o Grande ABC real, aquele que os mais
sensatos descobrem nas filas quilométricas dos poucos empregos que aparecem; nos
corredores indianos de marreteiros; na explosão da informalidade de produtos e
serviços comercializados em veículos utilitários populares; na proliferação de
bares, mercearias, botecos, mercadinhos, armarinhos e tantos outros
estabelecimentos que passaram a ocupar espaços antes destinados ao carro da
família que o aperto financeiro transformou em dinheiro; na inescapável fuga em
direção à habitação na periferia da periferia; na crescente onda da
criminalidade e na presença cada vez mais chocante de menores ao desabrigo ou
entregues às drogas.
São tão aflitivas essas questões e tantas outras que escancaram a fragilidade
social de um País abatido ao longo dos tempos pelo Estado todo-poderoso, que se
converterá em atentado à lucidez qualquer documento que não vá fundo em busca de
reformas de verdade.
Resta saber até que ponto se estende a disposição dos executores do Acordo do
Grande ABC em aplicar tratamento de choque num organismo flagrantemente
debilitado, ou se vão mesmo prevalecer terapias tradicionais que
substancialmente pouco alterarão o estado do paciente. Não é privilégio da
região a propensão ao comodismo e à demagogia, ao jogo de cena e ao marketing
irresponsável.
Não são patentes exclusivas do Grande ABC a escamoteação e o jogo do
faz-de-conta. O Brasil especializou-se em fingir que está botando a mão na
massa, quando na verdade a mão vai em outra direção. Se pretenderem fazer do
Acordo do Grande ABC algo copperfealdiano, em que os efeitos especiais de
retóricas de especialistas em política partidária se rivalizariam com
prestidigitações de palavras de ordem de profissionais de corporações que só
enxergam seus próprios umbigos, o custo histórico seria ainda mais comprometedor
do que o descaso que imperou por aqui durante as quatro décadas que separam os
tormentos atuais do foguetório do desembarque das montadoras de veículos.
Tomara que a maior parte dos responsáveis pela formulação do Acordo do Grande
ABC não seja tomada pelo corporativismo. Mudanças urgem em todos os setores. O
sindicalismo não pode continuar entendendo que só tem crédito na praça e que o
desemprego globalizado já é a cota de contribuição de perdas que poderia
dar.
Os empresários, sobretudo os de médio e grande portes, precisam sintonizar-se
com a responsabilidade de inserção regional não só para usufruto de vantagens
mercadológicas, mas também de responsabilidade social. A classe política não
pode continuar pensando apenas nas próximas eleições, subordinando tudo a esse
pressuposto. E o restante da comunidade, de pequenos empreendedores à classe
universitária, de profissionais liberais a lideranças de bairros, precisa
aprender que ou se mexe para valer ou a casa cai de vez.
Por isso é importante que esse documento paute os novos tempos com a marca da
ousadia e do vanguardismo. Que não seja mais uma carta de boas intenções, porque
de boas intenções e de safadezas o inferno está cheio. Um documento que busque a
consensualidade de ocasião seria o pior dos documentos. Se sobrarem aplausos em
sua apresentação, como parece ser a tendência, faltarão bom-senso e
responsabilidade.
Generalidades fazem bem ao ego de quem as propõe, mas causam indigestão a
quem almeja especificidades, resultados. O Acordo do Grande ABC é rara
oportunidade de cavoucar soluções locais e regionais independente dos humores e
dos horrores de Brasília. Até porque, daquele mato não sai mais coelho. Quanto
muito, saltam umas ratazanas vorazes.
Será que o Grande ABC está preparado para romper com a eterna e estúpida
expectativa de dependência do governo central? Será que o Grande ABC conseguirá
partir de vez os grilhões do corporativismo de suas instituições? Será que o
Acordo do Grande ABC vai quebrar definitivamente o autarquismo municipalista?
Será que o Grande ABC vai ser Grande ABC de verdade? Será que o Acordo do Grande
ABC vai ser apenas um segundo tempo de uma pelada de fracassos? Que será do
Grande ABC depois do Acordo do Grande ABC?
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28/01/2025 QUANTO É PAULINHO SERRA VEZES SETE?