Chuvas e trovoadas continuam castigando a cadeia automobilística no panorama internacional. Depois da gigante norte-americana de autopeças Collins & Aikman, outra peso pesado pode pedir concordata nos Estados Unidos. A Delphi advertiu que se não conseguir reduzir custos e obter apoio financeiro por meio de negociações com sindicatos e com a GM — a principal cliente — também poderá correr para as barras da saia da Justiça.
A declaração oficial assume ares de ameaça na medida em que representa mal negócio para as montadoras. Ao alegar judicialmente que a renegociação de contratos de fornecimento é questão de vida ou morte, a Collins forçou montadoras dos Estados Unidos e da Ásia a absorver reajustes de preços — atitude impensável por livre e espontânea vontade.
Dramas internacionais como da Collins e da Delphi, que amargou prejuízo líquido de US$ 338 milhões no segundo trimestre deste ano, têm ligação direta com o futuro do Grande ABC, que produziu 23,86% dos veículos brasileiros no ano passado e sedia 89 das 461 associadas ao Sindipeças (Sindicato Nacional da Indústria de Componentes Automotores). Mas, ao contrário do que parece à primeira vista, nuvens carregadas no horizonte internacional não devem desestimular medidas que adensem o parque de fornecedores no Grande ABC e revertam a mão das perdas industriais. A importância socioeconômica de montadoras e autopeças é grande demais para ser desprezada.
Além disso, por mais que os alicerces da indústria automotiva estremeçam mundo afora, a civilização jamais deixará de contar com veículos para potencializar o desejo de ir e vir. Se automóveis, picapes e caminhões formam patrimônio inalienável do modus vivendi e hão de ser indiscriminadamente fabricados em algum lugar, que o Grande ABC desenvolva condições para continuar como um dos territórios escolhidos. É provável que a sobrevivência de montadoras e sistemistas de autopeças passe por nova e vigorosa onda de fusões e aquisições nos próximos anos, conforme prevêem especialistas. É imperativo que a região se prepare para o novo figurino do setor.
Longe de desencorajar, a constatação de que a cadeia automotiva enfrenta dificuldades estruturais impulsiona ações à atratividade de fornecedores. Como assim? Simples. É exatamente pelo fato de sistemistas de autopeças viverem na corda bamba financeira que política de atração de investimentos balizada nas necessidades das empresas pode trazer grandes resultados. É caso típico de crise travestida de oportunidade à paisana. Basta ter competência para operar mudanças em vetores locacionais, trabalhistas, sindicais e logísticos que determinam o xadrez no tabuleiro globalizado.
A Delphi em apuros nos Estados Unidos tem tudo para compor um dos alvos da cruzada regional de adensamento da cadeia automobilística. A subsidiária brasileira da companhia norte-americana mantém matriz administrativa em São Caetano, mas as unidades fabris estão espalhadas pelas mineiras Paraisópolis e Itabirito; por Espírito Santo do Pinhal, Piracicaba, Jambeiro, Jaguariúna e Cotia, no Interior de São Paulo; além da gaúcha Gravataí. Chega a ser acintoso para o descuido de competitividade que uma multinacional do porte da Delphi mantenha o quartel general estrategicamente fincado no Grande ABC mas prefira gerar impostos e empregos bem longe da sede.
A Visteon, outra gigante multinacional em situação delicada nos Estados Unidos, também assume conformação que transforma em alvo potencial de política regional de atração de fornecedores. A empresa possui seis unidades fabris na América do Sul, mas nenhuma no Grande ABC. As fábricas brasileiras da Visteon estão em Guarulhos, Manaus e Camaçari; as argentinas encontram-se em Rio Grande e Buenos Aires.
Mais um exemplo de produção com grife internacional que escapa por entre os dedos do Grande ABC? A Valeo mantém linhas em localidades tão diversas quanto Itatiba e Campinas, Interior de São Paulo; Camaçari, Gravataí e até na Capital paulista. Também possui uma fábrica de sistemas de segurança em Diadema e um centro de distribuição em São Bernardo. O problema é que a manufatura na região está com os dias contados, porque a multinacional francesa constrói fábrica em Guarulhos: vai concentrar ali até meados de 2006 a produção do Grande ABC e do bairro paulistano da Cantareira.
Sem registro
A quantidade de indústrias que gravitam em torno das montadoras e que poderiam ser atraídas para a região com estímulos certeiros é maior do que fazem crer dados oficiais do setor. O mais recente anuário do Sindipeças mostra que o Grande ABC reúne 89 das 461 associadas. Análise da listagem completa deixa claro que a região está longe de acolher 19,3% das fábricas de autopeças do Brasil. A radiografia da entidade situa as associadas de acordo com o endereço da sede, sem levar em conta a localização de filiais fabris pulverizadas por outras regiões. Como muitas autopeças estão sediadas no Grande ABC mas têm fábricas em outros territórios, é líquido e certo que a participação de quase 20% captada pela leitura superficial esteja superestimada.
A Metagal foi criada em Diadema e se espraiou com produção em Minas Gerais, Amazonas e Paraná, mas na lista do Sindipeças aparece apenas pelo endereço no Grande ABC. O mesmo ocorre com várias empresas que surgiram na região, mas tomaram rumos diversos a reboque da guerra fiscal, da descentralização da produção de veículos, do inchaço dos custos regionais e, sobretudo, da incapacidade de reação agora ensaiada.
Em outros casos, o levantamento do Sindipeças exibe mais de um endereço da mesma empresa, mas ainda assim não contempla a totalidade da pulverização. É o caso da Delphi, representada apenas pela sede em São Caetano e pela Delphi Diesel Systems do Brasil, em Cotia.
A constatação de que o Grande ABC reúne menos que os 19,3% consolidados pelo senso comum não surpreende. Se nem as montadoras suportam o sobrepeso dos custos a ponto de terem reduzido para menos de 22% a participação do Grande ABC na produção nacional de automóveis e comerciais leves, o que esperar de autopeças que, além de receber pressão das montadoras, são muito mais sensíveis a custos trabalhistas?
O raciocínio exclusivamente econômico também explica por que o Grande ABC nada de braçadas no oceano dos veículos pesados com participação de 60,1% na produção nacional de ônibus e caminhões: são produtos de alto valor agregado, que compensam o peso da mão-de-obra comprovadamente mais cara do País. Nenhuma montadora explicita tão bem essa realidade quanto a Ford — trouxe a fábrica de caminhões do Ipiranga para o Grande ABC e concentrou a produção de automóveis e comerciais no complexo industrial nordestino de Camaçari.
O segmento de veículos pesados, aliás, proporciona potencial de adensamento que vai além do filão das sistemistas de autopeças. A DaimlerChrysler de São Bernardo produz mais da metade dos chassis de ônibus brasileiros, mas o Grande ABC não conta com encarroçadoras, como são chamadas as empresas que fabricam cabines acopladas aos chassis — a maior das quais é a Marcopolo, sediada na gaúcha Caxias do Sul. Além disso, a região não tem fábricas de implementos rodoviários tão indispensáveis a caminhões quanto salsichas a hot dogs.
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