Encalacrado sob o ponto de vista logístico e dono de altos custos locacionais e tributários inerentes às regiões metropolitanas, o Grande ABC conta com pelo menos um grande argumento para atrair os investimentos necessários à retomada do crescimento econômico: o ABC de Lula e das grandes conquistas trabalhistas já não existe mais para o contingente majoritário de pequenas e médias empresas historicamente pressionadas pelos sindicatos. Apenas no restrito habitat das montadoras, sistemistas de autopeças e grandes empresas químicas e petroquímicas os privilégios resistem relativamente intocados. Na maioria absoluta dos agentes produtivos, o custeio total de alimentação, saúde e transporte e bolsas-educação são espécie em extinção.
E mais: por incrível que pareça para quem se acostumou a enxergar o Grande ABC como sinônimo de resistência e oposição ferrenha aos interesses patronais, o sindicalismo regional é hoje muito mais ameno que o praticado em outras localidades paulistas e brasileiras de industrialização mais recente. O aprendizado acumulado em décadas de erros e acertos e o quadro regional de esfacelamento produtivo fizeram emergir na região a cultura da negociação no lugar do espírito de reivindicação que desponta firme e forte em outras plagas. Trocando em miúdos, em matéria de relação capital-trabalho o Grande ABC é pós-graduado, enquanto outras regiões do Estado estão no jardim da infância.
A constatação de que virou pó o ABC do sindicalismo inflamável e das conquistas trabalhistas emerge em qualquer conversa com o sindicalista Cícero Firmino Martinha da Silva, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra. Com experiência de quem vivencia diariamente o front pragmático das relações entre patrões e empregados, Cícero Martinha afirma que praticamente todo o leque de benefícios conquistados nos tempos do sindicalismo revolucionário foi eliminado ou substancialmente reduzido em consequência da abertura alfandegária do País e da crise econômica acentuada no governo FHC. Apenas o conjunto restrito das gigantes multinacionais mantém parte das chamadas conquistas, que no cenário de alto desemprego acabaram virando regalias.
"Foram para o espaço planos de saúde, vale-alimentação e transporte subsidiado que as empresas ofereciam aos trabalhadores" -- revela Martinha. O dirigente sindical garante que São Bernardo e Diadema vivem situação semelhante, mas lideranças da CUT (Central Única dos Trabalhadores) preferem o silêncio porque essa realidade não combina com discursos triunfalistas sobre o movimento sindical. Conclusão: de região estigmatizada e repulsiva à iniciativa privada, a duras penas o Grande ABC se transformou em localidade interessante para novos investimentos sob o ponto de vista sindical.
Cícero Martinha explica que a necessidade de garantir sobrevivência e competitividade a empresas premidas de um lado por dificuldades macroeconômicas e de outro por obstáculos tipicamente regionais foi a força maior que fez com que os trabalhadores do Grande ABC abrissem mão de valiosos benefícios conquistados no passado.
Além de sofrer com alta taxa de juro, crédito caro e escasso e carga tributária irracional, empreendedores regionais ainda duelam com os impactos microeconômicos de um ABC duramente atingido pela abertura comercial descalibrada e que perdeu 34% de riqueza industrial (medida pela geração de Valor Adicionado) na gestão FHC. Seria sobrenatural se, além da dupla asfixia nacional e regional, pequenos e médios negócios continuassem a custear na mesma proporção serviços teoricamente pertencentes ao Estado, que no ano passado abocanhou 36% da riqueza nacional na forma de pesados impostos.
Túnel do tempo
Está provado que os custos trabalhistas chegam a representar outro salário para as empresas. Por mais que a amenização desse peso trabalhista sobre os ombros dos agentes produtivos seja compreensível num contexto de vida ou morte empresarial, o fato de sindicalistas de diferentes regiões pensarem de formas distintas é precisamente o aspecto favorável ao Grande ABC no jogo por atração de investimentos.
Enquanto aqui tem se praticado em boa escala a vanguarda da cooperação e da negociação, metalúrgicos de outras localidades ainda adotam postura de reivindicação raivosa e enfrentamento. Exemplo recente foi dado pelos sindicatos Limeira, São José dos Campos e Campinas, as duas últimas epicentros das duas regiões paulistas que mais cresceram nos últimos anos. Egressos de correntes extremistas da CUT (Central Única dos Trabalhadores) e ligados a linhas de extrema esquerda como a Alternativa Sindical Social e Movimento dos Trabalhadores Socialistas, os metalúrgicos de Limeira, São José e Campinas parecem ter saído de um túnel do tempo ao reivindicar reajuste automático dos salários a cada inflação acumulada de 3%, além de redução da jornada de trabalho de 44 para 36 sem redução de salários. Repetindo: sem redução de salários.
O efeito inflacionário e aniquilador de competitividade dessas medidas nem passa pela cabeça de líderes como Mancha, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, para quem luta de classes, socialismo e triunfo do proletariado são conceitos atualíssimos. Outro sinal da radicalidade dessas representações sindicais se nota no fato de negociarem em separado do bloco dos demais 10 sindicatos de 250 mil trabalhadores na Federação Estadual dos Metalúrgicos.
Muito da diferença de tratamento entre os sindicatos do Grande ABC e de outras regiões deve-se a trajetórias econômicas antagônicas que sugerem comportamentos distintos. Na região que testemunhou a evaporação de 140 mil empregos industriais com carteira assinada desde 1985, postos de trabalho na indústria de transformação são raridade dignas de preservação a qualquer preço. Já em localidades nas quais empregos industriais crescem -- mesmo que de maneira restrita e seletiva -- os níveis de exigência são maiores.
Até em outros Estados brasileiros antes vistos como espécie de porto seguro aos maremotos sindicais a realidade está mudando. Tanto na mineira Betim, sede da Fiat, como na região metropolitana de Curitiba, que tem plantas da Renault e da Volks/Audi, greves já fazem parte do cotidiano.
O perfil mais negociador assumido pelo sindicalismo do Grande ABC também se faz notar em atitudes impensáveis há 20 anos e que denotam a preocupação de preservar postos de trabalho na origem. Cícero Martinha conta que há poucos dias membros do sindicato que dirige buscaram apoio de legisladores estaduais para socorrer uma empresa de 800 funcionários ameaçada de corte de energia por atraso de pagamento. Não se trata de exceção. Com qualquer sindicalista da região que se converse, seja Sérgio Novais, do Sindicato dos Químicos, ou Isaías Karrara, dos gráficos, pipocam exemplos de cooperação voltados à manutenção do emprego em primeiro lugar.
Citar representações de setores que extrapolam a metalurgia é obrigatório. Nos tempos do sindicalismo revolucionário de Lula e seguidores, não apenas pequenas e médias empresas metalmecânicas recebiam a mesma carga reivindicatória das montadoras, como empresas de praticamente todos os setores eram emparedadas com a homogeneização da pauta de reivindicações. Para sindicalistas da época, era como se uma pequena ou média metalúrgica ou química gozasse da mesma condição de gigantes lastreadas em capital internacional.
A implosão do componente sindical do Custo ABC transformou-se em vantagem comparativa que precisa ser devidamente explorada por poderes públicos, instituições de desenvolvimento e pelas próprias entidades sindicais a fim de facilitar a tarefa de magnetizar novos empreendimentos. Se o tempo foi implacável com a infra-estrutura de transportes, com a qualidade de vida urbana e outros vetores que investidores levam em conta antes de decidir onde instalar negócios, também forjou maturidade trabalhista valorizada pela iniciativa privada. E que só o tempo -- muito tempo -- fará chegar às regiões de industrialização mais recente.
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