Sociedade

Habitação é um festival de
horrores que Imprensa apoia

DANIEL LIMA - 03/08/2016

Todos os jornais da Província do Grande ABC que li ontem cometeram a mesma barbeiragem. Os repórteres e editores foram olimpicamente ludibriados por acadêmicos da UFABC (Universidade Federação do Grande ABC) que, em reunião no Clube dos Prefeitos com os titulares dos paços municipais, anunciaram a existência de déficit habitacional de 230 mil moradias na região. Duzentos e trinta mil uma ova!

Estamos flertando com o caos social em  infraestrutura pública, mas não confundam as coisas. Déficit habitacional é uma coisa, estrutura deficitária de habitação é outra. Colocar tudo no mesmo saco de gatos é apelação.

Temos sim – e isso vem de longe, repetitivamente anunciado pela Imprensa há muito tempo – por volta de 100 mil famílias à espera de um lugar para morar. Outras 130 mil famílias têm moradias, mas faltam saneamento, urbanização ou mesmo material de construção. Tratar o clássico conceito de déficit habitacional acondicionando no mesmo compartimento o que os acadêmicos da Universidade Federal do Grande ABC chamam de “moradias quantitativas e moradias qualitativas” pode impressionar os alunos, mas não tem nada a ver com a realidade regional.

Imprensa sem memória

Fossem as publicações da região mais preocupadas com a qualidade e com o questionamento até mesmo impertinente do que levam aos leitores, teriam cavoucados os arquivos para recolher o passado de promessas que jamais se traduziram em realizações quando o assunto é o déficit habitacional na região – e seus respectivos entornos de complicações. Diferentemente disso, os veículos de comunicação se restringiram a transportar às respectivas páginas impressas e digitais as declarações de terceiros.

Como tenho um arquivo profissional à prova de qualquer enganação, eis que descobri uma relíquia de quase 20 anos. Na edição de 16 de maio de 1997, o Diário do Grande ABC publicou a seguinte manchete de página interna, numa entrevista com o empresário Milton Bigucci: “Região tem déficit de 100 mil moradias”. Reproduzo alguns dos trechos da matéria: 

 A ACI (Associação dos Construtores e Incorporadores do Grande ABC) está fazendo um banco de dados da construção civil da região. O objetivo da criação do banco de dados é armazenar o máximo de informações relativas ao setor. “Vamos montar um banco de dados com tudo relacionado à construção no Grande ABC. Ele trará todos os lançamentos, plantas aprovadas, empresas do setor, novos projetos e imóveis disponíveis para comercialização”, disse o presidente da ACI, Milton Bigucci. (...) A região tem um déficit de aproximadamente 100 mil habitações – publicou o jornal.

Passivo vem de longe

Da entrevista de Milton Bigucci sobraram uma intenção jamais efetivada e um passivo jamais solucionado. A intenção de construir um banco de dados virou promessa, como muitos outros projetos do dirigente que ocupou o Clube dos Construtores do Grande ABC durante 25 anos. Já o déficit habitacional de 100 mil moradias parece imutável, com variações é verdade, porque novas construções não dão conta de novas famílias demandantes.

Fosse o diagnóstico de Milton Bigucci sobre o déficit habitacional na Província do Grande ABC algo fora da curva como informação, os jornais que se ocuparam do assunto ontem poderiam até ser desculpados. Mas essa dimensão é recorrente. Numa rápida busca no meu arquivo de papel, que é muito mais veloz e prático, em várias situações, do que o arquivo virtual do Google, pelo menos em questões regionais, pincei mais de uma dezena de matérias sobre o assunto.

Para os leitores não imaginarem bobagem, de que esteja este jornalista a blefar, passo adiante a citação das manchetes que encontrei – as quais, por dever de ofício, os jornalistas que cobriram ontem à rebuscada reprise em forma de novidade do Clube dos Prefeitos deveriam ter a curiosidade de procurar: 

 Manchete do Diário do Grande ABC de 17 de fevereiro de 2002: “Faltam 100 mil moradias no ABC”. 

 Manchete do Diário do Grande ABC de 3 de agosto de 2003: “Região precisa de 110 mil moradias”. 

 Manchete do Diário do Grande ABC de 16 de janeiro de 2005: “Habitação exige ações regionais”. Na linha complementar: “Essa é a fórmula proposta por especialistas para mudar o quadro habitacional crítico da região”. 

 Manchete do Diário do Grande ABC de 3 de abril de 2005 ao entrevistar Jorge Hereda: “É preciso plano regional de habitação”. Na linha complementar: “Secretário Nacional de Habitação aposta na ação conjunta dos municípios para diminuir déficit... que hoje soma mais de 47 mil moradias”. 

  Manchete do Diário do Grande ABC de 30 de janeiro de 2007: “100 mil famílias sem infra-estrutura”. Na linha complementar: “Prefeituras precisam de parceria com Estado para construir novas casas e urbanizar favelas”. 

 Manchete do Diário do Grande ABC de 1º de julho de 2007: Urbanização vai custar R$ 372 milhões”. Na linha complementar: “Programas terão contrapartida dos municípios; poder público constrói, moradores pagam. 

 Manchete do Diário do Grande ABC (Caderno de Eleições) de 22 de julho de 2008: “Região tem 225 mil pessoas morando em favelas”. 

 Manchete do Diário do Grande ABC de 12 de janeiro de 2009: “Déficit habitacional continua grande”. Na linha complementar: “Cerca de 68 mil pessoas sofrem com a falta de residência nas sete cidades da região”.

 Manchete do Diário do Grande ABC de 8 de abril de 2009: “Grande ABC desconhece déficit habitacional”. Na linha complementar: “Prefeituras querem participar de programa federal, mas têm dúvidas”. 

 Manchete do Diário do Grande ABC de 18 de dezembro de 2010: “Região tem 200 mil imóveis irregulares”. Na linha complementar: “Vila das Valsas, em São Bernardo, é o primeiro núcleo regularizado pelo programa Cidade Legal”. 

 Manchete do Diário do Grande ABC de 16 de janeiro de 2011: “Região tem 620 mil pessoas em favelas”. Na linha complementar: “Um em cada quatro habitantes da região, que tem cerca de 2,4 milhões, ocupa áreas irregulares”. 

 Manchete do jornal ABCD Maior de 5 de abril de 2011: “ABCD recebe R$ 2 bi do PAC”. Na linha complementar: “Das sete cidades, São Bernardo terá o maior volume de investimentos em bairros da periferia”. 

 Manchete do Diário do Grande ABC de 6 de junho de 2011: “Região faz moradias só para 28% dos que precisam”. Na linha complementar: “Déficit é de 88 mil unidades, mas só há projetos para 25 mil”. 

 Manchete do Diário do Grande ABC de 3 de julho de 2012: “Plano regional de redução de riscos fica para 2014”. Na linha complementar: “Consórcio aprovou repasse de R$ 680 mil para estudos do IPT”. 

 Manchete do Diário do Grande ABC de 30 de julho de 2012: “Região cumpre 43% da meta de moradias”. Na linha complementar: “Previsão era entregar 10.493 unidades até o fim do ano, mas meta foi reduzida para 6.624”. 

 Manchete do Diário Regional de 7 de agosto de 2012: “Investimentos em habitação superam R$ 814 milhões”. Na linha complementar: “Contratos assinados pelas prefeituras com governo federal vão garantir 7.772 novas unidades habitacionais”. 

 Manchete do Diário do Grande ABC de 11 de maio de 2013: “Região possui 206 mil imóveis irregulares”. Na linha complementar: “Número equivale a quatro vezes a quantidade de residências existentes em São Caetano”. 

 Manchete do Diário do Grande ABC de 11 de novembro de 2013: “Minha Casa entrega só 132 unidades em 4 anos e meio”. Na linha complementar: “Programa habitacional lançado em abril de 2009 teve pouca evolução no Grande ABC até o momento”. 

 Manchete do Diário do Grande ABC de 5 de outubro de 2014: “Região faz 34,8% das moradias”. Na linha complementar: “A cada três unidades prometidas pelas prefeituras do Grande ABC, só uma foi entregue; metas têm prazo até o fim de 2016”. 

 Manchete do Diário do Grande ABC de 30 de maio de 2015: “Região terá plano habitacional”. Na linha complementar: "Em um ano, documento traçará diagnóstico das condições de moradias das sete cidades e dará diretrizes para elaboração de políticas públicas”. 

 Manchete do Diário do Grande ABC de 24 de setembro de 2015: “Governo federal adia sonho da casa própria de 16.250 famílias”. Na linha complementar: “Atraso na divulgação da fase 3 do Minha Casa, Minha Vida tem impacto direto na aprovação e liberação de projetos das prefeituras da região”.

Despautério constante

Paramos por aqui porque a paciência já se esgotou. Os leitores mais atentos vão chegar à mesma conclusão deste jornalista. Estamos tratando de um despautério histórico que ontem, com a reunião no Clube dos Prefeitos, ganhou novo capítulo. À falta da atenção da mídia regional, que compra gato por lebre sistematicamente, como tenho cansado de afirmar e provar, também os prefeitos reunidos no clube que eles imaginam administrar foram rigorosamente atingidos. Afinal, confundir déficit habitacional (quantitativo) com déficit estrutural (qualitativo) é o fim da picada.

Apenas para os leitores entenderem a indignação de quem faz do jornalismo  profissão de fé, cujo princípio é contribuir para transformações sociais, reproduzo os principais trechos do material propagandístico distribuído pela assessoria de imprensa do Clube dos Prefeitos, rigorosamente reproduzido com algumas adequações (ou inadequações) pelos jornais da região. Leiam com atenção o material sob o título “Déficit habitacional no ABC envolve 230 mil moradias”: 

 O diagnóstico sobre a situação habitacional no ABC, apresentado nesta segunda-feira aos prefeitos da região, aponta um déficit de 230 mil moradias nas sete cidades. Em toda a região, o número de déficit quantitativo, isto é, de moradias que precisam ser construídas, totaliza 100.362. Em relação ao déficit habitacional qualitativo, relacionado à carência de infraestrutura básica (saneamento, energia elétrica, coleta de lixo, entre outros) o número é de 129.714 moradias. Iniciado em maio de 2015, o estudo é o primeiro produto concluído por meio de Termo de Cooperação Técno-Centífica do Consórcio Intermunicipal Grande ABC com a Universidade Federal do ABC (UFABC). O presidente do Consórcio e prefeito de São Bernardo do Campo, Luiz Marinho, ressaltou que o diagnóstico auxilia a política habitacional nas sete cidades. “Com o estudo, conseguimos um retrato da situação da moradia na região. As equipes de algumas cidades ainda precisam melhorar sua base de dados, o que é fundamental para podermos pleitear recursos dos governos estadual e federal”, afirmou. (...). No caso de produção de novas moradias, o total é estimado em 100.362 domicílios, sendo 36.502 dentro de assentamentos precários e 63.860 fora deles. Com isso, a disponibilização de terras para as necessidades habitacionais no ABC soma 3,386 milhões de metros quadrados. (...). Para Rosana Denaldi (coordenadora do estudo pela UFABC), o ineditismo da pesquisa ocorre justamente pelo fato de não trabalhar apenas com informações do instituto (IBGE). “O dado do IBGE não é tão completo, e o microdado não tem a espacialização. O que temos de inovador é que, além do dado do censo, utilizamos os dados dos municípios e tornou-se possível produzir uma informação mais precisa, mais próxima do problema, com maior detalhamento”.

Torcida organizada

O material propagandístico disfarçado de informação jornalística ouviu outros agentes públicos. Tudo como antes. O prefeito petista de São Bernardo, Luiz Marinho, que ocupa a presidência do Clube dos Prefeitos em mais uma temporada, sabe que o diagnostico apresentado não passa de uma carta de intenções.

Primeiro porque o redemoinho burocrático do Clube dos Prefeitos não oferece garantia alguma de solução, como tem ocorrido há duas décadas, já que vetores partidários e impedimentos orçamentários sempre prevalecem.

Segundo porque a casa fiscal do governo federal, que supostamente teria condições de bancar a maior parcela dos investimentos, simplesmente desmoronou com Dilma Rousseff e a turma de inconsequentes pedaleiros.

Os problemas da habitação na região são apenas uma repetição dos infortúnios em tantas outras áreas. Vendem-se ilusões de soluções que jamais chegam. Esquecem os administradores públicos que, sem geração de riqueza, sem crescimento econômico, tudo não passa de um interminável exercício de masoquismo. Ou de sadismo. O alvo é a sociedade incauta, desprotegida pelos veículos de comunicação que ainda não entenderam a logica de existirem: tratando cada assunto com o máximo de cuidado, não como torcida organizada.



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