Quem tem mais de 50 anos e morou nos anos 60 em Santo André certamente ouviu muito Roberto Carlos e era fã de James Dean. Sabe também que nas madrugadas os carros envenenados tomavam conta nas ruas, em rachas até São Bernardo e São Caetano. Entre os jovens da época, estava o hoje empresário Valério Valente, maior fabricante nacional de pastilhas de freios e embreagens para motocicletas. A paixão por aventura, veículos e natureza transformou esse filho de italiano em tetracampeão brasileiro de rally, categoria protótipo. O piloto-empresário, que já venceu três vezes o Rally dos Sertões, combate o estresse da vida profissional com velocidade nas estradas e trilhas, sua mania há quase 40 anos.
“O racha foi muito forte na época de moleque. Em Santo André, a gente saía do Quitandinha, na esquina da Oliveira Lima com Albuquerque Lins, em três percursos. Um percorria cerca de dois quilômetros pelas ruas do Centro, outro ia até a divisa de São Caetano pela Dom Pedro II e o terceiro era pela Pereira Barreto até a Marechal, em São Bernardo, sempre ida e volta” -- conta Valente, que corria com um Ford 1941, dado pelo pai, e que foi incrementado com oito amortecedores, além do motor, devidamente envenenado, é claro. Valente também fazia malabarismos nas ruas com um De Soto 1957, conversível, com 320 cavalos de potência, hidramático e com quatro marchas acionadas eletronicamente no painel, para deixar qualquer Ralph Schumacher com inveja.
Com os dois carros, Valente também disputou históricos rachas no Bairro do Morumbi, na Capital, na época apenas um loteamento com ruas pavimentadas e ótimas para pegas. Entre seus adversários estavam os irmãos Emerson e Wilsinho Fittipaldi, que aceleravam a bordo de um Fairlane 1959. O jovem andreense chegou inscrever um Gordini envenenado em uma corrida no Autódromo de Interlagos, mas o carro quebrou antes da partida. “Não gosto de pista repetitiva. Prefiro rally, porque você não sabe o que vem pela frente e a emoção é muito maior. É uma das modalidades que mais cresce no mundo” -- argumenta o empresário.
Outro adepto dos rachas, o piloto Ingo Hoffmann, o maior campeão da história da Stock Car brasileira, gostava de correr em frente à FEI (Faculdade de Engenharia Industrial), em São Bernardo, onde Valente estudou na década de 60. Nessa época que começou sua paixão pelas estradas de terra, ao disputar o Rally Universitário com um jeep Willys 1951 e o velho Ford 1941. Mas o velocímetro reduziu bastante ao final do curso. “Aí casei e parei com essas loucuras” -- lembra o empresário, com certo grau de saudade dos pegas da madrugada.
Vida de casado
A vida de casado só não acabou com a mania por velocidade de Valente, que continuou com outro hobby sobre rodas, as trilhas, feitas em picadas no meio do mato com veículos 4x4, de tração nas quatro rodas, no trecho da Serra do Mar entre São Bernardo e Paranapiacaba. Valente gostou tanto da região que transferiu sua empresa, a Fischer, para as margens da Rodovia SP-31, em Ribeirão Pires, Nos fundos da companhia começam as trilhas por onde Valente e os filhos Bruno e Vítor testam os freios e embreagens que produzem para motos e veículos 4x4.
Em 1996, a adrenalina voltou a circular rápida no sangue de Valente com o início da mais famosa prova fora de estrada do Brasil, o Rally dos Sertões. A idéia era disputar com uma moto, mas a mulher Beth mais uma vez o convenceu a se afastar do perigo. O empresário optou pelo mal menor e se inscreveu para correr com um veículo off road. Enquanto percorria estradas empoeiradas e lamacentas com Engesa, Ranger e Land Rover, Valente começou a dar forma a outro sonho: montar seu próprio carro, um protótipo, para disputar o Campeonato Brasileiro de Rally.
Oficina em Santo André
Foi em uma oficina em Santo André que surgiu a máquina com a qual Valente se tornaria imbatível: a carroceria de um Ford 1934 montada sobre uma mecânica da picape Toyota Hylux SW4 Turbo Diesel Intercooler, de 200 cavalos de potência. Era a mistura da resistência do Ford dos tempos de Al Capone com potência de samurai hightec da Toyota. Com o mesmo carro, seu filho Bruno Fischer Valente, conquistou outros dois títulos brasileiros, fazendo a família ser uma unanimidade entre os protótipos. O caçula Vítor, hoje com 18 anos, segue a mania do pai por veículos e é o chefe da equipe Fischer que, mesmo sem a estrutura das grandes montadoras que bancam os times de rally, consegue vencer na raça muitas competições e campeonatos.
O segredo está na paixão por velocidade e na criatividade das soluções, como uma mangueira de motor do caminhão Volkswagen que Valente adaptou para seu Ford 34. “Como a potência dos motores é muito forte, as mangueiras dos protótipos sempre estouravam. Na conversa com um caminhoneiro descobri como resolver o problema. Quando as outras equipes perceberam que tínhamos encontrado a solução vieram ver nosso carro. Hoje a mangueira do caminhão Volks é usada por todo mundo” -- conta Valente com uma ponta de satisfação.
Vôo em Xique Xique
Aventuras não faltam para o empresário dos rallys. A mais marcante aconteceu em 2002, quando a 120 quilômetros por hora o Ford 34 literalmente voou da estrada de terra em Xique Xique, no Oeste da Bahia. “A queda foi amortecida por uma cerca de arame, mas mesmo assim bati a uns 90 por hora em uma árvore. Cheguei a ver a viola em cacos, mas o carro aguentou o tranco, além dos equipamentos de segurança como cinto, banco e a gaiola, que funcionaram. Não fosse por isso, não estaria vivo” -- confessa o empresário.
“Outro episódio em que sobrou adrenalina foi em uma das edições do Rally dos Sertões, no deserto do Jalapão, Norte de Tocantins, quando Valente ficou cercado por cobras no momento em que o veículo parou por falha mecânica. “Quando saí do carro, tinha quatro bem perto. Fiquei com um pedaço de madeira na mão, enquanto o navegador, Wolf Wondrak, deitou embaixo do carro para fazer o conserto. Elas não se aproximaram, mas me deixaram apavorado” -- conta o piloto, que também faz parte da diretoria da Abracc (Associação Brasileira de Rally Cross Country).
As situações difíceis fizeram o empresário desenvolver o espírito solidário e socorrer os colegas de competição. Ao disparar por uma estrada rural no interior do Ceará, Valente e o navegador viram que o piloto Gianpaolo Tognocchi e a navegadora, sua mulher Francine, estavam com o carro atolado. “A uns cem metros vinha um grupo de homens mal encarados. Vi que o Gianpaolo estava só com a mulher e poderia ficar em dificuldades. Parei para ajudar e acabei atolando também. Mas em quatro pessoas naquele lugar, a gente conseguiu ficar mais seguro. Não vivo disso e tenho certeza que se precisasse, meus colegas fariam a mesma coisa” -- garante o piloto.
Receita própria
Até mesmo uma receita própria Valente já desenvolveu para enfrentar um rally. O empresário jura que a fórmula varia de acordo com o organismo de cada um, mas garante que funciona. “Procuro engordar uns dois quilos, porque perco seis durante a prova. Em 1998, fiz a besteira de emagrecer e não aguentava ficar na competição, tinha sono. A gordura, para mim, é uma reserva de energia. Tem bons pilotos de rally que pesam 120 quilos” -- afirma Valente, que chega a beber cinco litros de água por dia quando está na estrada. O café da manhã é quase nada e o almoço não existe, para evitar o sono ao volante. “Comer mesmo, só à noite” -- afirma.
A mulher, Beth, responsável pelo fim da sua participação nos rachas e nos enduros de moto, é quem se encarrega da preparação psicológica de Valente antes das provas. “Durante três meses, ela faz um trabalho para me acalmar. No rally, não posso ficar com a adrenalina dos negócios” -- explica o piloto. Mas a receita de fazer rally para acabar com estresse, é seguida por muita gente além de Valente. Dos cerca de 100 pilotos que participam do Rally dos Sertões, aproximadamente 40 são empresários em busca de emoções fora do escritório. “No rally, muda tudo a partir do segundo dia. É quando você esquece a família e a empresa e vira um bicho” -- conta o tricampeão da prova.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!