Você já ouviu falar em Acelino Freitas? Não. E Popó? Agora ficou mais fácil. Popó é o boxeador brasileiro atual campeão mundial dos leves -- categoria até 61,6 quilos. Entretanto, poucos jovens com menos de 20 anos ouviram falar de Servílio de Oliveira ou Éder Jofre, outros dois campeões mundiais nas décadas de 60 e 70. Esse é o modesto currículo do pugilismo brasileiro ao longo dos tempos, além de uma medalha de bronze nos Jogos Olímpicos do México, em 1968.
Por isso é quase impossível adivinhar quem é Aílton Pessoa, um boxeador de 34 anos que teve literalmente de lutar para vencer na vida. Socos dados e pancadas recebidas em mais de uma década de carreira não renderam a fortuna de Popó nem o prestígio internacional de Éder Jofre. Mas deram a Aílton uma vitória de causar inveja a boa parte dos famosos boxeadores mundiais: ele ensina essa modalidade e outras artes marciais gratuitamente a crianças e adolescentes carentes de Mauá há mais de 13 anos. Um detalhe importante dessa história é que a Academia Nocaute jamais teve patrocínio. O pugilista mantém estrutura modesta montada embaixo do Viaduto da Saudade com as conquistas do passado e ajuda dos poucos alunos que podem contribuir mensalmente.
"Não cobramos nada. Ninguém deixa de treinar porque não tem R$1" -- garante Aílton Pessoa, que acredita ser o esporte um dos remédios mais eficazes contra a doença chamada violência. Nascido em família humilde de Mauá, o pugilista trabalhou como feirante, ajudante geral e até operador de máquina na TRW. O boxe entrou em sua vida por acaso. Conheceu a modalidade dominada pelas luvas, socos e nocautes durante a passagem pelo Exército entre 1989 e 1991. Até então praticava outras duas artes marciais: o full contact (chute da cintura para cima) e o kick boxing (técnica de chute nas pernas, tronco e na cabeça), além do boxe. Foi bicampeão paulista amador dessas duas modalidades em 1991 e 1992.
Glórias no tablado
Foi no boxe, porém, que Aílton Pessoa conheceu as glórias de ser um ídolo. Lutou 25 vezes como amador. Obteve 23 vitórias, das quais 20 por nocaute. Como profissional subiu ao ringue 21 vezes e arrebatou 18 vitórias. Foi campeão brasileiro da categoria meio-médio (até 69,8 quilos) em 1995 após derrotar Luiz Vongraf por nocaute no primeiro minuto do primeiro round. Três anos mais tarde, nocauteou o paraguaio José Paez e conquistou o título sul-americano. Um ano antes chegou ao oitavo lugar no CMB (Conselho Mundial de Boxe). Graças aos socos certeiros, visitou países que jamais pensou em conhecer um dia. Estados Unidos, Cuba, Costa Rica e México fizeram parte dessa lista. Em setembro do ano passado, ficou com a medalha de prata em torneio realizado em Angola ao perder na final para o angolano Márcio Andrade.
Em meados da década de 90 Aílton Pessoa foi comparado pelo então presidente da Federação Paulista de Boxe Newton Campos a um dos principais lutadores de todos os tempos, o mexicano Júlio César Chavez. Até hoje ocupa o primeiro lugar da Confederação Brasileira de Boxe da categoria médio (até 72,5 kg) e só não tenta o cinturão por falta de patrocínio. "Preciso de R$ 3 mil para tentar o título. Mas é quase impossível" -- lamenta o pugilista de 1,79 metro e 72 quilos. Aílton Pessoa já fez até as contas: a carreira como boxeador poderá se encerrar em dois anos caso não tenha suporte financeiro, algo que não era problema quando estava no auge. Entre 1997 e 1998 tinha patrocínio da danceteria Chaplin, de Santo André, e dos bingos Barão e General. "Recebia perto de US$ 2 mil por mês como ajuda de custo" -- lembra.
Enquanto sonhava mais alto com o boxe, Aílton Pessoa conquistava títulos nas duas artes marciais. Foi campeão brasileiro de kick boxing em 1994 e de full contact um ano mais tarde. Para cada competição treinava seis horas por dia. "Já cheguei a correr 28 quilômetros em um dia. Muitos pensavam que fazia maratona" -- brinca. Os malefícios dos esportes de contato estão marcados no rosto. Aílton Pessoa perdeu a conta de quantas vezes fraturou o nariz. "Além de torto, meu nariz parece uma peneira por causa das quebraduras" -- aponta. O pugilista que se tornou evangélico há quase seis anos também teve o tímpano direito perfurado em um dos inúmeros combates como boxeador profissional.
Sonho realizado
Paralelo à trajetória de nocautes, derrotas, nariz fraturado e falta de patrocínio, Aílton Pessoa incorporou um idealismo fora do comum desde que começou a trocar os primeiros socos no ringue. Decidiu que o esporte seria arma fundamental para que crianças e adolescentes carentes não caíssem nas garras da marginalidade. Com as vitórias na categoria profissional conseguiu alugar um espaço embaixo do Viaduto da Saudade, em Mauá, e fundou a Academia Nocaute. Outros títulos permitiram comprar um ringue. "Fazíamos abdominal em cima de caixas de papelão" -- recorda.
Os tempos de glória no pugilismo profissional praticamente acabaram, mas Aílton Pessoa não ficou de braços cruzados. Continuou com o ideal de oferecer esporte como alternativa de lazer e até profissão aos mais carentes. Nunca cobrou nada da garotada que frequenta a academia. Mais de 20 mil alunos já passaram pelo modesto espaço. O professor Aílton Pessoa soma atualmente 350 atletas divididos entre segunda-feira e sábado. Além dos esportes praticados pelo pugilista, a Academia Nocaute incorporou recentemente o jiu jitsu.
É nítida a simplicidade do local. Sacos de pancada, luvas de boxe e aparelhos de musculação dividem espaço com matérias do extinto jornal Gazeta Esportiva, fotos dos inúmeros combates, boa parte dos 60 troféus e seis cinturões conquistados ao longo da carreira. Por causa da pequena área, o ringue para os treinos e torneios de boxe está montado ao lado da Avenida Rio Branco. Os treinos diários são embalados ao som de Eye of the Tiger, do grupo Survivor, que foi música-tema do filme Rocky, o Lutador.
Instalações enganam
Instalações modestas não significam falta de rigor nos treinamentos. Pelo contrário. Um dos professores de artes marciais, Antônio Tintílio, por exemplo, se tornará pugilista profissional ainda este ano. Jack, como é conhecido na Nocaute, também é campeão brasileiro profissional de full contact. Aílton Pessoa explica como a academia está aberta há mais de 10 anos sem nenhum patrocínio. "Temos custo mensal de R$ 400 com aluguel e despesas básicas. Coloco dinheiro do meu bolso e recebo ajuda de alguns alunos" -- detalha.
Depois de quase 34 anos de residência em Mauá, o pugilista mudou-se há dois meses para a Vila Conde, em Rio Grande da Serra. Junto da filha de apenas 90 dias e da namorada, Aílton iniciou em Rio Grande, cidade com pouco mais de 30 mil habitantes, a segunda etapa desse idealismo social. Ao lado do amigo Marcelo Emílio abriu duas unidades da academia Nocaute, uma no Bairro Santa Tereza e outra na Vila Conde.
As duas somam 350 alunos. A novidade é o boxe gratuito para mulheres da terceira idade. "Para atrair esse público, no convite estava escrito que haveria aulas de ginástica e alongamento. Elas tomaram um susto ao chegar na academia" -- lembra. No começo eram apenas 13 alunas. Hoje são mais de 100. "A caçula tem 59 anos" -- orgulha-se o veterano pugilista, que também mantém o programa Vamos Nocautear a Violência. Faz palestras voluntárias nas escolas estaduais de Rio Grande da Serra há exatos três anos. "Além de mostrar a importância do esporte, detalho os males causados pelas drogas e violência" -- conta.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!