Economia

Escombros do Plano
Cruzado são visíveis

DANIEL LIMA - 04/09/1987

O mercado imobiliário do ABC Paulista começa a reagir lentamente, mas as marcas do fracasso do Plano Cruzado I rasgam o horizonte, em forma de esqueletos de concreto armado. Basta uma atenta observação para que se vislumbre panorama no mínimo preocupante. Edifícios residenciais dos mais diferentes portes e padrões compõem senão um quadro de completo abandono, pelo menos de desaceleração das obras. São os rescaldos de um plano de estabilização econômica que acenou com a inflação zero e despertou a cobiça de grupos de incorporadores pouco afeitos aos trancos do mercado imobiliário. Especialmente quem investiu em construções a preço de custo acusa os duros golpes da retomada inflacionária que exigiu, entre outras decisões do governo, um novo choque heterodoxo, o Plano Bresser, editado em 12 de junho.

Mesmo sem estatística, apesar de importantíssimas para a economia de uma região de dois milhões de habitantes e déficit habitacional de perto de 30 mil unidades, o ABC Paulista começa a procurar reequilibrar-se no setor imobiliário. Pelo menos as construtoras mais tradicionais já revelam sinais de reação. Mas os incorporadores mais modestos, especialmente aqueles que surgiram com o Plano Cruzado, seguem atolados em dificuldades. O índice de inadimplência nas obras a preço de custo pode ser medido pelo menos por dois indicadores. Primeiro, o número de venda de cotas em anúncios classificados em jornais da região, cada vez mais volumoso. Segundo, o ritmo moroso das obras. Especialistas calculam que os casos menos complicados, formados de adquirentes de cotas com o objetivo de investimento, e que, portanto, já estão acostumados ao mercado, significarão a postergação da obra em até 15 meses. Esta é uma saída para minimizar o impacto inflacionário, que elevou prestações mensais de CZ$ 10 mil para CZ$ 60 mil em apartamentos de dois quartos e área útil de até 70 metros quadrados. Os casos mais complexos, que formam ponderável parcela dos lançamentos em plena vigência do Plano Cruzado, podem levar as obras a períodos de até cinco anos. Sem contar os riscos evidentes de paralisações definitivas, tal o grau de inadimplentes.

O abandono das obras é um fantasma que ninguém admite, mas possível. Poletto Filho, executivo da ARC Engenharia, uma das mais tradicionais empresas do ABC, prefere observar o quadro de forma menos cética. Compara a crise no setor imobiliário à da área de consórcios de veículos, cujos cotistas tiveram prazo de pagamento dilatado. Ele só não admite o abandono das obras, que serviria para desprestigiar o setor. Poletto Filho, como outros construtores de porte, critica o que chama de aventureirismo de grupos alheios ao mercado imobiliário que procuram se locupletar com lançamentos a preços aquém da realidade.

Entretanto, desde janeiro, quando as mirabolantes propostas econômicas do Governo Federal começaram a fazer água, o ABC praticamente estagnou-se em matéria de lançamentos imobiliários. Uma ou outra empresa, como a Enar e a Montovani, partiram para empreendimentos de cotistas selecionadíssimos. Construtores e incorporadores de ocasião desapareceram da praça. A alternativa para as empresas bem sedimentadas foi redirecionar o mercado, buscando o setor industrial e até mesmo o litoral, principalmente a badalada Guarujá. Foi o que fez a Módulo. A falta de política de financiamento habitacional e a explosão inflacionária agem como ducha fria a qualquer pretensão expansionista.

Mas não é só isso. Há outros condimentos que tornam o ABC particularmente explosivo no setor habitacional. Quarto mercado consumidor do País, de acordo com dados do IBGE, o ABC tem uma classe média relativamente numerosa mas – e isto os números essencialmente frios do IBGE não detectam – intrinsecamente suscetível às alternâncias econômicas. Agora que o setor automobilístico e suas empresas satélites acumulam reclamações e demissões, essa classe média forjada especialmente a reboque desse segmento pensa 10 vezes antes de qualquer novo compromisso financeiro, especulativo ou não.

O engenheiro Geraldo Demétrio, executivo de uma das maiores empresas de projetos do Estado, com sede em Santo André, não consegue lembrar-se de crise parecida com a atual. A forte retração do mercado imobiliário o levou a diversificar contratos fora do setor residencial. Ele mesmo é cotista de um empreendimento a preço de custo destinado à classe A, que saltou de compromissos mensais de CZ$ 28 mil para CZ$ 100 mil. A obra só se mantém porque os investidores têm relativo suporte financeiro, como profissionais liberais na maioria dos casos.

Exatamente por captar o fôlego desse grupo social restrito a empresária Sonia Chipari, da Enar, procura desanuviar o clima de pessimismo para afirmar que há claros prenúncios de que o pior já passou. Menos – concorda a empresária – para quem acreditou em preços de custos de inflação zero. Ela mesma afirma que lhe são apresentadas propostas para assumir obras inacabadas. Há uma ponta de satisfação nessa revelação. Afinal, é a mais clara prova de que os piratas saíram de cena. Sonia Chipari tem extrema confiança na sustentação de um mercado forte. O corredor metropolitano de trólebus, que cruza Santo André, São Bernardo e Diadema, é um estimulo ao boom habitacional. Tanto que, tradicionais organizações de São Paulo estão instalando bases no ABC. O que é analisado por Sonia Chipari como saudável competitividade.



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