Praticamente três anos depois de escrever o primeiro artigo sobre o que resolveu denominar Complexo de Gata Borralheira, o jornalista Daniel Lima, diretor-executivo da Editora Livre Mercado, transformou em livro uma série de análises desse sentimento de subordinação do Grande ABC em relação à vizinha Capital. Complexo de Gata Borralheira será lançado na noite deste 16 de abril no Teatro Municipal de Santo André, após apresentação de leitura dramática dirigida pelo arquiteto e teatrólogo Euclydes Rocco Júnior.
A data do evento coincide com o aniversário de nascimento do prefeito Celso Daniel, assassinado brutalmente na madrugada de 20 de janeiro último. A forma encontrada pelo jornalista para manter acesa a chama da integração regional defendida pelo homenageado durante mais de 10 anos está sintetizada no subtítulo da obra: "Um breve estudo sobre a história socioeconômica do Grande ABC e seu complexo de inferioridade diante da Cinderela Capital. E uma homenagem a Celso Daniel, o gerenciador público que mais exercitou a luta pela regionalidade".
Considerada assunto-tabu, a inferioridade social, econômica, cultural e política do Grande ABC em relação a São Paulo é analisada de forma didática por Daniel Lima. "A melhor maneira de curar uma doença é enfrentar o tratamento recomendado pelos especialistas. No caso do Grande ABC, não tem sentido jogar para debaixo do tapete tudo aquilo que cada um de nós sente nos contatos que mantemos e fazer de conta que não há nada de errado. Enquanto essa postura prevalecer, o organismo vai se debilitar ainda mais" -- considera o jornalista.
Quem veste a carapuça?
Daniel Lima reconhece que poderá ter dificuldades com agentes públicos, empresariais, sociais e culturais que resolvam vestir a carapuça dos personagens que criou para dar ao livro Complexo de Gata Borralheira enredo que considera extremamente pedagógico. "Exceto o prefeito Celso Daniel, que ganhou personalidade própria na obra e é citado várias vezes, os demais personagens representam o conjunto da história de cada Município do Grande ABC e da Capital" -- relata, acrescentando: "Convenhamos que a anatomia sociológica de Santo André, São Bernardo, São Caetano, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires, Rio Grande da Serra e São Paulo não é uma construção de alguns anos, mas o legado do conjunto das comunidades que dirigiram seus destinos e que participaram de suas ações ao longo de décadas e décadas".
A decisão de escrever Complexo de Gata Borralheira foi a fórmula que o jornalista encontrou para massificar um conceito de dependência cultural, no sentido amplo do termo, que pertence a praticamente todos os moradores que efetivamente pensam o Grande ABC: "Talvez o meu mérito tenha sido plantar-me por cerca de 20 horas em frente ao computador e resolvido construir uma história que qualquer aluno do Ensino Fundamental acabará por entender. O formato do texto significou um desafio para mim, porque já escrevi muito sobre o que coloquei no livro, mas utilizei uma linguagem mais sofisticada"-- afirma.
Cuidado com xenofobismo
O autor explica que Complexo de Gata Borralheira não é uma obra que se exaure em si mesma. "O grande desafio de todos é partir para reações que não resvalem no xenofobismo municipalista que já cansamos de assistir e que também não incorram num regionalismo mambembe, de faz-de-conta, que também já assistimos exaustivamente. O desafio é que se armem mobilizações para dar ao Grande ABC identidade regional consolidada e tornem essa produção literária uma triste lembrança do histórico de subserviência".
O diretor da Editora Livre Mercado cita que a obra está em perfeita sintonia com o próprio histórico da publicação, lançada em março de 1990: "Há fina sintonia entre a obra, as doutrinas que a revista LivreMercado defende, entre as quais um Grande ABC metropolizado no sentido mais nobre da expressão, e o pensamento político, social, econômico e cultural do autor" -- expõe Daniel Lima.
Para que se dê interpretação correta à obra, o jornalista lembra que adaptou o conjunto de problemas que atingem a auto-estima do Grande ABC a uma denominação menos fundamentalista. Entre o primeiro artigo publicado em LivreMercado sobre o assunto, em agosto de 1999, e o segundo, em agosto de 2001, Daniel Lima resolveu substituir o que era inicialmente Síndrome de Gata Borralheira por Complexo de Gata Borralheira. "O significado de síndrome é mais catastrofista do que complexo e transmite sensação de algo irrecuperável. Não é o que entendemos seja o caso do Grande ABC. Complexo de Gata Borralheira é mais digerível do que Síndrome de Gata Borralheira, mas não deixa de ser inquietante na medida em que não utilizamos mecanismos de combate. Pior do que isso, e que também justifica o título escolhido: as tentativas de negação e de dissimulação desse sentimento de inferioridade só aumentam as dificuldades para superação do problema".
Socializando a questão
Logo após a publicação do segundo artigo sobre o assunto, com o título Caso Freudiano, Não de Marqueteiros, em agosto do ano passado, Daniel Lima levou a discussão para o boletim eletrônico Capital Social, emitido de segunda a sexta-feira diretamente para mais de cinco mil emeiados da região. Emeiado é um neologismo criado pelo jornalista para designar os leitores que recebem as duas edições do boletim eletrônico através da Internet. Um total de 16 emeiados resolveu escrever sobre o tema. O material foi condensado e está sendo apresentado nestas páginas.
No primeiro artigo, de agosto de 1999, sob o título Gata Borralheira contra Cinderela, Daniel Lima escreve a respeito dos trabalhos do Grupo de Planejamento de Marketing da Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC.
"Adequar os ímpetos de valorização do Grande ABC às margens de confiabilidade dos veículos de comunicação, instrumentos decisivos no processo de massificação de informações, torna-se desgastante maratona. Os obstáculos não serão superados com facilidade. Acreditar que a região passará a frequentar a mídia regional e paulistana apenas com assuntos adocicados é subestimar não só os interesses individuais ou grupais que permeiam as relações econômicas e político-partidárias nos sete municípios como também minimizar ao extremo os desastres sociais que fazem aflorar casos como o da Favela Naval, em Diadema, e a gravidade das ocupações clandestinas na área de proteção dos mananciais, entre tantas sequelas" -- escreveu o jornalista.
Situações positivas
Mais à frente, o artigo definia novos pontos sobre o conceito de marketing regional: "A ação do Grupo de Planejamento de Marketing é interessante não porque teria a capacidade de camuflar os problemas, situação que só frequenta os sonhos dos exagerados que descartam a sensibilidade e os interesses dos veículos de comunicação em cavucar desastres, mas sim pela perspectiva de contrapor situações positivas nem sempre explicitadas com competência".
Daniel Lima lança mão de outros trechos do artigo de três anos atrás para dar pistas do que trata a obra a ser lançada neste 16 de abril: "A expectativa de que o planejamento de marketing resolverá todas as dificuldades que embaçam a imagem doméstica e externa do Grande ABC é de ingenuidade infantil. Por mais que esse trabalho seja inédito e por mais que se consolide, o Grande ABC não se transformará numa ilha da fantasia. A vantagem é que poderá amenizar os exageros de quem atribui a imagem de terra dos horrores".
O Grupo de Marketing da Agência de Desenvolvimento desfez-se em pouco tempo por falta de recursos financeiros, mas a análise de agosto de 1999 do jornalista continua atual. Mais um trecho: "A dependência cultural do Grande ABC está para São Paulo da mesma forma que a do Brasil para os Estados Unidos ou Europa. Quantas análises enlatadas de especialistas estrangeiros já provocaram dores de cabeça ao comando da política econômica e aos homens de negócios do Brasil? Basta um desses gurus macroeconômicos escrever aberração qualquer no The New York Times, no Times, no Financial Times ou em qualquer outro veículo internacional de comunicação, e lá estão nossos tupiniquins mimetizando com entusiasmo semelhante ao dos índios que recepcionaram Cabral e comitiva com seus badulaques".
Dupla esquizofrenia
Na edição de agosto do ano passado, Daniel Lima definiu logo na abertura do artigo o que consiste o Complexo de Gata Borralheira: "O Grande ABC sofre de dupla esquizofrenia cultural. Rejeita a si próprio, num sentimento paroquial de explicação sociológica nada complicada, e quer que o valorizem, algo que também é de fácil explicação sociológica". O artigo foi publicado com base em pesquisa da Agência de Desenvolvimento Econômico com empreendedores da área de serviços industriais da região. O estudo constatou que os empreendedores querem campanhas de marketing tanto interna quando externa para valorizar o Grande ABC: "Não há nada de surpreendente na constatação, porque, até prova em contrário, a quase totalidade dos entrevistados mora e vive na região. Se o universo da pesquisa for ampliado, o resultado será o mesmo porque não há como mudar os fatos. Somos, decididamente, uma região que sofre do complexo de inferioridade pela proximidade com a Capital, mais rica e exuberante. Achamos isso internamente. E nos acham isso, externamente" -- escreveu.
Preocupado com a abordagem que eventualmente seria dada à pesquisa da Agência de Desenvolvimento Econômico, Daniel Lima relatou: "Se a patologia é velha conhecida -- e não seria essa pesquisa que a contrariaria -- o perigo está na terapêutica. Não faltam experimentos desastrosos que entornaram ainda mais o caldo cultural de subserviência psicológica à Capital. Toda vez que se lança qualquer proposta de valorização da imagem da região, o bom senso corre o risco de ser assassinado em nome do Complexo de Gata Borralheira. O tratamento é mais perigoso ainda quando surgem oportunistas que desconhecem o histórico de ocupação social da região, mas não medem esforços para agradar a platéia com ações e discursos evasivos, sempre recheados de palavras mágicas".
Suspense complementar
O livro Complexo de Gata Borralheira não é uma obra pedagógica apenas, segundo definição do autor. É também uma incursão pelo suspense que, garante, é ingrediente complementar de um texto que procura ajudar a compreender a dinâmica dos sete municípios da região no contexto das relações históricas com a Capital mais importante do País.
Somente quem estiver no Teatro Municipal de Santo André na noite de 16 de abril próximo conhecerá o conceito do enredo preparado pelo jornalista. "Por mais que Euclydes Rocco adapte o original do livro para o palco, a integridade da história será preservada. Isso significa que somente os convidados do evento em homenagem a Celso Daniel terão acesso antecipado à elucidação do mistério que cerca a ausência de dois importantes convidados do encontro que se passa num hotel-fazenda. Os diálogos darão uma dinâmica toda especial à dramatização do espetáculo" -- afirma o jornalista.
Oito dos 12 personagens que compartilharão o enredo de Complexo de Gata Borralheira não são segredo a ser mantidos. O autor considera interessante que tanto quem estará entre os convidados no Teatro Municipal como os milhares de leitores que receberão o livro conheçam antecipadamente detalhes sobre a obra. "Os sete municípios do Grande ABC e a Capital são protagonistas do espetáculo preparado para ser imensamente vivido tanto no Teatro Municipal como nas páginas da obra. A perspectiva de que um tema aparentemente árido, que é a abordagem nuclear do texto, deveria seduzir os leitores me levou a usar de criatividade para dar densidade de leitura aos públicos mais distintos, desde alunos do Ensino Fundamental e Médio até formadores de opinião" -- cita.
Teste driver positivo
Daniel Lima afirma que fez uma espécie de teste driver da obra, distribuindo originais para um grupo de leitores de diferentes perfis sociais e profissionais antes da aprovação final e da produção gráfica. A receptividade o satisfez:
"Não me interessava, francamente, que apenas leitores de formação educacional mais profunda compreendessem o significado das mensagens que procuro transmitir. Precisava de um respaldo mais abrangente, mais completo. E isso, felizmente, conseguimos".
Dividido em 18 capítulos, Complexo de Gata Borralheira não tem intermediação da narrativa. Os personagens mantêm do começo ao fim diálogos recheados de sarcasmo, reverência, deboche, ceticismo e cinismo típicos das relações geralmente tempestuosas entre municípios do Grande ABC e entre a Capital com o conjunto desses municípios. "É uma obra politicamente incorreta e, por isso mesmo, ganha revestimento dramático intenso. Se me debruçasse no computador pensando nas eventuais consequências de relacionamento que o livro significaria para mim, certamente não haveria sentido algum na proposta. O tempero de Complexo de Gata Borralheira está exatamente no ambiente de idiossincrasia, de revanchismo, de desprezo, de maledicência e de arrogância que marca as relações entre representantes dos municípios da região. São sentimentos que ajudam a explicar por que miramos em direção a São Paulo com o encanto dos suburbanos" -- declara.
Capitão Edson Sardano, secretário de Segurança em Santo André
"Não é de hoje que venho comentando o excesso de valorização de tudo que vem da Capital em detrimento da produção local. Há uma série de deputados federais e estaduais que sequer sabe onde fica o Grande ABC e, no entanto, muitos são agraciados com votos de milhares de eleitores da região que acreditam ser mais glamoroso votar em político de São Paulo ou até mesmo de cidades do Interior. Campanha que o Diário do Grande ABC fez numa determinada época produziu efeitos positivos. Será que não é hora de uma dose de reforço?".
Klinger Sousa - secretário de Serviços Municipais de Santo André
"É absolutamente inegável que, a despeito das potências econômica, social e urbana do Grande ABC, a proximidade com São Paulo obscurece nossas ações e polariza as atenções. Não existe núcleo sem periferia. O Grande ABC, observado isoladamente com todos os seus indicadores, se apresenta como núcleo potencial em qualquer localidade do País, menos no seu lugar geográfico, ladeado por São Paulo, Guarulhos e Baixada Santista. A potência desses vizinhos descaracteriza a existência de um cinturão periférico e nos remete, a todos, à referência inconteste da Capital. Não falamos de uma Capital qualquer. Falamos do grande centro de negócios, de cultura e de entretenimento da América Latina. Os equipamentos existentes em São Paulo não encontram paralelo no Grande ABC e isso inibe, sem dúvida, nosso desenvolvimento. Entretanto, uma série de fatores tem convergido no sentido de modificar esse fato. A metrópole cresceu demais e o núcleo começa a se exaurir. Deseconomias urbanas de toda ordem (trânsito, segurança, precariedade da infra-estrutura urbana da Capital etc.) começam a desestimular o deslocamento para o núcleo, exigindo a descentralização de equipamentos de porte e interesse metropolitano que sugerem a conformação de novos núcleos. Esse movimento é lento. Não combateremos o Complexo de Gata Borralheira se de fato não consolidarmos no Grande ABC um novo núcleo metropolitano com equipamentos e serviços que de fato rivalizem com os da Capital. Esse é o desafio colocado aos gestores públicos, empreendedores privados, profissionais liberais, Imprensa regional, enfim, a toda nossa comunidade".
Wilson Afonso Rosa, engenheiro civil e matemático
“Gata Borralheira é uma história, ou melhor, um conto de fadas que trata das grandes decepções de uma jovem com ansiedades edípicas e opiniões desvalorizadas sobre si mesma causadas pela desvalorização dos outros -- no caso, a madrasta -- sobre ela. No entanto, a libertação dessa madrasta só é alcançada quando o príncipe, após marchas e contramarchas, a pede em casamento restituindo-lhe a auto-estima e o rumo perdidos. Na verdade, o conto é um manancial de ensinamentos sobre as dificuldades a respeito da eterna busca da identidade, do sentido da vida, da auto-estima e da autonomia que cada um deve empreender na vida. Por analogia, é exatamente isso o que acontece na região. A proximidade e, consequentemente, a comparação com a metrópole mais importante da América Latina e uma das maiores do mundo (a madrasta do conto) provoca no Grande ABC a falta de identidade, a dependência e a desorientação. Ou seja, a síndrome de Gata Borralheira. Fica muito claro que a superação do Complexo de Gata Borralheira regional está intimamente vinculada à busca incessante da libertação da Capital ou, em outras palavras, do desenvolvimento auto-sustentado. Entretanto, antes de ser alcançada a sustentabilidade regional -- através da determinação de um plano diretor das prioridades regionais -- deve ser buscada a sustentabilidade de cada uma das sete cidades. Bem diferentes da maioria dos que aí estão só para fazer figura -- profunda e detalhadamente diagnosticados mas, ao mesmo tempo, vivos, dinâmicos, coesos, estruturados, prospectivos, indutivos e, mais do que tudo, que refletissem com perfeição as reais aspirações físicas, sociais, culturais e econômicas dos habitantes de cada uma das sete cidades -- os planos diretores seriam a solução para alcançar esse desenvolvimento. A melhoria da unidade institucional seria outra consequência dado que, tendo realmente conhecidas as suas identidades, cada cidade exerceria melhor seu papel político-institucional e, ao mesmo tempo, compreenderia melhor o das outras. Não haveria motivo para ocupação de espaços desnecessários, dentro do contexto regional, evitando com isso choques e divergências".
Marcos Le Pera, presidente, publicitário
"Estamos no Grande ABC há 10 anos e sempre estivemos com os olhos voltados para São Paulo. Por quê? Qual é o esclarecimento e atualização das novas ferramentas de comunicação e de relacionamento que nossos empresários conhecem ou aplicam? Quantas empresas temos para exemplificar como casos de sucesso em marketing no Grande ABC por agências do Grande ABC? Digo de cases reconhecidos nacionalmente. Sem citar nomes, mas uma empresa de grande marca com atuação exclusiva na região, ao receber nossa apresentação, não sabia o que era marketing direto. Ousou comparar com mala-direta, sem a menor noção dos resultados comerciais que podem ser obtidos com bom planejamento direcionado para seu negócio. E falo com propriedade, pois temos provas e números realizados aqui, na unidade Grande ABC, onde nascemos e adquirimos experiência. Estamos nos fortalecendo para nos unir aos cidadãos e empresários que estejam dispostos a evoluir conosco em cultura e mentalidade em marketing, pois na concorrência predatória e decadência econômica que estamos passando, só sobreviverão os que estiverem um passo à frente".
Josué Catharino Ferreira, geógrafo e professor
"Uma cidade ou uma região está definida quando todos os habitantes conhecem os limites físicos, culturais e econômicos. Limites físicos geram feição à cidade, uma montanha, um rio, uma represa, algo que delimita o território e dificulta, ainda que pouco, a livre circulação para outros locais. Limites culturais referem-se às peculiaridades linguísticas, religiosas e folclóricas que distinguem certas localidades das outras. Limites econômicos traduzem-se quando uma cidade ou região é praticamente auto-suficiente ou tem poder de fogo em alguma área/produto em que possa comercializar com as outras regiões. Nós não possuímos nenhum desses limites simplesmente porque somos parte de uma região, somos parte da periferia da Capital do Estado. De dois em dois anos somos torturados pelos programas eleitorais e quais são os debates que assistimos? Isso mesmo, os dos candidatos da Capital. Adoro ver desfile de escola de samba, tanto do Rio como de São Paulo. Zapeando pelo controle remoto deparei-me com uma transmissão pobre, escura, com uma locução monótona... São Paulo? Não. Rio? Muito menos. Era a transmissão feita pelo Canal 3 do Carnaval de Santo André de 2001. Assisti um minuto e voltei para a Globo. Afinal, era melhor assistir uma transmissão decente. Qualquer chamada telefônica custa proporcionalmente mais cara para nós do que para os moradores da Capital. Afinal, se ligar para São Bernardo ou Mauá, pagarei o mesmo valor de um telefonema para Cajamar ou Jundiaí. Somos partes de um todo e deveríamos pensar mais na integração com a Capital do que com o mundo de fantasia que ronda o imaginário de diversos habitantes do Grande ABC. Pessoas que pensam que somos um local com limites físicos, culturais e econômicos distintos do resto da região".
Dalila Teles Veras, escritora
"Nosso Complexo de Gata Borralheira resume-se no seguinte: falta-nos conhecimento histórico e contemporâneo local, espelho no qual nos possamos mirar e nos reconhecer, e isso resulta em falta total de auto-estima. Ao invés do sentimento paroquial, de Município, precisamos pensar regionalmente, metropolitanamente. A maioria dos habitantes da região sequer desconfia do que seja essa tal questão regional, não conhece nada que vá além do seu portão. Falta conhecer a rua, o bairro, o Centro, a periferia, a cidade, a outra cidade, a fronteira, buscar identificações para construir a identidade que nos falta. Não é fácil viver numa paisagem mutante, repleta de esqueletos arquitetônicos, lojas e cinemas transformados em estacionamento, grades a substituir jardins, câmaras a substituir vizinhos, máquinas a substituir toques e gestos. É preciso, com urgência, (re) construir a auto-estima local, orgulhar-se de nossa história. Para isso, é preciso ter a ousadia de escrever um novo roteiro, com menos retórica e mais ações visando a perspectiva regional. Pensar regionalmente não significa ignorar a própria cidade, o Município do domicílio, nem perder a própria individualidade. Pensar regionalmente significa fortalecer-se a partir de ações conjuntas, uma consciência social coletiva. Para tanto, é necessário um mínimo de organização social, o cultivo da utopia que admite as diferenças e outras possibilidades. É, sobretudo, uma decisão cultural que precisamos buscar a qualquer custo".
Ana Claudia Marques Govatto, M. Govatto & Associados
"Está claro que a região se vê com certa tristeza e pessimismo, sua auto-estima está baixa, debilitada, carente de tratamento. Mas um diagnóstico mais seguro de uma situação requer ouvir outros públicos, outras comunidades. Para elaboração de um planejamento com bases mais sólidas são necessárias outras sondagens. O que a população de cidades circunvizinhas pensa sobre a região? O que empresários de outras cidades de São Paulo e até de outros Estados brasileiros pensam sobre a região? O que possíveis investidores pensam sobre a região? Podemos descobrir, por exemplo, que nossa imagem lá fora é muito diferente da imagem que temos de nós mesmos. Isso poderá nos mostrar algumas oportunidades e ameaças. Esse tipo de trabalho, essencialmente de marketing, é capaz até de elevar a auto-estima de uma localidade. Tendo a comunicação como ferramenta de marketing, podemos afirmar que, utilizando-a, poderemos agregar valor a uma imagem, reconstituí-la e até transformá-la totalmente".
Leandro Tadeu Novi, publicitário
"Há anos o Grande ABC vem se deparando com processo de deterioração. Os efeitos catastróficos que a abertura comercial pode causar a economias pouco preparadas aqui assumem contornos muito maiores. A era da informação que derrubou fronteiras e encurtou distâncias serviu também para desmascarar velhos mitos, trazer à tona verdades que há muito se mantinham escondidas. Inebriados pelo mundo que agora está tão perto, deixamos de enxergar as vantagens e benefícios do que está ao lado. Um velho ditado popular afirma que a boca fala do que o coração está cheio. Até que ponto nossas fraquezas e inseguranças têm se revelado na avaliação que fazemos dos produtos e serviços da região? O Complexo de Gata Borralheira é marca registrada de nossa nação. Colonizados de maneira desastrada e exploratória, nos deixamos subestimar. Somos tratados como nação do futuro -- futuro que parece nunca chegar. Sempre que o Brasil busca encontrar sua vocação, desenvolver-se, vem alguém dizendo que não chegou a hora, que não estamos preparados. O mesmo acontece no Grande ABC. Será tudo isso fruto da nossa colonização? De certo, quando o milagre das montadoras trouxe à região a promessa de estabilidade eterna, nos deixamos dividir em capitanias hereditárias. Esse processo nos deu a sensação de conforto, mas nos escravizou. Não que todo o desenvolvimento advindo dessas grandes empresas foi ruim. Progredimos, geramos riqueza, mas de que forma e a que custo? Por deitarmos em berço esplêndido deixamos de investir em outras áreas. Todos, empresários, sociedade civil e governos, não tivemos criatividade para buscar a vida que existia além do setor automotivo e, pior, não nos antecipamos às transformações que esse setor viveria, não nos preparamos para manter por perto aqueles que nos mantinham, enfim, deixamos de ser interessantes. Todo esse histórico, ao invés de nos despertar e nos tirar da inércia, tem nos levado à submissão cada vez maior".
Édison Motta, jornalista
"Tenho andado muito pelo Brasil, de Norte a Sul, e percebo, nesses últimos 20 anos, como nossa imagem mudou para quem está fora. Se antes éramos o Eldorado das grandes montadoras e de todas as oportunidades, hoje tomamos o lugar da Baixada Fluminense porque os programas de maior audiência na TV voltam-se para o jornalismo policial que, infelizmente, todas as semanas contempla nossa região. Além do desemprego, desencadeador primeiro de todos os demais problemas sociais que enfrentamos. Mudar essa imagem? Difícil sem alterar profundamente nossa realidade. E como alterá-la? Se nos anos 40 e 50 a febre emancipacionista criou os sete municípios que conhecemos como Grande ABC, hoje qual é o sentido prático de sete cidades, sete administrações municipais e um sem fim de cabides de emprego que servem apenas para onerar os cofres públicos e emperrar decisões que poderiam beneficiar toda a região não fosse o bairrismo intramuros municipal? Fôssemos um conglomerado único, com uma única representação executiva e uma bancada parlamentar que defendesse a região como um todo (e não como ocorre agora, com os deputados sendo eleitos com olhos vistos às eleições municipais dois anos à frente), o cenário seria outro. Um só prefeito e uma só Câmara de Vereadores para os sete municípios, e uma bancada parlamentar com 20 ou mais deputados voltados para um projeto de restauração e desenvolvimento comum para a região. Que tal?".
Fausto Cestari Filho, empresário
"Talvez o quadro clínico seja mais grave do que a esquizofrenia. Me parece que há fortes indícios de psicose-maníaco-depressiva associada. Na esquizofrenia há uma dissociação do racional em relação ao emocional, mas é um quadro insidioso que expõe seu portador a baixo risco de vida, enquanto a PMD se caracteriza pela alternância de estados de euforia e depressão que podem levar ao suicídio. Não há nenhuma dúvida de que somos uma região suburbana. Negar essa condição seria deixar de reconhecer nossa origem, bem como ser considerado ou admitir ser subúrbio de São Paulo é de fato motivo de muita honra e orgulho. Afinal, trata-se da terceira maior cidade do mundo, um dos maiores centros gastronômicos do planeta, com imensa variedade de atividades culturais e sociais, o maior e certamente o mais bem estruturado centro de consumo do País e de toda a América Latina. Estar tão próximo desse gigante é de apavorar qualquer um, porque tanto pode ser nossa alavanca como pode também ser nossa destruição. Se não tivermos absoluta convicção de nossas competências e reconhecimento humilde de nossas carências, e as utilizarmos de forma a conviver tão próximo numa relação de complementaridade e não de submissão, o melhor é realmente dar um pulinho até o Shopping Charcô e comprar um modelito fashion de camisa de força. Aliás, o Hospital Charcô deve ter saído da região porque perdeu muitos fregueses com a evasão das indústrias do Grande ABC, porque só maluco se dispõe a ter uma indústria neste País, principalmente se for de capital genuinamente nacional".
Luís Antonio Sampaio da Cruz, executivo da Acisa
"Além de gerenciar a Acisa, sou consultor nas áreas de qualidade, cultura e estratégia organizacional. Tenho clientes na Capital, Interior, Rio de Janeiro, Brasília, Curitiba e Porto Alegre. Quantos clientes tenho ou que já tive no Grande ABC? A resposta não é nenhum, mas sim três, um dos quais é uma multinacional na qual trabalhei por mais de 20 anos e que na verdade me pagou durante todos esses anos para aprender. Os outros dois são conhecidos pela boa cabeça que têm, pois contribuem efetivamente para pensar e mudar a região. Portanto, concluo que a desvalorização do Grande ABC em detrimento de consultores e consultorias da Capital é um ranço cultural predominante. O mais interessante é que na Região Metropolitana nunca houve fronteiras para se buscar conhecimento, experiências e vivências das mais ricas possíveis. Imagine então num mundo globalizado no qual temos a maior mobilidade possível para buscar conhecimentos e adquirir competências que eventualmente não encontramos aqui. Aliás, este é outro mito, fruto talvez do mesmo complexo, pois temos no Grande ABC escolas cujos profissionais que formam são valorizados em qualquer ponto do País. Acho que talvez tenhamos construído, ao longo das décadas, um Grande ABC como espaço de trabalho e não espaço para viver. Fruto talvez de um paradigma obsoleto que pregava o tempo do trabalho separado do tempo do viver. Viver no sentido de aprender, dedicar-se ao lazer, ao convívio, à cultura, às compras e às artes. Tenho a impressão de que aceitamos, até com certo orgulho, que aqui se trabalha, se produz, se constrói, se faz. Agora, para as outras coisas, temos de sair do Grande ABC ou trazer gente de fora para fazer".
Ângela Athayde, consultora empresarial
"Acho que deveria ser Complexo da Gata Borralheira e não de Gata Borralheira. Porque a gata, tanto quanto o Grande ABC, não se enxergou! Será que ela, se não tinha espelho, sequer viu que seu reflexo era lindo em comparação ao de suas irmãs? Precisou que a fada tivesse aquele trabalhão todo de transformar abóbora em carruagem, ratos em cavalos etc. para que ela pudesse ter vez na estória? Nós do Grande ABC passamos a vida inteira tentando ser de São Paulo. Tanto que, quando alguém perguntava de onde a gente era, vinha a resposta: sou de São Paulo. E sempre justificamos assim: o Grande ABC já é São Paulo, pois nossos limites se confundem ou até a barbárie de que éramos de lá porque consumíamos lá, nos divertíamos lá e assim ia. Os prefeitos também não se enxergaram: quando recebiam rios de dinheiro com a arrecadação do antigo ICM, não se preocuparam em investir em ótimos hospitais, teatros, faculdades, hotéis e outras necessidades primordiais. Porque tínhamos São Paulo, que achávamos nossa. Naquela época, não precisávamos nem de abóbora para produzir o encanto. Tínhamos o único e maior parque industrial do País. E hoje, quem será a nossa fada? Aqui vai uma lição: os olhos só servem para duas coisas: enxergar e chorar. Assim, quem não enxerga... chora!".
Sergio Ballarini, advogado ambientalista
"Penso que o fenômeno não é exclusivamente nosso e sim fruto da política norte-americana para a América do Sul. No nosso caso, isso nos chegou quando a região, que era formada por sítios, chácaras e meio natural -- os antigos moradores adoram falar do sabor e da qualidade das frutas que aqui se colhiam --, se transformou muito rapidamente em pólo industrial atraindo multidão de migrantes, sem que tenha havido por parte das autoridades precaução com a dualidade ambiental. Por causa dessa incúria, os habitantes não só foram levados a parir seus descendentes em São Paulo -- já que aqui não havia hospitais ou parteiras que dessem conta da enorme demanda surgida de repente -- como também à Capital recorrer buscando atividades culturais, bens de consumo etc. Até meados da década de 70 não havia hotéis na região. A única exceção era o pitoresco Binder de São Bernardo, que não atendia a todas as necessidades regionais. A monocultura industrial capitaneada por interesses colonialistas se instalou entre nossos presente e passado, munida de sua própria moral recheada de sofismas e falácias, como um processo de desertificação que ainda hoje afeta, subliminarmente, a identidade cultural do nosso povo. Se alguns de nós procuram a Capital é porque não têm meios de ir a Miami, caso contrário já teríamos até aeroporto regional. Quebraremos essa cadeia quando entendermos que certos tipos de trabalho ou atividade, contrariamente ao que pretende garantir nossa Constituição Federal, ao invés de dignificar o homem, o alienam!".
Roseli Braga, comerciante
"Falta à região uma emissora de televisão em canal aberto. O acesso a TVs por assinatura ainda é limitado demais. A proximidade com a Capital só fez atrapalhar nosso desenvolvimento. Se estivéssemos distantes teríamos canais de retransmissão e nossas propagandas regionais nos intervalos. Aqui, até horário político temos que assistir da Capital. Sabemos mais da Marta Suplicy e seus amores do que do trabalho do Celso, Maurício etc".
Adriano Ferreira Calhau, publicitário
Somos um caso para Freud ou para marqueteiros? Freud irá entender quais são os traumas que aquele garoto antes tão rico e próspero teve ao se deparar com sua nova realidade. Na verdade, se perceberá que esse pupilo ainda não aceitou essa condição, insiste na fantasia e em viver daquela imagem de grande e poderosa região. Uma característica na origem dessa região torna esse pupilo ainda mais confuso. Desdobra-se em dupla ou talvez tripla personalidade. Às vezes tem rompantes e se acha importante, rico e cosmopolita como a Capital, outras vezes apresenta sintomas provincianos, regionalistas e caipiras, típicos do Interior, e quando sente o cheiro de maresia, identifica-se com o Litoral e vai surfar no Porto de Santos. São muitos gens e influências, e pouca identidade própria. Freud provavelmente iria ficar empolgado com tantos complexos, paradoxos, sonhos frustrados, enfim, muita coisa para interpretar e desvendar. E como em um tratamento, provavelmente faria esse pupilo rever e falar sobre sua origem e o que se tornou. Colocar em análise. Claro que nesse processo haverá momentos difíceis, verdades elucidatórias, dúvidas verdadeiras e catarses para aceitar a realidade. Mas Freud por certo diria que a dor faz parte do processo e que, se quiser ser realmente grande, como fundo ele sabe que é, terá de conhecer seu potencial e, também, seus limites. E o que diriam os marqueteiros? Devem começar pelo briefing, mas antes de qualquer coisa virá a pergunta: quem hoje está fazendo comunicação dentro e fora do Grande ABC? Quais são os líderes representantes do povo e os formadores de opinião que estão moldando a base, a essência do conteúdo? O que vamos dizer e para quem vamos dizer? E finalmente, quem são os especialistas que, através das técnicas de comunicação, vão sugerir como vamos dizer isso e quais serão os meios e canais utilizados? O Grande ABC não sabe se comunicar. Primeiro, porque não sabe o que dizer (isso é com Freud). Segundo, porque alguns poucos marqueteiros que fazem esse trabalho não dão conta (mas também não deixam entrar ninguém que possa fazê-lo). E terceiro, porque faltam canais de comunicação com penetração mais abrangente e popular para convocar a grande massa".
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24/04/2025 GRANDES INDÚSTRIAS CONSAGRAM PROPOSTA