O exercício do jornalismo está-se tornando um fardo, porque não encontro uma vereda sequer em que prevaleça o bom senso nas questões regionais. O exemplo de hoje é emblemático: jornais e sites locais divulgaram espécie de propaganda enganosa da direção do Clube dos Prefeitos após uma reunião não se sabe onde com o ex-presidente da República, Fernando Henrique Cardoso.
O tucano de alta plumagem encheu a bola de uma instituição agora mais que nunca em estado falimentar. Sem memória, os jornais e sites locais não informaram que FHC, em oito anos de mandatos, conduziu a região à perda de um terço da produção de riqueza e jamais deu as caras para entender o que se passava por essas bandas. Aliás, FHC só esteve na região uma vez naquele período, ao participar da festa de inauguração da fábrica do K, da Ford. Foi duramente hostilizado pelo movimento sindical.
Ou seja: o reconhecidamente brilhante intelectual seria o último exemplar na face da terra a fazer qualquer tipo de análise ou mesmo produzir uma frase sequer sobre o Clube dos Prefeitos.
Digo e reafirmo que é indispensável acionar o acervo desta publicação, herdeira legítima de LivreMercado, revista que criei em março de 1990 e que teve vida editorial utilíssima até dezembro de 2008. E o acervo que puxo aleatoriamente mostra o que escrevi na edição de abril de 2002. Peço aos leitores que acompanhem alguns dos principais trechos daquela análise. Em seguida, retomo a narrativa do presente. Leiam o passado para entender o hoje:
Encontro tardio
Se a integração regional fosse minimamente vigorosa, não seriam necessários 12 anos de massacre macroeconômico para que, finalmente, o Grande ABC esboçasse reação cristalizada na audiência com o presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, por comitiva formada basicamente pelos sete prefeitos do Consórcio Intermunicipal. Região mais duramente abatida pela abertura econômica mais destrambelhada da história nacional, o Grande ABC foi simplesmente torpedeado ao longo dos anos 1990 sem que reações teóricas invadissem o terreno minado, mas construtivo da prática. O anúncio do Consórcio Intermunicipal, agora presidido pelo conservador Luiz Tortorello, prefeito de São Caetano, de que o Grande ABC está agendando encontro em Brasília com o presidente da República é algo semelhante a providenciar alarme para um veículo que há muito foi levado pelos bandidos. É claro que a comparação é exagerada. Até porque, por mais que o Grande ABC literalmente caia nas tabelas de estatísticas e realidades, sempre é tempo de salvar alguma coisa. Mesmo que seja a pecha de omissão.
Comitiva maior
A gravidade do quadro regional, ainda distante de ponto terminal, exigiria muito mais que uma delegação de prefeitos para dialogar com Fernando Henrique Cardoso. Em circunstâncias normais, fora do calendário eleitoral, a mobilização deveria envolver agentes sociais, econômicos, culturais e políticos. Famoso pela ação sindical, o Grande ABC não teve sensibilidade durante 12 anos de quase extermínio de sua principal riqueza -- a indústria automotiva -- para juntar forças, constituir espécie de Movimento dos Sem-Indústria e dos Sem-Emprego, plantar-se à frente do Palácio do Planalto e expressar, com discursos e faixas, descontentamento pelo genocídio empresarial a que foi submetido. Governos encastelados e cercados de alquimistas só costumam acordar para a realidade quando ouvem a voz rouca das ruas.
Ação de avestruzes
É evidente que seria demais esperar essa reação coordenada e pacífica, embora vigorosa e desafiadora à política de abertura indiscriminada do mercado interno. Para isso, seria preciso que o Grande ABC de sindicalistas, empresários, pensadores, universitários e lideranças sociais tivesse a humildade de reconhecer-se na lona. Entretanto, como até recentemente o que parecia mais sensato era compartilhar rocambolesca mistificação dos números e dos investimentos tecnologicamente seletivos, o que se viu ao longo dos anos foi uma quase que monolítica ação de avestruzes -- enterrou-se a cabeça diante do quadro de degradação da qualidade de vida.
Descompasso total
Se é verdade que o Grande ABC foi capaz de organizar-se razoavelmente no âmbito interno com a construção de várias instâncias, casos do próprio Consórcio de Prefeitos, do Fórum da Cidadania, da Câmara Regional e da Agência de Desenvolvimento Econômico, também não resiste ao fato de que externamente não obteve qualquer resultado efetivo, desses que fazem a diferença entre o meramente pontual do profundamente sistêmico. A Câmara Regional é retrato bem-acabado da situação. Contam-se nos dedos das mãos as vezes em que o governador do Estado -- tanto Mário Covas quanto Geraldo Alckmin -- esteve na região com integrantes da entidade. Desempenho nada diferente cabe aos secretários estaduais. Já os resultados da pauta de propostas que determinaram o lançamento da Câmara são pífios, se considerada a asfixia econômica que atinge a região. Do governo federal, então, praticamente nada se registra como instrumental de peso à recuperação regional. Se forem mensurados os recursos gerados na região em forma de impostos e o que retorna com a aplicação de políticas desenvolvimentistas, o contraste será revoltante.
Autopeças liquidadas
O emparedamento a que foi submetida a economia do Grande ABC explica sem retoques o quadro de depauperação de grande parcela dos 2,4 milhões de habitantes. A indústria automotiva -- montadoras e autopeças -- foi simplesmente triturada nos anos 1990. Principalmente as autopeças, colocadas na arena da competitividade internacional com o drástico rebaixamento de alíquotas de importações. Não é por outro motivo que, além de deserções e falências, o concentrado universo de autopeças da região foi completamente desnacionalizado, como de resto no Brasil. Sedimentadas sob bases familiares, as pequenas e médias indústrias criadas para atender as montadoras de veículos praticamente desapareceram do mapa regional.
Como endinheirados
Some-se ao aniquilamento das pequenas e médias empresas a febre por competitividade das montadoras de veículos, cujos resultados mais visíveis são os 100 mil empregos formais da indústria que desapareceram entre 1990 e 2000, e se tem flagrante instantâneo da vulnerabilidade socioeconômica do Grande ABC. Tudo isso foi esmiuçado durante todo o tempo e nem assim as lideranças da região foram capazes de reagir. O Grande ABC agiu com a naturalidade patológica do endinheirado que vê a fortuna esvair-se, sabe que um dia vai ficar de bolsos vazios, mas mantém hábitos inalterados, à espera de milagre.
Raiz das dificuldades
(...) A grande sacada do prefeito Luiz Tortorello é que, se pode chegar até o papa, por que deveria perder tempo com intermediários do baixo clero? Principalmente porque o pressuposto dessa aparentemente atrevida intervenção, que nenhum prefeito da região ousará negar-se a aderir, tem simbolismo muito especial e indiscutível: o Grande ABC está em situação de tal desespero ditado pela crescente queda de participação absoluta e relativa no PIB estadual e nacional, em contrafluxo com o embrutecimento social, que não resta alternativa senão arriscar xeque-mate contra o presidente do País. Um presidente que, com sua equipe econômica, sustenta há quase oito anos modelo desenvolvimentista que está na raiz das dificuldades de uma outrora grandiosa obra regional do capitalismo privado protegido pelo dirigismo estatal. Histórico, aliás, que só agrava a abertura desenfreada.
Mensagem bíblica
(...) É possível que, se vivo estivesse, o prefeito Celso Daniel observaria a empreitada de Luiz Tortorello com surpresa, repetindo, aliás, comportamento dos prefeitos petistas da região ao tomarem conhecimento da iniciativa. Afinal, como pode um prefeito tão ausente dos debates regionais ter sacado uma tática desse porte? Aí de novo se tem outro paradoxo: Tortorello só pensou e agiu de forma acaciana, provavelmente inspirado na mensagem bíblica de que se Maomé não vai à montanha a montanha vai à Maomé, porque estava imune aos paradigmas que dominaram o Consórcio, a Agência e a Câmara Regional ao longo dos tempos. Que paradigmas? A indispensável construção de diagnósticos internos, acompanhados de propostas que seriam aplicadas entre os parceiros locais ou com o suporte do governo do Estado. O governo federal, blindado contra a periferia do poder, jamais esteve na ponta da agulha.
De volta ao hoje
Retomo o artigo. O passeio pelo passado que o leitor mais responsável deve ter aderido, porque sem conhecer o que se foi é impossível entender o que se passa, mostra que veem de longe a apatia regional e o descaso das autoridades mais graduadas do País. Algo que nem mesmo o PT durante 13 anos no Poder Federal conseguiu neutralizar. Tanto que prevaleceu mesmo o apoio partidário que pretendia fazer da região berço que embalaria Luiz Marinho ao governo do Estado. Não se tinha a ideia de que o PT encontraria dois exércitos de complicações: o desastroso governo de Dilma Rousseff e os estragos da Operação Lava Jato.
Embora sem dar grande destaque na edição de hoje, o Diário do Grande ABC publica a seguinte manchete: “Fernando Henrique Cardoso elogia Consórcio Intermunicipal: ““Grande ABC virou referência””, disse o ex-presidente. Um tiro no alvo, claro. Só faltou explicar o tipo de referência. No caso, sem dúvida, de incompetência generalizada de lideranças políticas, culminando no desastre do atual prefeito dos prefeitos, Orlando Morando, tucano como FHC.
Escreveu o Diário do Grande ABC:
Ex-presidente da República, Fernando Henrique Cardoso (PSDB) teceu elogios ao modelo do Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, colocando o colegiado como “referência” em política pública no País. A declaração foi dita durante encontro com Tunico Vieira (PMDB), na segunda-feira, último dia do emedebista como secretário executivo da entidade – Tunico se desligou do Consórcio para terminar o doutorado na Universidade de Coimbra, em Portugal, e foi substituído por Uriel Aleixo, então diretor-jurídico do grupo. “O Grande ABC sem dúvida nenhuma, foi pioneiro e referência para tantos outros agrupamentos de cidades no Estado de São Paulo. Uma ferramenta que deu certo e tem de continuar a buscar melhorias para a região”, disse FHC, chefe da Nação entre 1995 e 2002” – escreveu o jornal.
Regionalistas?
Fosse o jornalismo verde e amarelo mais competente na contextualização dos fatos, não espécie de ramal de assessoria de imprensa, a declaração de Fernando Henrique Cardoso mereceria muito mais que algumas linhas. E mais: quem é Tunico Vieira como exemplo de regionalidade e como ponto de partida de análise? E quem é seu substituto, Uriel Aleixo, também sob o mesmo prima? Eles não resistem a uma sabatina.
Quem pensa que o estrago histórico representado pelas declarações desconexas de Fernando Henrique Cardoso (tanto pelo histórico sofrível do Clube dos Prefeitos como pela omissão à regionalidade durante os dois mandatos presidenciais) não sabe da missa um terço. Não é que Tunico Vieira presenteou o ex-presidente com um pen drive que resume as atividades do Clube dos Prefeitos desde que foi criado em dezembro de 1990. Dá para o leitor imaginar o quanto de inverdades e meias verdades estão compactadas? Francamente, esta região não é séria. Nem responsável.
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