Quando Toshie Kobayashi se viu frente a frente com o balé clássico pela primeira vez, a impressão que teve foi a de que não conseguiria repetir passos tão abertos e ousados, diferente de tudo que havia aprendido até os oito anos de idade. Criada em uma cultura onde a submissão feminina sempre coreografou regras e costumes, Toshie saltou do odori -- dança típica do Japão cujos movimentos são fechados e suaves -- para mergulhar na explosão inversa do balé, arte européia que transforma músculos, nervos e articulações em pura linguagem do movimento. Em pouco tempo, parecia que havia nascido com os pés em ângulo de 90 graus, posição clássica do balé.
Incentivada pela mãe nissei, mulher culta que tocava piano e violino, dons herdados pela filha, Toshie não só venceu a barreira da timidez como fez do balé clássico fonte de inspiração. A determinação em seguir carreira sobre as pontas de delicadas sapatilhas já estava entranhada na jovem filha de imigrantes japoneses radicados no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial. Única mulher numa família de mais dois irmãos, a bailarina nasceu na Capital paulista. Conduzida por mãos e pés de mestres como a italiana Carmen Bonn, que a introduziu no método de dança Cechettti, e a brasileira Marília Franco, Toshie descobriu quase que por acaso a vocação que abraça há 35 anos: a de semear e colher talentos para platéias do mundo inteiro.
O nome Toshie Kobayashi está para o balé nacional como a música está para a dança. A venerável mestre é considerada um dos ícones nacionais e uma das principais expoentes dessa arte na região. A ex-bailarina mignon, cuja vaidade não a deixa revelar a idade nem sob tortura, comanda uma das escolas particulares de alto padrão mais respeitadas no meio em todo o País. "Quem procura minha instituição, que é mantida com recursos próprios, quer realmente estudar balé clássico com seriedade" -- compara Toshie Kobayashi, que perdeu a conta de quantos pas de deux já ensinou. Apenas no Ballet de São Caetano formou mais de mil bailarinos.
Mara Mesquita, que hoje brilha no palco do prestigiadíssimo Balé da Cidade de São Paulo, Sandro Borelli, renomado coreógrafo com passagem por companhias como Cisne Negro e Stagium, e Andrea Tomioka, que atualmente brilha na dança contemporânea no Balé da Cidade, são alguns dos ex-alunos na extensa galeria de pupilos da veterana professora. "A Mara e o Sandro, hoje casados, começaram a namorar quando estudavam comigo" -- relembra, saudosista. Cecília Kechi, um dos grandes talentos do balé clássico nacional, e Antônio Gomes, que trabalha na Suíça, entre outros dançarinos de projeção internacional, se somam à constelação de primeira grandeza que orbitou pela escola do Bairro Santa Paula.
Carreira meteórica -- Na década de 60, a paulistana Toshie Kobayashi era uma estrela em ascensão no palco do imponente Teatro Municipal de São Paulo, em plena efervescência política e sociocultural no País. Em uma época marcada pelos anos de chumbo do regime militar, pela descoberta do Cinema Novo de Glauber Rocha e Cacá Diegues, e pela combativa imprensa alternativa do Pasquim, espetáculos de balé arrastavam multidões ao teatro. Óperas como O Lago dos Cisnes e Quebra Nozes, de Tchaikóvsky, lotavam o teatro mais importante da América Latina.
A ex-bailarina atuou profissionalmente de 1964 a 1970, quando inesperados problemas de saúde interromperam a carreira meteórica. Sobre esse hiato na sua vida, prefere manter silêncio. Antes de se afastar dos palcos, Toshie dançou na Ginkana Kibon, programa dominical de televisão comandado por Vicente Leporace na TV Record. "O programa recebia personalidades e atrizes globais, entre as quais Suzana Vieira e Nívia Maria" -- recorda a coreógrafa, que chegou a se apresentar em concorridos palcos da Argentina, Itália e Espanha.
A vinda para o Grande ABC ocorreu quase que por acaso. A ex-bailarina, que na época passou a dar aulas de balé, atendeu a um pedido do maestro Túlio Collachocco, do Teatro Municipal de São Paulo, para ensinar filhas de ilustres famílias de São Caetano. Sem conhecer a região, viajava de trem a cada 15 dias. "Fui identificando alguns talentos e, de repente, já estava envolvida, comprei um carro e vinha três vezes por semana à cidade" -- rendeu-se a professora, que se divide entre a residência no Jardim da Saúde, na Capital, e a escola no Grande ABC. Casada e mãe de três filhos, Toshie não transmitiu a herança genética para a prole, que optou por áreas como medicina, engenharia e farmácia. Talvez seja por isso que, mesmo com fama de extremamente exigente, o lado maternal aflora quando fala de antigos pupilos ou mesmo quando extrai o máximo dos seus alunos. "Só o talento não basta. É preciso disciplina e dedicação acima de tudo" -- entoa quase como um mantra.
Antes de abrir a própria escola, Toshie deu aulas no Conservatório de São Caetano, no Colégio Tijucussu e na Escola de Bailados de São Paulo. Também foi assessora artística da Fundação das Artes, onde dá aulas como convidada. Com a agenda sempre lotada, mantém fôlego invejável ao se desdobrar entre viagens por todo o Brasil como coreógrafa e palestrante em escolas, workshops e festivais nacionais e internacionais. Só no festival de Joinville, há 21 anos considerado vitrine para os futuros dançarinos, a mestre já soma 18 anos de participação.
O Ballet Toshie Kobayashi atende em média 100 aspirantes a bailarinos a partir de três anos de idade. Atualmente, Toshie ensina grupo restrito de 10 alunos, diamantes brutos lapidados em aulas de no mínimo cinco horas por dia. Na escola de São Caetano, a coreógrafa conta na retaguarda com as professoras Morisa Gerbelotto, Fátima Silva, Valéria Savassa e Cristina Shimizu. Há alguns anos, perdeu a bailarina Mitie Warangae, treinada para ser sua sucessora. A bailarina de São Bernardo foi mais uma das milhares de vítimas da violência cuja vida foi ceifada durante um assalto.
Sem desanimar diante dos obstáculos transpostos pelas milenares paciência e disciplina orientais, Toshie enfrentou preconceito, doença e decepções -- como ver talentos desvirtuados pelo descompasso da vida. Mas também se orgulha de continuar como referência para o balé clássico. A mais nova aposta é Isabella Gasparini, de 14 anos. Medalha de ouro no Youth America Grand Prix, em Nova York, a menina que desde os quatro anos faz balé e há três estuda com Toshie arrebatou a premiação com as notas 9,7 na modalidade clássica e 9,2 na contemporânea. "Isabella foi a única a dançar Satanella. Disputou com 75 concorrentes em sua categoria" -- se envaidece a professora, responsável pela audaciosa remontagem para o clássico de Marius Petipa.
Como prêmio, a adolescente Isabella Gasparini ganhou bolsa de estudos de um ano no Canadas National Ballet School, no Canadá. Filha da bailarina Márcia Lago, Isabella se desloca diariamente de Atibaia, no Interior, para a escola de São Caetano, onde se exercita quatro horas por dia. "Não dou diploma, mas preparo meus alunos para tentar bolsas no Exterior ou ingressar em grandes companhias. Pensava em ter uma companhia própria, mas no Brasil é complicado manter um grupo" -- desabafa Toshie Kobayashi, que além do balé dá aula de história da dança e da música e estimula hábitos como leitura e idas a espetáculos de ópera para perfilar a erudição dos jovens. "Talento é importante, mas a dedicação é imprescindível. O balé só me trouxe alegria" -- declara apaixonadamente a coreógrafa, cujo diploma de contabilidade, curso exigido pelos pais como formação superior, jamais saiu da gaveta.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!