Sociedade

Viramos uma
grande mancha

DANIEL LIMA - 05/08/2003

Algum tempo depois da desocupação industrial do terreno da Volkswagen do Brasil do outro lado da Via Anchieta, dizia-se que um grande empreendimento iria oferecer alternativa de lazer à população. Investidores estariam interessadíssimos em erguer ali torres de hotel de luxo e um parque temático de arrepiar. Pena que a esperada atratividade que recheou espaços de ilusão e triunfalismo da mídia se consumou, agora, com um espetáculo mundo cão.  

Quem voltava num dos recentes finais de semana do Litoral pela Via Anchieta sentiu a atração especial que aquele terreno reservava pelo menos até o final de julho. A velocidade reduzida dos veículos e a curiosidade em acompanhar atentamente com os olhos aquela imensidão de lonas negras oferecia o show da exclusão social, do oportunismo político, da inépcia econômica, da exclusão funcional e da mediocridade cultural de um País que só tem tido futuro nos demagógicos discursos de uma maioria que pleiteia ou ocupa cargo político e entre aqueles que não fazem outra coisa na vida senão bajular poderosos. 

Aquele terreno sem pretendentes à compra -- como tantos outros que restam como prova provada de que a crise do Grande ABC está intimamente ligada à deserção industrial -- é certamente um palco de recados políticos de extremistas de esquerda que querem ver o governo Lula da Silva esquerdizado demais, depois de razoavelmente endireitado. Mas, por mais que represente a orquestração dos radicais, não é possível desclassificar o movimento. O Brasil é um País atônito depois de 20 anos de um patinar insistente e o Grande ABC, no interior desse quadro de paralisia desenvolvimentista, é o retrato mais bem acabado de desmobilidade social -- se assim pode ser chamado o processo em que os ricos viram classe média, classe média vira proletariado, proletariado vira pobre e pobre vira miserável que não tem nada a perder.

O outrora invejável Grande ABC e a igualmente outrora frondosa árvore desenvolvimentista São Bernardo viraram atração circense em versão mais moderna e absolutamente sem graça e sem talento. Os veículos que reduziam a marcha na Anchieta quase um quilômetro antes do terreno invadido pelos sem-teto eram conduzidos por motoristas que, de início, acreditavam estar diante do transtorno de um acidente de trânsito. Entretanto, na medida em que se aproximavam das lonas pretas intuitivamente começavam a entender o espetáculo que os esperava, a eles e aos familiares, todos curiosíssimos em acompanhar ao vivo e em cores o que a televisão está cansada de apresentar e os jornais vorazes em desgraças abrem espaços gigantescos em primeiras páginas e páginas internas. 

Nada mais sintomático do quadro de contrastes do Grande ABC, particularmente do Grande ABC neste País de contrastes, do que o girar de pescoço que muitos motoristas e acompanhantes se deram ao desfrute, olhos estatelados entre a concentração de miséria à direita e um voto de esperança de modernidade penosa e seletiva à esquerda. 

Do lado esquerdo a compactada, recuperada, modernizada e enxutíssima fábrica que a Volkswagen do Brasil formatou para estes tempos de competitividade encardida. O gigantesco painel do imponente Polo, o veículo mais exuberante que a fábrica da Anchieta produz, resplandece na fachada de concreto e transmite a impressão de que a qualquer momento pode ganhar vida e ocupar as pistas da rodovia.

Do lado direito, em tempos passados em que a Volkswagen do Brasil fabricava caminhões que, levados para Rezende, no Rio, ganharam novas metodologias, novos parceiros, novos trabalhadores e novos mercados, o espetáculo de terra batida, lonas ao vento, jovens, adultos e crianças em grupos refletia uma parte considerável do Grande ABC que sobrou da globalização insana que o governo Fernando Henrique Cardoso perpetrou nos últimos oito anos. Como se já não bastassem os contratempos de duas décadas de persistente aporrinhação exacerbada do sindicalismo, que ajudou a destruir as teias de uma ditadura política típica de Terceiro Mundo, mas também se excedeu na aversão ao capital porque supunha como alternativa um socialismo igualmente ditatorial que desmoronou no fim dos anos 80.

O Grande ABC exemplarmente representado nas duas margens da Anchieta é a síntese mais dilacerada de dois movimentos impetuosamente destrutivos que o vitimou nas três últimas décadas, período no qual as forças econômicas foram se fragilizando e a comunidade sofreu queda na qualidade de vida então ascendente e promissora. 

O excesso reivindicatório de bravos sindicalistas e a abundância liberal de um governo liderado por um gentleman, um sociólogo poliglota, imprimem digitais claramente contrastantes na forma, mas semelhantes no impacto. 

O saldo do sindicalismo mais raivoso do Grande ABC, exatamente o que fez surgir para os palcos nacionais o atual presidente da República, é menos negativo que os punhos de renda de Fernando Henrique Cardoso. A hostilidade sindical ao capital foi um processo mais lento e duradouro, portanto menos impactante e se fez acompanhar de outras armadilhas, enquanto a paixão do governo FHC pela internacionalização irresponsável da economia se deu pela via rápida e contundente da redução das tarifas alfandegárias e pela artificialização da moeda, que atingiram em cheio o coração econômico da região. 

As lonas negras do terreno ao alcance de muitos e o veículo Polo ao alcance de poucos sintetizam nas duas margens da Anchieta a ironia de um destino econômico que parecia fulgurante: o painel da última jóia rara lançada pela Volkswagen é apenas um enfeite, sem luz própria, visto apenas porque spots estrategicamente colocados iluminam a fachada em que está exposto; as lonas do acampamento de sem-teto também só desgarram da escuridão porque recebem luzes clandestinas quando a noite chega.

Tanto num caso quanto noutro está a síntese do Grande ABC. Falta luminosidade para reagir. O Grande ABC está às escuras na economia, na política, no sindical, no cultural e no social. O Grande ABC é, institucionalmente, uma mancha embotada.


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