Sociedade

Cartão vermelho
para o machismo

FERNANDO STELLA - 05/09/2003

A história é quase sempre a mesma: o pai apaixonado por futebol vai ao estádio acompanhado dos filhos pequenos com planos de no futuro eles também torcerem para seu time do coração. Esse roteiro vivido em milhões de lares brasileiros teve algumas particularidades na casa de Luiz Emílio, um torcedor fanático do Juventus. Além dos dois garotos, esse morador de Mauá sempre arrastava a única filha mulher aos inúmeros jogos do Moleque Travesso -- apelido dado à equipe da Mooca graças à fama de ganhar dos grandes times da Capital -- nas décadas de 70 e 80. As consecutivas partidas na Rua Javari fizeram com que a pequena Sílvia Regina de Oliveira não só adorasse o esporte praticado por 22 marmanjos, como prestasse bastante atenção nos três homens de preto que jamais tocavam na bola: o árbitro e os dois bandeirinhas. Esse olhar diferenciado fez Sílvia aprender todas as regras do esporte. Hoje com 39 anos, ela é uma das árbitras mais respeitadas no cenário nacional e ocupa posição de destaque num esporte até pouco tempo atrás dominado pelos homens.

O futebol feminino já tem campeonatos mundiais e é praticado nos Jogos Olímpicos desde 1996, além das inúmeras torcedoras que frequentam os estádios. Nem sempre foi assim. Se ainda existe preconceito contra mulheres jogando futebol, o que dizer de duas décadas atrás. A discriminação ganhava proporções maiores quando alguma representante feminina quisesse comandar uma partida. Foi nessa época que Sílvia Regina resolveu fazer curso de arbitragem na Federação Paulista de Futebol com o desejo também formar-se em jornalismo. Aprendeu direitinho as regras no curso de árbitros da FPF, mas formou-se em educação física na Fefisa, em Santo André. "Minha mãe tinha medo de eu ser agredida. Por isso, me obrigou a fazer também curso de corte e costura. Fiz, mas não aprendi quase nada" -- brinca sobre dona Edna.

O primeiro contato com apito, bandeirinhas, cartões amarelo e vermelho foi num jogo entre casados e solteiros no campo do União, em Mauá. "Decidi me dedicar ao máximo para ser árbitra depois de apitar uma partida de mulheres na preliminar da decisão do Campeonato Paulista de 1987 no Estádio do Morumbi, que estava lotado" -- acrescenta. Comandou mais de 500 partidas somente de 1987 a 1996 entre Jogos Abertos do Interior, campeonatos femininos e amadores do Estado. Foi a árbitra principal de partidas de diversas categorias do futebol paulista. Da Sub-15 aos campeonatos da Segunda Divisão. O primeiro jogo na categoria profissional ocorreu há três anos, durante o confronto entre Jabaquara, de Santos, e Comercial, de Registro, pela Série B-2, espécie de quinta divisão do futebol paulista. "Fui muito bem" -- orgulha-se.

Essa partida disputada no Litoral paulista rendeu alguns privilégios à Sílvia em relação aos demais árbitros. Após o confronto, foi homenageada com flores no vestiário. "Isso me deixou muito feliz" -- recorda. Durante o jogo, outro fato chamou a atenção: os poucos torcedores do Jabaquara fizeram coro para os dois assistentes masculinos: "É, é, é, bandeirinha de muié". Independente de quem seja escalado para arbitrar uma partida de futebol, é invariavelmente odiado por qualquer torcida. Poucos são os juízes que nunca foram xingados ao pisar no gramado. Sílvia é exceção até nisso. Ela garante que escuta muito mais aplausos do que vaias. "Graças a Deus não tenho esse problema" -- comenta.  

Outro exemplo de recepção calorosa ocorreu na partida entre Paysandu e Cruzeiro pelo Campeonato Brasileiro deste ano. Ao lado de duas assistentes -- Aline Lambert e Ana Paula de Oliveira --, Sílvia entrou no estádio aplaudidíssima, além de encontrar vestiário totalmente reformulado. "Colocaram box no banheiro, sabonete e até leite de rosas" -- recorda. O respeito também vem dos jogadores. "Em toda minha carreira fui ofendida por apenas três atletas. Todos foram expulsos" -- acrescenta a árbitra.

Esse mesmo trio feminino também entrou para a história do futebol mundial ao comandar o jogo entre Guarani e São Paulo pelo Campeonato Brasileiro de 2003. Foi a primeira vez que três mulheres dirigiram uma partida na competição mais importante de cada país. As boas apresentações fizeram com que Sílvia conseguisse ascensão rápida na carreira. Estreou na Primeira Divisão do futebol paulista em 2001 no jogo entre Mogi Mirim e São Paulo. Nessa época já fazia parte da CBF, que hoje tem mais de 30 árbitras. O salto internacional ocorreu no mesmo ano da primeira partida no Paulistão. Chegou ao quadro de juízas da Fifa -- entidade que comanda o esporte nos quatro cantos do planeta -- e hoje é uma das quatro brasileiras na principal entidade do futebol mundial. Além de apitar o Campeonato Mundial Universitário, na China, há dois anos, a árbitra nascida em Mauá representou o País no Campeonato Sul-Americano de futebol feminino disputado neste ano na Argentina.

A responsabilidade do árbitro é algo diferenciado. Precisa estar atento durante os 90 minutos. É necessário, no mínimo, bom condicionamento físico para estar bem colocado em cada jogada. Sílvia faz sua parte. Corre e faz exercícios em média duas horas por dia. Quando não está no Estádio Bruno Daniel, pode ser encontrada no Parque Prefeito Celso Daniel. Marcar faltas e pênaltis ou expulsar jogadores talvez não seja a tarefa mais complicada do árbitro. O juiz de futebol ainda é considerado amador no Brasil e não tem vínculo empregatício. Tanto que é preciso manter trabalho fixo à parte. "Poderíamos nos dedicar exclusivamente à profissão" -- gostaria. Sílvia, que se divide entre os apitos e as aulas de educação física do Departamento de Esportes de Santo André.


Além das quatro linhas -- O futebol mexeu com a vida de Sílvia Regina de Oliveira em todos os sentidos. Sem entrar em detalhes, a árbitra admite que o esporte mais popular do Brasil foi um dos responsáveis diretos pelo fim de seu casamento de cinco anos. Há três anos está divorciada e mora sozinha no Bairro Valparaíso, em Santo André. O crescimento profissional também vai atrasar um pouco o sonho de ser mãe. "São muitas viagens e inúmeros jogos. Não poderia me dedicar de corpo e alma neste momento" -- lamenta. A longo prazo, a única decisão certa é que não deixará o esporte. "Devo parar de apitar aos 45 anos. Espero exercer alguma atividade dentro do futebol" -- acrescenta.

Não pensem que o futebol fica de lado após o apito final de uma partida. Sílvia adora assistir a programas de futebol na TV, analisar suas apresentações e procurar informações sobre arbitragem na Internet. Família, mergulho e cinema são algumas das outras paixões fora das quatro linhas. Ela também é apaixonada pelo Grande ABC. Morou 33 anos em Mauá e há quase seis reside em Santo André. Com certeza não sairá tão cedo da região. "Estou próxima de amigos e familiares. Isso é fundamental para mim" -- resume. 

A paixão pelo futebol a transformou em árbitra respeitada, mas não em grande jogadora. Nunca teve muita intimidade com a bola nos pés. Em compensação, ganhou algumas competições de handebol e basquetebol durante os Jogos Escolares. Como a maioria das mulheres, Sílvia é vaidosa. "O uniforme está sempre bem passado e cheiroso. Faço unha, arrumo o cabelo e dou sempre uma última conferida no espelho" -- entrega.

Além da dedicação diária ao trabalho, Sílvia Regina de Oliveira procura na religião a fonte de inspiração às boas arbitragens. Faz orações antes e depois de cada partida. Não tem superstição, mas carrega um broche com a imagem de Nossa Senhora Aparecida. A fé é tanta nessa mulher de 1,74 metro e 61 quilos que o último livro que adquiriu foi a Bíblia. "Sempre peço proteção a Deus" -- finaliza. 


Leia mais matérias desta seção: Sociedade

Total de 1097 matérias | Página 1

21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!
20/01/2025 CELSO DANIEL NÃO ESTÁ MAIS AQUI
19/12/2024 CIDADANIA ANESTESIADA, CIDADANIA ESCRAVIZADA
12/12/2024 QUANTOS DECIDIRIAM DEIXAR SANTO ANDRÉ?
04/12/2024 DE CÃES DE ALUGUEL A BANDIDOS SOCIAIS
03/12/2024 MUITO CUIDADO COM OS VIGARISTAS SIMPÁTICOS
29/11/2024 TRÊS MULHERES CONTRA PAULINHO
19/11/2024 NOSSO SÉCULO XXI E A REALIDADE DE TURMAS
11/11/2024 GRANDE ABC DOS 17% DE FAVELADOS
08/11/2024 DUAS FACES DA REGIONALIDADE
05/11/2024 SUSTENTABILIDADE CONSTRANGEDORA
14/10/2024 Olivetto e Celso Daniel juntos após 22 anos
20/09/2024 O QUE VAI SER DE SANTO ANDRÉ?
18/09/2024 Eleições só confirmam sociedade em declínio
11/09/2024 Convidados especiais chegam de madrugada
19/08/2024 A DELICADEZA DE LIDAR COM A MORTE
16/08/2024 Klein x Klein: assinaturas agora são caso de Polícia
14/08/2024 Gataborralheirismo muito mais dramático
29/07/2024 DETROIT À BRASILEIRA PARA VOCÊ CONHECER