Imagine alguém que come, dorme, respira e até pratica esportes pensando em arte? Pensou? Esse alguém é a arte educadora Maria Aparecida Perussi Martins, que há uma década faz da paixão incondicional pelo ofício um sacerdócio para resgatar valores morais e sociais em comunidades carentes. Muito mais do que ensinar história da arte ou a melhor forma de misturar nuances na obtenção do tom perfeito, essa professora de escola pública descobriu que precisava antes de tudo recuperar a auto-estima e a confiança de alunos que nunca haviam pisado em uma exposição cultural, visitado um museu ou assistido ao vivo a um espetáculo clássico. Conclusão: ousada e determinada, Maria Aparecida Perussi montou espécie de ateliê multiuso dentro da própria instituição de ensino.
Aficcionada por pintura e desenho desde criança, só muitos anos mais tarde Maria Aparecida teve a oportunidade de mergulhar profissionalmente no mundo das tintas, pincéis e telas que lhe descortinaria outra espécie de obra: o talento para burilar personalidades. Depois de atuar 12 anos em uma instituição bancária, a professora decidiu colocar em prática a verdadeira vocação e tirar da gaveta o diploma superior em educação artística. Com habilitação plena em desenho pelas Faculdades Integradas Teresa DÁvila, de Santo André, a artesã do ensino foi buscar em Van Gogh, Salvador Dali e Monet fonte de inspiração para ajudar menores a transpor o abismo cultural que segrega ricos e pobres.
Mas como traduzir o academicismo para a linguagem informal em salas de aula onde predominam jovens de classes média baixa e baixa, com pouquíssimo ou nenhum acesso a galerias de arte ou informações sobre Renascimento, Humanismo ou Modernismo? Nem mesmo a Internet abriu as portas à democratização do conhecimento para todas as camadas sociais, segundo o Mapa da Exclusão Digital divulgado pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) e CDI (Comitê para Democracia da Informática), do Rio de Janeiro. Matéria de capa da revista LivreMercado de junho revelou que apenas 15,1% dos brasileiros têm computador em casa, enquanto que no Grande ABC restritos 22,6% dos 2,3 milhões de moradores possuem o equipamento.
O desafio se torna ainda maior porque a professora tem de manter a chama acesa em classes de até 40 alunos da escola estadual Professor José Henrique de Paula e Silva, do Parque Novo Oratório, em Santo André. Entre os pupilos da arte educadora, há três gerações de uma mesma família. "Mães, filhos e avós estudam comigo ao mesmo tempo, já que leciono para os ensinos Fundamental, Médio e supletivo" -- aponta.
Casada, a professora de 45 anos buscou no talento nato alternativa para carreira profissional que a permitisse acompanhar de perto a educação das duas filhas, hoje com 13 e 18 anos. Mas embora não tenha declinado dos cuidados com a família, cedo diagnosticou que a atuação em escola pública exigia dedicação integral e irrestrita, missão a que se lançou de corpo e alma. "Com apoio da antiga diretora, Rosa Harumi Fugishiro, começamos uma lenta revolução. No início abrimos espaço para a comunidade dentro da escola por meio de cursos gratuitos de pintura em tela. Logo estávamos implantando outras atividades" -- entusiasma-se.
Sem medo de desafios, a arte educadora foi atrás dos alunos problema, o terror de todos os diretores e professores. Para resgatar esses jovens, criou o grupo musical Rebate -- Olodum, composto por 38 adolescentes. Para participar, tanto as notas quanto o comportamento tinham de ser exemplares. Afinada com o boletim, a garotada mantém o compasso dentro e fora da escola sob olhar atento da exigente mestre. "Antigos integrantes inclusive seguiram carreira artística impulsionados pelo projeto" -- orgulha-se a professora, que em algumas ocasiões chega a pôr a mão no bolso para comprar e reformar alguns instrumentos.
Incansável, Maria Aparecida conduz sobre os trilhos da boa vontade um caminhão de projetos pedagógicos em parceria com Semasa (Serviço Municipal de Saneamento Ambiental de Santo André), Faculdade de Medicina da USP e Diário do Grande ABC. Com a agência ambiental do Município, faz parte do projeto piloto do programa Sentindo a Cidade: Ar, Água e Solo, desenvolvido pela Faculdade de Medicina da USP. Responsável pela inscrição do colégio José Henrique de Paula e Silva no projeto do Semasa, Maria Aparecida Perussi não esconde o orgulho de a escola ter sido uma das duas únicas de Santo André -- a outra é o Colégio Singular -- a passar pela experiência em 2002. Há quatro anos a ecologia entrou definitivamente na pauta do José Henrique devido à mobilização da educadora junto ao Semasa. Visitas em áreas de mananciais e estações de tratamento de água resultam em trabalhos artísticos como esculturas, releituras, poesias, teatro, dança e música, entre outras atividades.
Fora dos muros -- Partidária do filósofo Platão, que ensinava os discípulos até em jardins, Maria Aparecida transpõe os muros da escola para interagir com a comunidade. Pelas suas mãos, alunos reinventam estilos e técnicas e imprimem novas matizes ao ensino convencional. De uma simples tampa de latinha de alumínio surge um desfile de modas à base de sucata para conscientizar a comunidade sobre a preservação do meio ambiente.
E como despertar o gosto literário em um País no qual 16 milhões de brasileiros não sabem sequer ler e escrever? Para driblar a falta de informação, essa operária da educação artística vai à caça de alternativas, entre as quais o projeto Diário na Sala de Aula. A escola é uma das poucas instituições públicas de ensino de Santo André a abraçar a iniciativa, que trabalha o jornal como ferramenta de ensino na sala de aula. "Desenvolvemos um minijornal de cultura e depois o reaproveitamos em trabalhos manuais que viram máscaras, esculturas e artesanato" -- empolga-se.
Como o acesso a museus e exposições nem sempre cabe no bolso da garotada, a superprofessora não desiste. Quando falta dinheiro para o ônibus ou para os ingressos, Maria Aparecida não se aperta e em pouco tempo arrecada entre professores e alunos o suficiente para que ninguém se sinta excluído. "Este ano já os levei para a mostra do grupo de teatro de bonecos Giramundo, no Sesc Santo André, e na exposição dos Guerreiros de XiAn, no Ibirapuera" -- cita a educadora, sempre envolvida com centenas de cursos e oficinas para somar valor ao conhecimento da juventude. Entre as novidades que pretende tirar do forno até o final do ano, a polivalente Maria Aparecida pinça o curso de confecção e manipulação de bonecos, ofício aprendido recentemente com o grupo mineiro Giramundo. Outro gran finale é a mostra de artes anual que transforma a escola do Parque Novo Oratório em espécie de galeria coletiva. Este ano a exposição contou com trabalhos de quase 800 alunos.
Por causa do interesse genuíno pelo futuro dos jovens, Maria Aparecida Perussi tem conseguido alguns súditos "Além de ex-alunos se tornarem voluntários na escola, muitos fizeram da arte a porta de entrada para o mercado de trabalho. Tenho estudantes que viraram atores, dançarinos, músicos e professores de grafite e desenho" -- envaidece-se.
Tamanha abnegação implica em pequenos sacrifícios que a professora parece desconsiderar. Pegando no batente de domingo a domingo, porque às vezes tem ensaios do Rebate-Olodum aos finais de semana, mal sobra tempo para as braçadas na piscina do Primeiro de Maio. A natação foi a maneira que encontrou para praticar a segunda paixão na vida: os esportes. Como literalmente mergulha de cabeça no que gosta, o que começou como exercício por causa de problemas respiratórios virou vício e já rendeu à arte educadora mais de 100 medalhas em competições amadoras.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!