Sociedade

História recheada
de açúcar e afeto

VERA GUAZZELLI - 05/11/2003

Os últimos seis anos da vida de Vanessa Ribeiro Clemente estão repletos de histórias açucaradas. Se essa jovem de 26 anos e mãe de duas meninas decidisse cruzar os braços a partir de agora, teria no mínimo uma boa aula de empreendedorismo para contar às gerações futuras. Apesar da pouca idade, já é reconhecida como uma das melhores boleiras de Ribeirão Pires e está no comando de um negócio que leva sua marca pessoal desde o dia em que, empurrada pela necessidade de sobrevivência, decidiu trocar o diploma técnico de patologia clínica e o sonho de ser médica para dedicar-se ao talento nato do forno e fogão. 

Vanessa é na verdade exemplo bem-acabado de que força de vontade, açúcar e muito afeto são capazes de fazer o bolo crescer mesmo em tempos de economia oscilante. Ou melhor, ela poderia ser definida como espécie de ghost cooker, a cozinheira oculta que fisgou pelo estômago a assídua clientela da Barraca da Tereza, um dos mais concorridos pontos de venda de doces da feira de artesanato da praça central de Ribeirão Pires. A barraca leva o nome da mãe, assim como a doceria e a cozinha industrial anexa que agora engrossam os negócios e tornaram-se o quartel general da empresária com jeito de menina. 

"Não tinha um tostão sequer. Era arriscar ou continuar a peregrinação atrás de um emprego, sabe Deus até quando. Cheguei até aqui e só devo 12 parcelas de um carro que acabamos de comprar para fazer as entregas" -- revela Vanessa sem esconder a própria incredulidade. A mesma sensação da maioria dos clientes quando descobre que as delícias da Barraca da Tereza pouco têm a ver com a habilidade culinária da mulher que emprestou o nome ao negócio. A mãe, nesse caso, é a principal coadjuvante da história que certamente não existiria sem parceria tão familiar quanto afetiva. Enquanto Vanessa comanda a cozinha com maestria, dona Tereza comercializa os quitutes com dose extra de simpatia somada à experiência de duas décadas como feirante.

Os capítulos atuais da vida de Vanessa Clemente estão recheados de morango, leite condensado, brigadeiro e tantos outros cremes igualmente irresistíveis ao paladar. Mas a impressão de que a vida sempre tratou a moça a pão-de-ló se desfaz com 15 minutos de conversa. Vanessa fez parte do batalhão de jovens que se formou no Ensino Médio, não encontrou uma porta aberta para o primeiro emprego e teve de adiar o romântico sonho de estudar medicina para ajudar os menos afortunados. Diante da necessidade de sobreviver, a então adolescente de 18 anos não teve escolha. Em vez dos bancos acadêmicos, teve de se contentar como vendedora em uma barraca de artesanato na praça central de Ribeirão. 

"As dificuldades às vezes abrem portas e talvez eu tenha tido a sorte de enxergar a saída" -- acredita. A sorte, no entanto, veio acompanhada de aguçado poder de percepção. Quando não havia clientes na barraca de artesanato, Vanessa punha-se a observar o movimento da feira e detectou que faltavam opções gastronômicas no local. Foi quando decidiu apostar tudo no talento culinário reconhecido por familiares e amigos e solicitou à Prefeitura permissão para montar a própria barraca. 

O primeiro pedido foi negado, mas Vanessa insistiu até que foi chamada para substituir uma barraqueira que havia faltado sem justificativa. Sem perder tempo, reformou a velha barraca de feira da mãe e desembarcou na praça com dois bolos -- um de chocolate e um de morango --, uma torta salgada e um tonel de chá. O primeiro dia de vendas foi decepcionante. O segundo e o terceiro melhoram e a partir daí o movimento não parou de crescer. "Era comum formar fila na frente da barraca. Até mesmo nos dias de chuva" -- lembra ao descrever a cena dos clientes com guarda-chuva em punho aguardando a vez de saborear uma fatia de bolo. 

Hoje as filas desapareceram porque não é mais necessário esperar o final de semana -- a feira de artesanato funciona às sextas, sábados e domingos -- para degustar os quitutes de Vanessa Clemente. A doceria aberta há um ano também com o nome de Barraca da Tereza atende de segunda a segunda e colocou de vez o negócio no circuito comercial de Ribeirão Pires. Mesmo assim, a clientela mais antiga ainda faz questão de prestigiar o aconchegante ponto-de-venda montado na praça. Tanto que Vanessa não descuida do abastecimento -- a distância de 300 metros separa os dois pontos-de-venda. 

Se acabou o bolo de chocolate, bastam cinco minutos para que outro fresquinho já esteja disponível. A tática de Vanessa Clemente é nunca deixar as vitrines vazias, sempre ter os sabores preferidos do público e oferecer novidades periodicamente. A fórmula é empírica e está sustentada muito mais na sensibilidade do que em manuais modernos de gestão. Vanessa aprendeu que bolos redondos, dos quais é possível extrair apetitosas fatias triangulares, são mais vendáveis do que as mesmas versões em formato quadrado.

A sensibilidade e o entusiasmo de quem se acostumou a transportar para bolos e doces a mesma dedicação necessária à preparação de um banquete para mil talheres só dão lugar à racionalidade quando Vanessa sai da cozinha e vai para o pequeno escritório. É ali que coloca o imprescindível olhar de proprietária sobre os procedimentos administrativos, contatos com fornecedores e principalmente controle das contas. Em seis anos como empresária, ela aprendeu a ser cuidadosa com todos os detalhes, principalmente os que parecem mais simples e que no fechar das contas podem comprometer a rentabilidade do negócio. "Não custa muito para a massa desandar" -- faz a analogia. 


Mundo de recheio -- Vanessa Clemente não abre mão do toque personalizado, do jeito caseiro de cozinhar que aprendeu com a família e conseguiu transpor para os negócios. E se o assunto for recheio, a veia artesanal pulsa com mais intensidade. Sempre generosa, ela faz questão de manter o almoxarifado da doceria lotado de latas de leite condensado, creme de leite e chocolate em pó porque dispensa os preparados prontos que a indústria de alimentação lança periodicamente para facilitar a vida dos cozinheiros profissionais. A Barraca da Tereza, aliás, elegeu apenas um entre os 11 funcionários para preparar brigadeiros do mesmo jeito que as avós de antigamente.  

A mulher que passa a maior parte do tempo às voltas com guloseimas garante que não come doces todos os dias. Sua criação preferida é o bolo crocante montado a partir de uma massa de pão-de-ló comum, outra de chocolate, cobertura marmorizada e recheio de pé-de-moleque. Já na lista dos mais vendidos entre os 20 tipos disponíveis estão o tropical -- abacaxi, morango, coco fresco e doce de leite e de brigadeiro com morango. É famosa também a coxinha de frango, cujo tamanho é bem generoso e ganhou o carinhoso apelido de coxinha da Tereza. Essa é a mãe que faz, mas foi Vanessa quem a ensinou.

A capacidade de criar e adaptar tantas receitas está diretamente ligada ao tempo em que Vanessa Clemente devora livros, sites e programas culinários. Ela também é assídua nas feiras do setor de alimentação e panificação, de onde procura extrair todas as novidades em técnicas e ingredientes que desembarcam anualmente no mercado. "Cada estande que visito e cada nova dica que assimilo alimentam meu entusiasmo. Ir às feiras é como passar um dia no Playcenter. Às vezes é até mais divertido" -- revela. Nestes tempos em que a gastronomia está em alta e o nome do chef vale tanto quanto o sabor da comida, Vanessa parece caminhar na contramão da tendência. Ela não se lembra de ter ouvido ou lido algo sobre Mari Hirata, a brasileira que já foi doceira do imperador do Japão, ou de Todd English, o mais famoso dos chefs de Nova York. Por enquanto, está preocupada em dar conta de um negócio que não pára de crescer e requer planejamento. "Se um dia puder deixar a produção para me dedicar somente à criação, vou cursar uma faculdade. Provavelmente nutrição, porque assim poderei desenvolver receitas com baixas calorias" -- avisa para a felicidade daqueles que, por restrição médica, só podem devorar as delícias de Vanessa com os olhos. 


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