Sociedade

História de luz,
câmera e paixão

CARLA FORNAZIERI - 05/12/2003

A sétima arte criada a partir da insistência de fotógrafos que queriam dar ação e movimento a imagens não seduz apenas quem se encanta com o estrelato. Também não se resume a megaproduções hollywoodianas ambiciosas por cifras. Num século XXI em que até mesmo aparelhos celulares transmitem imagens, o que faz os olhos do ator e diretor de cinema Diaulas Ullysses brilhar é a mesma magia que assustou a primeira platéia do cinematógrafo, como era chamado em meados de 1890: a transposição do real para o gigantismo da tela, capaz de provocar emoções e confundir realidade e ficção. É a possibilidade de criar e de extravasar quase todos os sentidos que motiva o cinéfilo de 36 anos a passar fins de semana dirigindo câmeras pelas ruas do Grande ABC, noites descobrindo roteiros e meses produzindo curtas. 

O cinema é considerado a sétima arte porque no século XX, juntou-se à arquitetura, literatura, pintura, música, dança e escultura. A explicação se ajusta perfeitamente à escolha de Diaulas. O mineiro de Mantena foi contagiado pelas artes ao mudar-se com a família para Diadema aos cinco anos. Foi na cidade em que o incentivo à cultura movimenta milhares de jovens em oficinas que Diaulas ensaiou as primeiras experiências. Antes de enveredar para os palcos do teatro, experimentou a pintura e a dança por meio do hip hop, ainda hoje um forte movimento urbano no Município. Chegou a participar de seis exposições depois de treinar pinceladas em cursos oferecidos pela Prefeitura. "Mas minha arte era toda louca, não seguia a composição tradicional que esperavam. Eu torcia metais e criava instalações, tudo para colocar pra fora a criatividade que me cutucava" -- conta.

Se as mãos não davam conta de transmitir o que a mente latejava, no tablado finalmente Diaulas Ullysses pôde encontrar espaço para as múltiplas possibilidades da expressão corporal. A proximidade da dramaturgia desde os tempos de menino, levado pelos pais para sessões de pipoca, já dava dicas do que o motivaria. Mas foi apenas no colégio, influenciado por um professor de português, que o jovem à época próximo de completar a maioridade se deu conta de que a criatividade que buscava exacerbar e o mergulho no ser humano que tanto o encantava podiam caminhar juntos pelo teatro. "Fizemos uma peça que explorava a adolescência, carregada de emoções e descobrimentos" -- recorda entusiasmado ao falar da primeira montagem de que participou. Não era apenas a atuação que despertava sua atenção. Cenário, figurinos, direção... Tudo atraía o jovem curioso, hoje morador de São Bernardo. 

Enganosamente tímido e de sorriso fácil que em segundos vira deliciosa gargalhada, Diaulas conta que chegou a pensar em cursar arquitetura quando atravessava a decisiva fase do vestibular. Além da profissão das pranchetas e riscos milimetricamente calculados, inscreveu-se para o curso de formação de atores da Fundarte (Fundação das Artes), em São Caetano. Ele acredita que foi o destino que escolheu seu futuro reprovando-o na Faculdade de Belas Artes, mas é difícil crer que o inconsciente não tenha burlado as respostas a fim de levá-lo à dramatização. "Antes do vestibular, acompanhei uma arquiteta durante uma semana e me incomodou a ordem que as coisas tinham de ter. Eu queria colocar os quartos na parte da frente da casa, a sala ao fundo e a cozinha no andar de cima" -- diverte-se numa afirmação que comprova a escolha acertada.

Vizinho do Teatro Clara Nunes, ainda em Diadema, Diaulas atuou em pelo menos 15 peças, entre as quais Dandara, o Marinheiro, e Brasil, Outros 500!. A mais marcante foi Calígula, com direção de Djalma Limongis Baptista. A montagem viajou por todo o País durante dois anos e tinha Edson Celulari como ator principal. A vivência com o global ajudou Diaulas a definir bem o que não queria da profissão. "Quando viajávamos, na maioria das folgas o Edson ficava no hotel. Ele não conseguia sair sem que um alvoroço se formasse" -- recorda. 

Outra imagem marcante que o fez ter aversão à fama foi quando acompanhou o ex-colega da Fundarte Fabio Assunção à extinta danceteria Hemerald Hill, em São Bernardo. Trêmula e boquiaberta, uma garota mal conseguia se mover ao ver o hoje galã global que despontava na carreira. "Fiquei impressionado com a cena. Para mim, a atuação é um meio de o ser humano, tanto ator como platéia, se conhecer. Aquela e tantas outras fanáticas representam o inverso disso" -- reflete sem disfarçar a agonia que a recordação ainda lhe causa. "Defini bem que não procuro o estrelado. Procuro trabalhos que me permitam estudar cada vez mais a arte" -- reforça Diaulas.

Exemplo disso está nos bicos profissionais que fazia e ainda é convidado a participar: comerciais para cinema. Mitsubishi, Philco, Antarctica e Sony são algumas marcas para as quais Diaulas Ullysses fez comerciais exclusivamente em 35 mm, rodados antes das sessões das grandes salas de cinema. O que era um meio de conseguir dinheiro para dar andamento a produções transformava-se em diversão. "Para mim era uma festa, além de ótima oportunidade para ficar próximo das câmeras e conhecer feras da direção cinematográfica, como Flávia de Moraes e João Daniel, com quem tive o prazer de trabalhar" -- lembra com orgulho.

Foi com o diretor Djalma Limongis que deslanchou o interesse pelas câmeras. "Mesmo no teatro, o Djalma tem um estilo de dirigir visualmente, preocupado com a imagem e a sonorização, como no cinema" -- explica o ator e diretor. Em 1996 foi convidado para atuar e ajudar na produção do longa-metragem Bocage, O Triunfo do Amor, também do diretor Djalma Limongis. 

Depois de realizar experimentações próprias e se aperfeiçoar em cursos com nomes como Sérgio Penna, Ivo Branco, Antônio Araujo e Sônia Kavantan, hoje o já amadurecido Diaulas Ullysses dedica-se inteiramente à direção de cinema e quer colocar o Grande ABC na mira das câmeras. O cineasta defende que as produções que emergem da região devem valorizar o cenário do Grande ABC, como o fez em Os Alvos Que Queremos Virgens. O curta foi totalmente rodado em Santo André e foi vencedor do primeiro lugar no Prêmio Cultural Plínio Marcos, além de render prêmio de Melhor Ator para Antonio Petrin no Videofestival de São Carlos.  "É preciso esquecer a idéia de que, para ter valor, é preciso filmar na Capital, por exemplo. O Grande ABC oferece riqueza de imagens e temáticas que renderiam ótimas filmagens" -- defende.

A arte do cinema que foi desencorajada pelos próprios criadores, Louis e Auguste Lumière, por acreditarem que o público se cansaria da novidade rapidamente, é vista por Diaulas como instrumento de mudança da mentalidade regional.  "O cinema é transformador. Se você coloca o Grande ABC na tela e apresenta ao público local, tem-se a região fazendo leitura de si própria. Esse pode ser um caminho para o auto-descobrimento e elevação da auto-estima" -- acrescenta. Mas o diretor não acredita que uma grande produção de sucesso imediato seja a melhor idéia. "A mudança tem de ser paulatina. É preciso que pequenas produções ganhem o gosto dos agentes culturais e sejam exibidas homeopaticamente ao público local" -- sugere. 


Trilhos regionais -- A próxima película que privilegia o Grande ABC começa a ser gravada neste mês. Projeto coletivo da Escola Livre de Cinema, o longa-metragem O Trem terá como pano de fundo os trilhos que ligam São Paulo a Santo André. "Pensamos em algo que pudesse ligar as cidades e, apesar de não atravessar todo o Grande ABC, o trem foi a melhor escolha" -- justifica. Diaulas dirige a comédia Aviso Prévio, um dos cinco curtas que compõem o longa.

O crescimento do cinema nacional na última década anima o entusiasta, que enxerga diversidade e qualidade nas produções e enche a boca para falar de filmes como Durval Discos, Abril Despedaçado e Dias de Nietzsche em Turin. Mas o elogio não é saudosista e abre espaço a críticas a estéticas como a escolhida por Hector Babenco em Carandiru, que arrebatou público de quase cinco milhões de espectadores. "Não gosto de filmes que façam apologias negativas ou que destruam a imagem do ser humano. O cinema deve buscar o enaltecimento e mostrar o que de bom o homem tem" -- idealiza.


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