Sociedade

A segunda e
última chance

WALTER VENTURINI - 05/02/2004

Quem daria emprego para um homem condenado por assalto e assassinato? Ou para um ex-traficante de drogas?  Algumas empresas e até mesmo instituições públicas aceitaram o desafio e descobriram que funcionários que já passaram parte da vida atrás das grades se destacam pela dedicação e eficiência. As poucas experiências, seja na iniciativa privada ou no Poder Público, demonstram que os resultados podem compensar com a redução da criminalidade num País que perde anualmente mais de 10% do PIB (Produto Interno Bruto) com a violência.

Dos 125 mil presos do sistema carcerário do Estado de São Paulo, inclusive nas cadeias públicas, metade pratica alguma forma de trabalho, a maior parte dentro das próprias cadeias. Cada um custa mensalmente ao Estado R$ 767. Eles se beneficiam do artigo 126 da Lei de Execuções Penais, que prevê redução de um dia de pena para três dias de trabalho. É a chamada remissão de pena. O preso ganha também 60% de um salário mínimo. Existem algumas formas de trabalho no sistema carcerário. O primeiro é o regime fechado, para quem não pode deixar o presídio. Geralmente são serviços repetitivos como costurar bolas de futebol ou montar pregadores de roupa. Grandes empresas como Penalty, do setor de equipamentos esportivos, e Plasmatic, produtora de antenas, oferecem trabalho para presos em regime fechado.

Outra modalidade é o trabalho em regime semi-aberto. O sentenciado apenas dorme na cadeia porque desempenha alguma atividade profissional em empresas. Há também as chamadas penas alternativas, punições para delitos considerados pouco graves e que podem ser cumpridos com prestação de serviços à comunidade, geralmente em entidades assistenciais. Por fim, há o trabalho para os egressos, ex-presos que, ao terminarem de cumprir a pena, retornam ao convívio na sociedade.

Deixar a cadeia, entretanto, pode significar o início de um calendário de dificuldades, principalmente o preconceito. Que o diga o auxiliar administrativo Claudionor Alves Pereira, que cursa História na PUC (Pontifícia Universidade Católica). Com 37 anos e casado, faz parte do quadro de funcionários da Funap (Fundação de Amparo ao Preso Professor Manoel Pedro Pimentel), ligada à Secretaria da Administração Penitenciária, onde começou a trabalhar após passar em primeiro lugar no concurso público. Seu maior problema foi explicar na secretaria da Funap que não poderia obter o certificado de antecedentes criminais, obstáculo que a direção do órgão teve o bom senso de resolver.


Vida no lixo -- Claudionor quase jogou a vida no lixo ao ser preso por latrocínio -- assassinato e roubo -- quando tinha 22 anos. Foi preso ao se envolver com um grupo que o convenceu a participar de assalto frustrado. O jovem não matou a vítima, mas ao participar da quadrilha foi condenado como co-autor. No Carandiru, onde cumpriu pena, conheceu o inferno na terra. Presenciou o famoso massacre dos 111 presos mortos pela PM durante rebelião em 1992. Apesar de tudo, conseguiu não se envolver com nenhum grupo organizado da cadeia, dedicou-se aos estudos e completou o Ensino Médio. Também fez cursos de contabilidade e de transações imobiliárias, mas só pôde frequentar a faculdade após se transferir para o regime semi-aberto. Claudionor foi o primeiro preso a ser admitido oficialmente no serviço público do Estado de São Paulo. "As portas ainda estão legalmente fechadas, pois conheço quem saiu da prisão na mesma situação que eu, prestou concurso público e foi dispensado quando descobriram seu passado" -- conta o ex-preso.

Casos como o de Claudionor Alves Pereira são exceção diante da verdadeira máquina de produzir marginais em que se transformou a sociedade. O secretário da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, Nagashi Furukawa, conhece de cor a fórmula para transformar um cidadão em hóspede frequente das cadeias do Estado. "Se até os 18 anos o jovem passou por desestruturação familiar, dificuldades econômicas, más influências, cometeu vários crimes sem ter sido preso, se após tudo isso, os grupos religiosos, os órgãos públicos, a família, todos falharam, nós recebemos uma pessoa deformada. Portanto, não é tarefa fácil reintegrá-lo. O Estado sozinho não consegue. Para fazer um traficante voltar a ser cidadão é preciso esforço conjunto de toda a sociedade e o trabalho é um dos componentes dessa recuperação" -- propõe Furukawa.

Para o secretário estadual da Administração Penitenciária, o nó da questão é o trabalho para egressos do sistema carcerário, aqueles que já cumpriram pena e retornam ao chamado convívio social. "Para começar, não há legislação que obrigue as empresas a oferecer trabalho aos egressos. Já tentamos um estudo na legislação, mas é inconstitucional privilegiar emprego para determinado setor. Resta-nos conscientizar os empresários, o que não é fácil por causa do desemprego, que faz as empresas preferirem contratar quem não tenha antecedentes criminais" -- explica Furukawa. 


Pena alternativa -- Até mesmo autores de delitos de menor gravidade como furtos, estelionato e receptação, para os quais é prevista aplicação de pena alternativa, têm dificuldades de encontrar trabalho. "Os empresários poderiam facilitar o acesso a essas pessoas para a reinserção na sociedade" -- defende Niusa Maria dos Santos Rocha, assistente técnica da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária, responsável pela Central de Penas Alternativas de São Bernardo, uma das oito cidades do Estado que cotam com esse tipo de atendimento. No caso dos condenados a penas alternativas, que por si só já ajudam na recuperação, a reincidência é de apenas 1%.

Uma das poucas empresas do Grande ABC a oferecer trabalho para quem sai das cadeias é a Real Food, de Santo André, que fornece refeições para parte do sistema prisional do Estado. No contato com a realidade das celas, a direção da empresa decidiu implantar política voltada à recuperação de presos e contratação de egressos do sistema. "Não havia uma filosofia de usar esse tipo de mão-de-obra, mas o fato de sermos conhecidos nas cadeias fez com que muitos presos, após cumprirem a pena, nos procurassem para obter emprego" -- explica Nídia Junqueira, gerente de marketing da Real Food. 

É o caso de Rubens Benedito Paiva que, ao cumprir dois anos e dois meses por tráfico de drogas, tentou sobreviver. Primeiro como cabeleireiro e depois como montador de brindes, ocupação que mal dava para pagar o aluguel. Foi quando conseguiu um emprego na Real Food, onde é copeiro e também espécie de funcionário-modelo da empresa e apadrinhado pela proprietária, Natália de Souza Alves. "Chegar até o fundo é fácil. O difícil é subir de novo" -- filosofa Rubens Paiva, que poderia ser considerado trabalhador típico do Grande ABC por ter atuado em empresas tradicionais como Brasilit, Quimbrasil e Cofap. "Ganhava bem, tinha carro mas, depois da morte de meu pai, comecei a me drogar. Ninguém me influenciou, foi opção própria" -- admite o copeiro.

Na cadeia, Rubens Paiva trabalhou como enfermeiro e conseguiu sobreviver a oito rebeliões no presídio Dacar 7, em Santo André. Ao sair, teve de se esforçar para se afastar das drogas. Deixava o salário com a família. Hoje já pode administrar a própria renda, mas ainda faz questão de se manter sempre ocupado trabalhando como garçom nos finais de semana. Trabalha há quatro anos na Real Food e também assume a função de síndico no prédio onde mora. Com 49 anos e o Ensino Médio completo, Paiva tem projetos de fazer curso de garçom e de decoração culinária. O próprio copeiro admite que se não conseguisse um trabalho digno, teria voltado para o tráfico.

O BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) estima que o Brasil perde 10,5% de seu PIB com a violência e a falta de segurança. Na última década o País registrou o assassinato de 350 mil pessoas, bem mais do que as guerras do Timor Leste e de Kosovo juntas, só que em menos tempo. No mesmo período, foram roubados no Brasil 371 mil veículos -- 229 mil somente em São Paulo --, mais do que o total de carros fabricados anualmente no Uruguai, Chile, Peru, Equador e Colômbia. São números de uma verdadeira economia de guerra levantados pelo professor Ib Teixeira, formado em Direito, com pós-graduação em Economia e autor do estudo A Macroeconomia da Violência, que mostra como a morte se banalizou no Brasil: desde o início do século XX os índices de assassinato cresceram 54.000 %.

Durante 23 anos, Ib Teixeira se dedicou, na FGV do Rio de Janeiro, a estudar quanto o Brasil perde com a violência e a criminalidade e manifesta ceticismo quanto ao trabalho para presos e ex-presos na atual situação. "Hoje o traficante de drogas oferece recursos que as empresas não têm condições de superar. A atual conjuntura do Brasil impede qualquer projeto de recuperação do preso. Basta ver o menor que sai da Febem e passa a receber R$ 1 mil do tráfico. Que empresa tem condições de oferecer isso a um menor?" -- questiona o professor. 


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