Sociedade

E lá se foi Felipe Cheidde, um
protagonista da vida regional

DANIEL LIMA - 24/09/2019

Felipe Cheidde não foi prefeito nem vereador. Muito menos deputado estadual. Mas por duas vezes emplacou Brasília, como deputado federal, nos anos 1980. Foi cassado numa manobra de Ulysses Guimarães. Pura represália com ares de moralidade e ética públicas porque Felipe Cheidde não assinara a Constituição Federal em 1988. Felipe Cheidde foi-se embora ontem sem me esperar.

Faltavam apenas seis dias para Felipe Cheidde completar 83 anos de idade. Havia marcado com o filho Felipinho que não perderia a oportunidade de dar um abraço num velho conhecido. Não deu tempo. Felipe Cheidde decidiu me frustrar. Queria tanto lhe fazer uma visita.

Passar por essa vida de jornalista sem ter conhecido Felipe Cheidde seria uma travessura do destino que jamais perdoaria. Entre os anos 1980 e 1990 convivi com Felipe Cheidde. Tornamo-nos amigos dos sábados em que os mais antigos e próximos parceiros de jornada o visitavam na mansão do Parque Anchieta. Uma churrascada sempre estava à espera. Felipe Cheidde recebia a todos com sorriso largo e muitas histórias da semana que acabara de acabar.  Felipe Cheidde era uma usina de casos.

Cassado por Ulysses

Passei muitas horas com Felipe Cheidde na sauna. Enquanto isso, os convidados dividiam bebidas e carne generosamente bem cortadas. Havia empatia mútua entre nós. Mal passava dos 30 anos, mas Felipe Cheidde parecia ignorar. Queria sempre ouvir minha opinião sobre o mundo da política, principalmente. A sauna era um pretexto para ter conversas reservadas.

Lembro que o alertei num desses encontros sobre o risco de ser punido pelo Congresso. Respirava-se a desconfiança de que algo poderia acontecer aos faltosos. Felipe Cheidde não estava nem aí com Brasília. Raramente se dirigia ao Distrito Federal. Foi esse o calcanhar de Aquiles que o retirou de combate. Outros dois ou três deputados também entraram na dança. Perderam os mandatos.

Mais tarde, quando Ulysses desapareceu nas águas em acidente de helicóptero, um sorriso malicioso brotou no rosto de Felipe Cheidde. Ele não praticava o jogo do politicamente correto nem em situações aparentemente sagradas. Os entreveros na política foram muitos. Os bastidores fervilhavam. Longe da Imprensa. Teve, por exemplo, um arranca-rabo dos diabos com um governador paulista, Franco Montoro.

Lula, velho freguês

Quando solicitei o telefone de Felipe Cheidde para o filho Felipinho no intervalo do jogo entre o Esporte Clube São Bernardo e o São Caetano, recentemente pela Copa Paulista no Estádio Primeiro de Maio, sabia que não teria uma oportunidade melhor para dar um abraço num velho amigo que já vivia às turras para se manter vivo.

Quando Felipinho me repassou o número de telefone fixo da residência e comentou com certa discrição que o estado de saúde do pai já não lhe permitia senão o andar trôpego, senti que teria de torcer para que o 29 de setembro chegasse logo. Não deixaria de visitar Felipe Cheidde no dia de seu aniversário. Perdera tantos outros por confundir a data em que se tornou mais um libriano. Como eu, aliás.  

Teria muitas histórias para contar sobre Felipe Cheidde. Prefiro me limitar ao conceito-chave de sua trajetória neste mundo. Felipe era um permanente turbilhão de emoções e tensões. O dia a dia do esportista e do político que se mesclavam a cada instante era sempre intenso.

Felipe Cheidde parecia correr contra o tempo. Batia no então metalúrgico Lula da Silva com frequência de boxeador que vê o adversário pronto para o nocaute. Eram embates isolados que de vez em quando respigavam em algum veículo de comunicação. Lula apanhava de Felipe o tempo todo, geralmente a quilômetros de distância. Felipe era esperto. Queria chamar Lula para um combate cada vez mais impossível. O ex-metalúrgico ganhara projeção nacional.

Presidente e técnico

Tornei-me durante bons anos amigo de Felipe Cheidde. A origem de certa animosidade dava mais solidez aos sentimentos. Ele tornara-se alvo preferencial de duras críticas. Escrevia para o Diário do Grande ABC. Felipe Cheidde era presidente do Esporte Clube São Bernardo. Quando decidiu virar treinador da equipe, exacerbei o combate.

Considerava uma desfaçatez um presidente-técnico. Felipe levou o time às finais do campeonato de acesso. Torci muito por ele. Frustrei-me com a perda da classificação no Parque Antártica. Felipe Cheidde me convencera de que sabia mexer com as peças dentro de campo. O presidente-técnico era um abuso, mas um abuso perdoável.

Tanto Felipe Cheidde sabia mexer nas peças dentro de campo que mais tarde selecionei e convoquei uma equipe de craques da região para enfrentar a Seleção Brasileira de Masters que Luciano do Valle montou e fez jogar em vários cantos do País com transmissão ao vivo da TV Bandeirantes.

Dirigi a equipe em dois amistosos. No dia do jogo, num Baetão lotado, entreguei o time para Felipe Cheidde comandar. Perdemos de um a zero. Gol de Cafuringa. Justamente de um Cafuringa que fazia o diabo com a bola, um Cafuringa de dribles desconcertantes, mas um Cafuringa que desprezava balançar a rede adversária. Naquela manhã de domingo, Cafuringa decidiu fazer o gol da vitória. Nada mais justo para um time que tinha Rivelino com a camisa 10. Mas nossa seleção jogou um bolão.

Estendo a mão

Foi Felipe Cheidde quem me estendeu a mão quando, no começo de 1985, me convidou a lhe dar assessoria. Acabara de deixar o Diário do Grande ABC, onde ocupara todos os cargos possíveis. Já estava com um pé na sucursal do Agência Estado, do Grupo Estadão, quando Felipe Cheidde me fez o convite. Não teria horário fixo. Nada atrapalharia minha ida ao Estadão. Fui com a condição que me impus de jamais escrever sobre política de São Bernardo que envolvesse Felipe Cheidde.

Não vivi o dia a dia político de Felipe Cheidde porque minha jornada no Estadão era pesada. Mas os plantões com o então deputado federal eram sempre especiais.

Naquela mesa retangular gigantesca que encontrava espaço quase improvável num dos andares de um prédio estreitíssimo na Avenida Kennedy, Felipe Cheidde reunia os amigos do peito. Havia placas metálicas nas cadeiras a determinar os ocupantes. Felipe recebia cada um deles com generoso beijo na face.  Eram amigos de longas datas.

Felipe Cheidde jamais cometeu qualquer deslize ético comigo. Sempre me elevou às alturas de prestígio junto a parceiros de faixa etária bem maior. Sentava-me ao lado dele na cabeceira daquela imensidão de mesa retangular. Houve situações inesquecíveis nesses encontros.

Experiência inesquecível

Quem passou por essa vida sem ter conhecido e vivido de perto a personalidade de Felipe Cheidde não sabe o que perdeu. Não me peçam detalhes sobre o convívio com Felipe Cheidde. Há situações em que nem os melhores roteiristas de Hollywood conseguiram imaginar. O casamento da filha Tânia, por exemplo, seria um primor de episódio numa trilogia em que os personagens pareceriam saídos de algum conto de fadas.

Tenho orgulho de dizer que convivi os melhores momentos possíveis da vida como Felipe Cheidde, ele então por volta de 50 anos, eu saindo dos 30 e pouco. Ele no auge político e com ambições esportivas. Por um triz não se elegeu à presidência da Federação Paulista de Futebol. Perdeu a disputa por alguns votos apenas. Foi superado por Eduardo José Farah, antecessor de Marco Polo Del Nero.

Felipe Cheidde foi um protagonista da vida regional, embora tratado como espécie de transgressor. Demarcou o terreno com impressionante vitalidade, determinação, respeito por aqueles que julgava importantes ter por perto, inclusive como consultores para os momentos mais delicados. Imaginem como me sentia bem, quase moleque, diante daquele homem sobre o qual multiplicavam-se versões de herói e vilão.

Frase marcante

Só não vou perdoar Felipe Cheidde por ter me deixado na mão. Poderia esperar mais alguns dias para receber meu abraço fraterno e agradecido pelas oportunidades que me proporcionou.

Nunca vou esquecer uma frase que até hoje e sempre ressoará em minha memória. Podem dizer que será cabotinismo recordá-la, mas o faço mais como homenagem a Felipe Cheidde do que como embevecimento pessoal, embora aquelas palavras tenham marcado a minha vida.

Numa tarde em seu escritório, Felipe Cheidde olhou para mim, um menino de pouco mais de 30 anos, e disse com a segurança de quem parecia querer embalar minha autoestima para sempre: “Com essa voz que você tem, não há como colocar sua credibilidade em risco”.

É a esse Felipe Cheidde de mil aventuras que rendo humildemente meus agradecimentos. Pena que não o encontrasse havia muito tempo. Pena que ele tenha decidido fugir do abraço neste domingo, 29 de setembro. Mas, sobretudo, muitas graças pela fortuna profissional e pessoal de ter vivido durante bom tempo tão próximo de alguém tão espetacularmente diferente.



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