Estou no quarto dia de confinamento a 130 quilômetros de minha residência, em São Bernardo. O Coronavírus quer me pegar como quer pegar você. É o que dizem os especialistas. E se os especialistas dizem, quem sou eu para contrariar. Certo?
Desconfio de que essa obra descuidada Made in China não é tão devastadora assim. Até porque não devastou a China. Também desconfio de que os especialistas têm um quêzinho de alarmismo, de unanimidade grupal, estacionada em instituições internacionais. Se é assim em tantas atividades, por que seria diferente na medicina? Não fosse, não haveria tantas controvérsias. Estou errado?
Por via das dúvidas me acautelo. Tomo providências mínimas, mas de vez em quando dou escorregadelas. Um exemplo: o funcionário da Vivo que instalou a Internet ficou três horas muito perto de mim. Dei até uma mãozinha a ele porque outras duas mãos eram indispensáveis para completar o serviço. Me senti um operário braçal perto dele, que detém o conhecimento técnico. Minha mediocridade foi às alturas. Tarefas manuais são para mim o que era a bola para o pobre Zoca, irmão do Pelé.
Cheiro de medo
Sinto cheiro de medo no ar do condomínio de casas de classe média aqui em Salto. Há já mascarados por alguns cantos. Todos egressos da Capital e da Região Metropolitana de São Paulo, arapucas em tudo que se refere à qualidade de vida. Mas o mapa da mina para quem consegue trabalho qualificado.
Esses terroristas da metrópole trouxeram alguma porção de pânico aos moradores locais. Ainda não chegamos a nada que tenha algum parentesco com o medo em estado puro, que vem a ser pavor. Tomara que desdobramentos do ciclo que esperamos breve dessa loucura invisível não instaure ambiente de repulsão preventiva mútua. Principalmente aos que já passaram dos 60 anos, vítimas preferenciais de notificações estatísticas e de noticiários dos grandes veículos.
Também acho que fiz bobagem protetiva ao descuidar de procedimentos preventivos quando o entregador de um lanche bateu no portão. Solicitei o jantar ontem à noite. As refeições que preparei para os últimos dias se acabaram. A reposição sofreu pane logística porque estou sem carro e minha filha não veio na data combinada. Por isso recorri a um estranho para matar a fome.
Pereirão em ação
Dei-me conta de que não higienizei o cartão de crédito e as mãos só quando fui para a cama, por volta de meia-noite. Levantei e tentei corrigir o que chamariam de idiotice de descuido.
Montei (ou melhor, minha secretária montou com a habilidade de um Pereirão da novela rediviva da Globo no horário nobre das 21h30) um pequeno bunker tecnológico para continuar conectado ao mundo em polvorosa. E também para dedilhar os textos diários para CapitalSocial.
Uma de minhas terapias emocionais é escrever. A outra é ler. Uma terceira é ver futebol. Uma quarta os bons filmes. Outras tantas também. E minhas cachorras, claro. Acho que sou eclético em matéria de terapias que equilibram meu sistema psicológico. Imaginem se não as descobrisse ao longo da vida?
Dama e Vagabunda
Lolita e Luly estão comigo. São minhas únicas companhias. Digo que são minhas cachorras na esperança de que a dona delas, minha filha Lara, não leia estas linhas. Está certo que tenho participação relevante na pretendida propriedade paternal da Lolita. Dei o dinheiro para que minha filha a retirasse de uma vitrine desumana de shopping. Já a Luly veio de avião de Macapá, lá no fim do mundo do Brasil continental. Minha filha a viu praticamente abandonada, repleta de carrapatos.
Lolita e Luly são espécies de A Dama e a Vagabunda. Uma, Lolita, é classuda. A outra, Luly, é moleca. Formam dupla imperdível, afaste uma da outra para ver o que acontece. A Dama vira uma fera e a Vagabunda perde a alegria de todas as horas. Quando vão tomar banho uma vez por mês, dou um jeito de acompanhar, se a agenda permitir. Quem termina primeiro fica angustiada do lado de fora do aquário. Quando a outra é liberada é uma festa. Beijam-se e se acariciam do modo bem cachorro de ser, ao sugerir que trocam mordidas para valer. Espero que a onda do vírus virulento não leve as autoridades a proibir confraternizações entre animais.
Neste meu quarto dia em condomínio bucólico que raramente recebeu minhas pernas para correr e minha calvície para sentir o sol agradavelmente forte, confesso que estou tentando me adaptar. Com minhas cachorras por perto tudo fica menos difícil.
Se querem saber, parece que estava adivinhando que um dia o vírus tenebroso viria para nos assombrar a todos. Há muito tempo levo uma vida de quase confinamento físico em São Bernardo. Saio pouco. Tenho compromissos profissionais em larga escala substituídos pelo mundo digital. Quando não é possível, meto-me ruas e avenidas afora.
Um amigo de muitos anos é quem mais me recebe. São encontros de trabalho semanal. As fontes de informações que me nutrem já se acostumaram com os contatos telefônicos e, sobretudo, whaaatsapianos. Tanta gente a quem só tenho bons pensamentos não sente meu abraço físico há muito tempo. Outros, que não respeito como agentes públicos e privados, porque não têm compromisso com o futuro da região, dispenso contato. Tanto que não vou a eventos para não encontrá-los. Prefiro minhas cachorras.
Pessoa jurídica
O que tenho estranhado ainda nessa nova e insondável etapa que o vírus impõe é a ordem dos fatores de meu cotidiano, que não altera o produto final. Meu ritual em São Bernardo foi subvertido. Levantava às seis da manhã com quatro jornais na soleira. No quarto dia de isolamento estou à espera do entregador do Valor Econômico. Estadão e Folha de S. Paulo já estão devidamente cadastrados e entregues. O Diário do Grande ABC não virá mesmo. Capturo-o na edição digital.
Não vou entrar em detalhes sobre o meu dia-a-dia em Salto. Garanto que é todo direcionado, ou quase todo direcionado, à pessoa jurídica. Ou seja, ao jornalista. O Daniel Lima pessoa física se manifesta nas relações alimentares e turísticas com as cachorras. Entenda relações alimentares o ato de preparar almoço e jantar para elas. E de outras coisas mais. Sim, também aquilo que você está pensando.
Não saio para o passeio diário com elas, por volta de oito da manhã, sem levar saquinhos de plástico para acomodar aquilo que os políticos mais fazem e que em larga escala explica a situação sanitária que vivemos de fechamento geral das atividades econômicas. Uma medida dita como indispensável, mas que, se durar como dizem que vai durar, entre mortos e feridos pós-vírus, todos estarão mal-arrumados.
Já as atividades turísticas de minhas cachorras são os passeios diários. De manhã são 30 minutos. Aproveito a reprodução local do que faço em São Bernardo para me dirigir à portaria, onde os jornais me esperam. É uma boa caminhada. Lolita, a Dama, refuga o tempo todo dar o passo seguinte após o passo anterior. Parece o histórico dos últimos 40 anos do PIB brasileiro. Já Luly, a Vagabunda, é lépida, entusiástica. Até parece o PIB chinês dos tempos de glória, não do vírus mortal.
Mudando de roteiro
Esse é apenas um voo panorâmico dos primeiros quatro dias de refúgio. Ainda não me bateu o desespero de ver o mundo aí fora pegando fogo, como sinalizam os sensacionalistas. Acho que tudo isso vai passar. Nem gostaria, de verdade, de estar aqui, mas nada resiste à espontaneidade obrigatória.
Se querem saber de uma coisa, lamento não ter me dedicado mais a cultivar o hábito de abandonar a Grande São Paulo de vez em quando. Talvez o Coronavírus me ensine a inverter a ordem dos fatores porque o produto final seria outro. É possível que após a tempestade, se vivo estiver, decida morar aqui e aparecer de vez em quando em São Bernardo. Estou distanciado fisicamente de todos, mas não largarei o pé de quem é mandachuva e mandachuvinha.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!