Estou vivendo experiência profissional inusitada e enriquecedora nestes dias tenebrosos de Coronavírus. Vivo o passado, o presente e o futuro em minha mente. Vou explicar em detalhes. Para complicar ainda mais a equação, estou fora de meu habitat natural, o decadente mas desafiador Grande ABC. Estou há exatamente uma semana refugiado em Salto, a 130 quilômetros de minha casa natural. Isoladíssimo. Com minhas cachorras e um dia intenso de trabalho para fazer as horas passarem.
Os três tempos que vivo ao mesmo tempo são tempos absolutamente acidentais. No máximo, forçando muito a barra, seriam apenas o passado e o presente a conviver harmoniosamente no dia a dia de procurar transmitir conhecimento aos leitores. Mas veio o vírus chinês e bagunçou tudo.
O passado de que falo é a transposição do acervo de 30 anos do melhor jornalismo regional do País, na impressa revista LivreMercado e neste digital CapitalSocial. Não creio que exista na face da terra alguém capaz de cometer a estupidez e a burrice de contestar o incontestável. São 30 anos de LivreMercado/CapitalSocial que retiraram o jornalismo do Grande ABC do conservadorismo de informar rasamente provinciano. Não estamos nesta vida em forma de clicheria.
Avançando o sinal
O presente que me assalta é a tentativa de interpretar acontecimentos destes tempos bravios e contextualizá-los num campo de harmonia com a sensatez. Ou seja: impedir que eventuais arroubos nostradosmescos causem vergonha mais adiante, como muitos sentirão na pele por declarações, opiniões, projeções e tudo o mais levados pelo exagero ou pela omissão.
O futuro que me açoita ganha a forma de um enorme ponto de interrogação. Tenho receio de avançar o sinal de interpretações porque pouco se sabe do que teremos mais adiante. O que hoje parece catastrófico poderá virar poeira como também poderá ser apenas refresco perto da hecatombe traiçoeira.
Entenda o leitor que quando me refiro aos três tempos do meu dia a dia profissional, quero dizer com todas as letras e inseguranças é que da mesma forma que sempre me senti em terreno sólido, seguríssimo, no passado do Grande ABC, base da convicção de conceitos do presente, aparece no horizonte um futuro em forma de nebulosidade. O vírus invisível embaça minha mente prospectiva entre outras razões porque nem sei se vou escapar ileso do que está no ar.
Teste matinal
Não me venham dizer que estou ficando paranoico. Sou otimista por natureza. Minha porção supostamente pessimista dá as caras quando observa o movimento externo à minha vida, que, de qualquer forma, me atinge. Mas como locomotiva motivacional que sou, não me deixo prostrar. Mas o vírus que está aí é outra coisa porque, goste-se ou não, sinaliza descarrilamento potencial.
Tanto esse vírus é outra coisa que acordo todo dia aqui em Salto com um pensamento exclusivo: saber como estou fisicamente. Se a respiração é a mesma, se não tenho qualquer sintoma de gripe, se o corpo não chora eventual mal-estar. Essas coisas e tantas outras só se dissipam quando levanto e faço o cafezinho único de cada dia. Não sei se é debilidade psicológica, mas o bom dessa sintomatologia toda é que gosto de sentir que estou vivo e esperto.
Mas a pessoa jurídica que toma conta de mim em todos os momentos (dormi incrivelmente antes das nove horas de ontem e acordei hoje as quatro da matina) é espécie de turboélice. Basta ligar o botão do jornalista que me habita e tudo se resolve. Viro outra pessoa. Os medos somem. Aí entra a angústia do analista. Acordei hoje com os três tempos na cabeça. Tempos que antes eram previsíveis, por assim dizer, porque arriscava quase nada ao desfraldar o futuro. Agora o terceiro tempo é outro tempo.
Missão transparente
Li com avidez a matéria já editada hoje sobre os 30 anos do melhor jornalismo regional do País. Convido os leitores a consumirem o texto que fiz para a edição de julho de 1997. Trato da reforma administrativa que Celso Daniel empreendeu na Prefeitura de Santo André no primeiro ano de seu segundo mandato.
Acompanhem cada linha daquele texto. Vejam que há personagens ali (não é mesmo, caro Ricardo Alvarez) que seguem coerentemente a mesma ladainha, agora (no caso de Alvarez) como mentor da candidatura de Bruno Daniel, irmão de Celso Daniel, à Prefeitura de Santo André. Esse passado me conforta porque é tão imutável quanto desbravador na formulação escrita.
Recuperar a memória de LivreMercado e também deste CapitalSocial é uma missão a que me propus porque é indispensável que a sociedade saiba o que andei fazendo individual e coletivamente como agente de comunicação.
Sem exagero, diria que, sobretudo no campo econômico, centro nevrálgico de tudo nessa vida, as três décadas daqueles dois endereços de veículos de comunicação são leituras obrigatórias a quem pretende entender a região. E um chute nos fundilhos de alguns vagabundos sociais que, provocativos nas redes sociais, são obrigados a se calarem. Eles não resistem à realidade de fatos pretéritos e presentes. Devidamente comprovados.
Hospital de campanha
Se esse passado está mais que consolidado e exatamente por ser passado é insubstituível do ponto de vista profissional, o presente (ou seja, o segundo tempo destes dias) se mostra provocativo para quem se mete a avaliar a situação regional. Nunca imaginei que encontraria uma barreira aparentemente intransponível à segurança da informação como é o caso do vírus chinês.
Vou dar um exemplo do quanto tenho que ser cauteloso para não cometer injustiça. O hospital de campanha que o prefeito Paulinho Serra está construindo em pleno Estádio Bruno Daniel pode ser avaliado sob dois pontos de vista óbvios: é uma decisão corajosa, antecipatória da degringolada geral do sistema de saúde no caso de o vírus vir com força além da capacidade de atendimento público e também pode ser uma ação precipitada, marqueteira, que visa dar visibilidade às ações encetadas desde que essa desgraceira apareceu no radar epidemiológico do País.
Seria Paulinho Serra um aprendiz do governador João Doria, que, no Pacaembu, ergue algo muito maior.
Não tenho coragem de fazer afirmativa que coloque Paulinho Serra como sagaz administrador público nesse momento traumático nem o caracterizar como oportunista. O futuro é que decidirá.
Mas seria justo crivá-lo de bala críticas (e é nesse momento que entra em campo o terceiro tempo ao qual me refiro) numa eventual constatação de que a medida do prefeito ganhou uma cara mais marqueteira do que de gestor. Como o futuro não estava nada nítido, não seria ético eventual contestação à iniciativa. Não tenho vocação a engenheiro de obra feita.
Desfaçatez de aeroporto
O dilema de tratar o presente e o futuro se torna trilema ao se acrescentar o passado, porque a indivisibilidade temporal está sempre presente nos acontecimentos. Essa é uma constatação que me move a pisar em ovos nesse momento.
Imaginem os leitores o quanto sofro com a impossibilidade de não emitir juízo de valor sobre determinada situação. Sofro mesmo. Mas o sentimento de que vivemos momentos especiais que exigem maturidade, sensatez, cautela, só pode ser mesmo capturado quando supostamente se chega a um nível de equilíbrio que só mesmo anos de janela são capazes de garantir.
Dou um exemplo prático para estabelecer paralelo entre as reticências que reservo ao futuro nestes dias de vírus e a firmeza quando é o passado sem vírus somado ao presente consolidado.
Veja o caso do anúncio, em 2011, de que São Bernardo teria a construção de um aeroporto internacional. Imediatamente refutei a idiotice propagada até hoje. Estava munido de sólido conjunto de informações, a começar pela devastação de um território equivalente ao de São Caetano em plena área de proteção dos mananciais. Somente isso, nada mais que isso, tornava aquela notícia uma combinação de despreparo e sensacionalismo.
Equação fiscal
Agora a situação é outra. O que pinta no horizonte próximo talvez seja fichinha perto do que teremos no horizonte mais distante. A gastança keinesiana mais que necessária nestes dias de guerra, afrontando a Lei de Responsabilidade Social porque a situação assim o exige, vai ter custo salgadíssimo durante muito tempo.
Quem subestimar a equação fiscal cometerá o mesmo erro (com prolongado custo em forma de recessão) do governo petista após a crise financeira de 2008. Poderá haver tanta transformação no modus operandi da economia, e por consequência da gestão pública, que nem o mais abalizado macroeconomista seria capaz de antecipar.
Em meio a tudo isso, que no fundo é a insegurança de viver sem saber se o que programamos ao longo dos tempos seria encapsulado por um vírus maldito, ninguém poderá dizer que passei por aqui sem ter lubrificado as dobradiças de todas as portas da casa. Não é que me peguei em flagrante delito de simplicidade ocupacional?
As portas já na rangem mais. Espero, agora, que o ruído silencioso e mortal desse mal chinês saia em debandada. Estou inconformado por não poder especular sobre o futuro com um mínimo de segurança. Até porque nem sei se o futuro vai chegar.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!