Regionalidade

Estado da Grande
São Paulo é a salvação

ANDRE MARCEL DE LIMA - 10/02/2002

O transbordamento dos problemas urbanos, sociais e econômicos na Grande São Paulo dá vazão a uma proposta tão polêmica quanto inovadora no panorama nacional: a transformação da Região Metropolitana de 39 municípios e 17 milhões de habitantes em nova unidade da federação brasileira. Isso mesmo — a transformação da Grande São Paulo em Estado independente, dissociado do Interior Paulista e da Baixada Santista.

A idéia nunca foi tão pertinente como neste momento, em que a debilidade institucional, financeira e administrativa da Região Metropolitana ficou escancarada pelo colapso da segurança pública, que atingiu o ápice com o bárbaro assassinato do prefeito Celso Daniel, de Santo André.

Quem sugere a criação do Estado da Grande São Paulo é o norte-americano Norman Gall, diretor-executivo do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, sediado na Capital. Norman Gall é um dos maiores estudiosos dos problemas que afetam o Estado mais rico da federação. À frente de um instituto internacional que tem como presidente honorário o ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero, além de figuras nacionais como o ex-ministro Luís Carlos Bresser Pereira e o economista e sociólogo Eduardo Gianetti da Fonseca no board diretivo, Norman Gall coloca o tema em discussão por acreditar que muitos dos problemas que comprometem a região mais rica do País — incluindo o nervo exposto da segurança pública — poderiam ser debelados se a Grande São Paulo gozasse de status jurídico e administrativo de Estado.

O especialista lembra que outras localidades que passaram por problema parecido de caos urbano e explosão populacional transformaram grandes cidades e regiões em Estado para garantir a governabilidade. Alguns exemplos são a região de Tóquio, promovida à categoria de Estado em 1943, as cidades de Bremen e Hamburgo, que são consideradas cidades-Estados no federalismo alemão, além dos 17 maiores municípios da Espanha, que gozam de institucionalidade federativa como regiões autônomas.

A criação do Estado da Grande São Paulo proporcionaria condições políticas, administrativas e materiais para resolver — ou pelo menos reduzir ao limite do suportável — não apenas a escalada da criminalidade, mas muitos outros problemas que comprometem a sustentabilidade social e econômica. Em primeiro lugar, a estadualização promove a sonhada metropolização de fato: conectados a um ente federativo exclusivo, os 39 municípios teriam melhores condições geopolíticas para formar um corpo coeso de ações integradas e sistêmicas.

Somente a metropolização real da Grande São Paulo já justificaria a mobilização de lideranças e autoridades da Capital e seu entorno pela estadualização da região. Afinal, é público e notório que insistir na administração compartimentada dos 39 municípios é um atentado à lógica. Muitos problemas que afetam várias cidades ao mesmo tempo só podem ser combatidos com estratégias de coordenação intermunicipal. “Um Município metropolitano não pode despoluir um rio que passa em seu território se a cidade vizinha, de onde vem esse rio, continuar jogando detritos no leito. Da mesma forma, não é possível traçar uma política de transportes isoladamente quando grande parte dos veículos que trafegam no Município é proveniente de cidades vizinhas” — exemplifica o economista Marcos Mendes, consultor do Senado Federal e membro do Instituto Fernand Braudel.

“A Região Metropolitana tornou-se grande e complexa demais para ser administrada de maneira fragmentada, sem interação intermunicipal para resolução de problemas comuns” — enfatiza Norman Gall, que se baseou em estudos de Marcos Mendes sobre a governabilidade de São Paulo para formular a proposta de criação do Estado da Grande São Paulo.

Não é nova a constatação de que cidades conurbadas e interdependentes precisam de gerenciamento integrado. Na década de 60 os comandantes do regime militar criaram as primeiras regiões metropolitanas do País. Mas a metropolização levada a cabo naquela época serviu mais como instrumento de controle do governo central sobre as regiões desenvolvidas em torno das maiores Capitais do País do que propriamente como estratégica de integração voltada para combater a deficiência administrativa dos municípios metropolitanos.

O militarismo saiu de cena há mais de 15 anos, a Constituição de 1988 abriu novas possibilidades de criação de regiões metropolitanas — convertidas pelas regiões da Baixada Santista e de Campinas –, mas os 39 municípios da Grande São Paulo continuam desconectados, salvo movimentos espasmódicos de integração em questões específicas e pontuais.

“A Grande São Paulo precisa de algum tipo de autoridade metropolitana para tratar problemas regionais endêmicos como segurança pública, controle de enchentes, saneamento básico, transporte, educação e meio ambiente” — observa Norman Gall. “A gerência eficiente de regiões metropolitanas exige um conjunto de ações integradas de planejamento, programação de orçamento, desenvolvimento, operação e manutenção de um centro metropolitano. E não é trivial fazer isso quando se tem uma miríade de unidades e de órgãos de governo politicamente autônomos. A integração econômica e social de municípios metropolitanos exige uma correspondente integração político-administrativa” — considera Marcos Mendes.

A metropolização embutida na estadualização traz outro benefício para a região repleta de problemas urbanos, sociais e econômicos que muitas vezes extrapolam as receitas ordinárias: a possibilidade de contratar empréstimos e financiamentos a juros mais camaradas para projetos conjuntos. Se deixar a metropolização da boca para fora para assumir oficialmente a condição de ente de governo, a Grande São Paulo terá a personalidade jurídica exigida pelos credores, especialmente em se tratando do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), a maior instituição brasileira de fomento público e privado. “O BNDES tem interesse em conceder empréstimos que tenham visão metropolitana, mas frequentemente nos deparamos com a ausência de uma pessoa jurídica, de uma instituição que ofereça garantias em conjunto e que represente a metrópole” — explica o economista José Roberto Afonso, superintendente do banco federal.

“O grande problema é que as regiões metropolitanas brasileiras não são consideradas entes de governo da mesma forma que as esferas municipal, estadual e federal. Não há órgão que responda política e administrativamente pelos aglomerados urbanos, e isso dificulta a concessão de créditos” — afirma o executivo público. A estadualização da Grande São Paulo desataria o nó górdio dos financiamentos junto ao BNDES e a outras instituições similares — inclusive internacionais — ao conferir identidade jurídica à região de 39 municípios.

Além de materializar a esperada metropolização de fato da Grande São Paulo, a estadualização provocaria outra grande mudança: com representatividade política ampliada no Congresso pela condição de ente federativo, a Região Metropolitana teria melhores condições para equilibrar a correlação de forças no poder. Para compreender a relevância dessa alteração no tabuleiro do federalismo brasileiro, é preciso conhecer um pouco como funciona o sistema de redistribuição de impostos no País.

Marcos Mendes explica que os grandes centros urbanos são agudamente prejudicados pelos critérios de partilha do FPM (Fundo de Participação dos Municípios), composto por parte da arrecadação do Imposto de Renda e do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e repassado a todas as cidades brasileiras pelo governo federal. Enquanto o pequeno município acreano de Sena Madureira foi contemplado com cota-parte de FPM quase 10 vezes superior ao que arrecadou em Imposto de Renda e IPI, a Capital paulista recebeu a título de FPM apenas 0,4% dos impostos arrecadados.

Basta fazer as contas: Sena Madureira de 23 mil habitantes arrecadou R$ 156 mil e recebeu cota-parte de R$ 1,468 milhão, enquanto a São Paulo de 10,4 milhões de habitantes arrecadou R$ 10,9 bilhões e recebeu apenas R$ 23 milhões. Os números são de 1996 e constam de estudo elaborado por Marcos Mendes sobre a governabilidade do Município de São Paulo.

Na condição de maior cidade brasileira, a Capital paulista é a mais afetada pelos critérios de partilha do FPM. Mas a maior parte dos 38 municípios que estão em sua órbita padece do mesmo mal porque exibe as mesmas características urbanas e populacionais. A origem da partilha de impostos está na Constituição de 1988. Com a intenção de fortalecer financeiramente os municípios diminutos, periféricos e rurais para estancar o histórico fluxo migratório em direção às grandes cidades, os parlamentares forjaram sistema flagrantemente favorável às pequenas cidades. A intenção aparentemente boa converteu-se num pesadelo: municípios pequenos, com até três mil habitantes, não têm escala populacional para produzir serviços públicos. “Não podem ter escola de 5ª a 8ª série, por exemplo, porque vai faltar aluno” — exemplifica Marcos Mendes.

Além disso, o FPM não está vinculado a qualquer tipo de despesa e pode ser usado a critério do Município, contrariamente aos repasses federais vinculados às áreas de saúde e educação. “Os recursos do FPM que fluem para uma infinidade de pequenas localidades brasileiras acabam virando salário de prefeito, de vereadores e do funcionalismo público em geral” — explica Marcos Mendes.

O excesso de repasses federais aos pequenos municípios só é menos contraproducente que a escassez de repasses governamentais às grandes cidades. É justamente nas grandes cidades e regiões metropolitanas — inchadas por décadas de fluxo migratório — que a demanda por serviços atinge a estratosfera. “Nos recessos da macroeconomia, a situação financeira piora porque as receitas das grandes cidades são altamente dependentes de tributos que oscilam ao sabor da conjuntura, como ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), ao passo que pequenos municípios usufruem de recursos mais estáveis por serem dependentes do FPM” — observa o consultor do Senado.

Marcos Mendes e Norman Gall reconhecem que não é nada fácil alterar o critério de partilha de recursos federais. Estados e municípios diretamente beneficiados se oporiam com todas as forças a mudanças constitucionais que implicassem na retirada de direitos adquiridos. Apesar disso, o fortalecimento da representatividade política dos municípios metropolitanos é o único caminho que conduz à transformação das regras do jogo. E a estadualização da região seria o caminho mais curto para fortalecer a representação. “O Estado da Grande São Paulo elegeria 35 deputados federais e três senadores, o que corrigiria, em parte, a sub-representação do Sudeste no Congresso Nacional” — destaca Norman Gall.

Além de proporcionar representatividade política que permita equalizar o repasse de recursos federais, a estadualização da Grande São Paulo eliminaria uma distorção tributária: a metodologia de redistribuição de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços).
O ICMS é devolvido aos municípios segundo critério que privilegia a produção industrial sem levar muito em conta a variável população. Esse critério embute forte viés anti-metropolitano porque as regiões mais densamente povoadas recebem relativamente menos recursos que as cidades industrializadas do Interior Paulista.

“Regiões metropolitanas como a Grande São Paulo foram as que mais perderam participação industrial relativa nos últimos anos (por conta da desconcentração industrial movida, em grande medida, pela guerra fiscal). E é nessas regiões que remanescem grandes contingentes populacionais necessitados de serviços públicos. A maior parte dos recursos do ICMS não vai para as regiões mais problemáticas, onde a pressão sobre a estrutura pública é maior” — explica o especialista Fernando Abrucio, professor-doutor da PUC São Paulo e da Fundação Getúlio Vargas.

A estadualização da Região Metropolitana resolveria o problema sem tocar no critério de redistribuição do ICMS pelo simples fato de que o Estado da Grande São Paulo exerceria controle sobre o bolo arrecadado nos 39 municípios. Dos R$ 237,9 bilhões gerados em Valor Adicionado no Estado em 2001, 47,55% — ou R$ 113,1 bilhões — foram produzidos pelo conjunto dos 39 municípios, que respondem por 48,24% da população paulista.

Mesmo que o atual critério de redistribuição fosse mantido para o novo ente federativo, os resultados não seriam tão injustos porque os municípios da Grande São Paulo são mais homogêneos entre si e não guardam tantos contrastes como em relação ao Interior paulista. Além de as empresas do Interior serem mais enxutas por conta da industrialização mais recente e já adequada aos fundamentos da globalização econômica, as principais cidades fora do eixo da Grande São Paulo não sofreram tanto com o desbalanceamento socioeconômico gerado pelo fluxo migratório.

Assim como a integração metropolitana, a ampliação da representação política, a possibilidade de corrigir a distorção do FPM e o controle sobre o ICMS, também o valor institucional engendrado pela estadualização não deve ser desprezado. Ainda mais nestes tempos de investimentos produtivos ariscos e exigentes.

Como se sabe, o nível de coesão regional é um dos fatores que empresários mais levam em conta na hora de decidir onde instalar novos negócios, basicamente por dois motivos: sistemas produtivos não reconhecem fronteiras municipais, como bem ensina o norte-americano Michael Porter na teoria dos clusters; e empreendedores têm ojeriza à incerteza, por isso tendem a fugir de regiões problemáticas ou que estejam na iminência de entrar em parafuso por falta de liderança e ações extramunicipais. Se a Grande São Paulo quiser voltar a competir em pé de igualdade com regiões interioranas que catalisaram investimentos nos últimos anos, convém não subestimar o valor institucional da estadualização.

O momento é mais que oportuno para romper a trincheira dos privilégios constitucionais dos pequenos municípios e exercer controle sobre o ICMS por intermédio da proposta de criação do Estado da Grande São Paulo. Afinal, o colapso da segurança pública é resultado direto da fraca representação política e da escassez de recursos materiais, males que podem ser corrigidos por meio da estadualização.

O crime bárbaro que tirou a vida do prefeito Celso Daniel chamou a atenção do Brasil e do mundo para a criminalidade crescente na Grande São Paulo. De 1991 a 2000 os roubos aumentaram 126%, os assassinatos 57% e os furtos e roubos de veículos explodiram em 175% na região. Pelo menos dois mil crimes violentos são cometidos diariamente na Região Metropolitana de São Paulo, que no ano passado respondeu por 250 dos 307 sequestros registrados no Estado. Os números são do coronel da reserva José Vicente Filho, um dos maiores especialistas brasileiros em segurança pública, que também é consultor do Instituto Fernand Braudel.

José Vicente Filho entende que a principal razão do crescimento da criminalidade acima da média paulista e brasileira na Região Metropolitana está relacionada ao que chama de distribuição inadequada dos recursos policiais. Com 48,24% da população do Estado, a Grande São Paulo concentra apenas pouco mais de um terço do efetivo policial paulista e é atingida por 69% dos assassinatos, 70% dos roubos em geral e 80% dos roubos de veículos.

José Vicente Filho exibe o desequilíbrio com exemplos: com 703 mil habitantes, a metropolitana São Bernardo, no Grande ABC, tem menos policiais que a interiorana Ribeirão Preto, cuja população é 30% menor. Distante 600 quilômetros da Capital paulista, quase na fronteira com Mato Grosso do Sul, Araçatuba tem praticamente o mesmo número de policiais de Diadema, que faz divisa com a explosiva Zona Sul de São Paulo. Detalhe: a população de Araçatuba é metade da de Diadema.

“Cidadezinhas do Interior Paulista nas quais a ocorrência mais grave é roubo de galinha desfilam com viaturas novas em folha, enquanto São Paulo sofre com a falta de condições materiais para combater o crime organizado. Como bem mostram os estudos de Marcos Mendes, sobra dinheiro por lá, enquanto falta por aqui” — observa o especialista.

Além da segurança pública, outros problemas são agravados pela falta de integração e de contrapartidas políticas e econômicas dos governos estadual e federal. A Grande São Paulo carece de fundas intervenções ambientais. É simplesmente inadmissível que rios como Pinheiros e Tietê, na Capital, e o Tamanduateí, que se estende até São Paulo a partir de Mauá, no Grande ABC, permaneçam como receptáculos de esgotos e entulhos a céu aberto. Em qualquer país civilizado, rios em áreas urbanas são monumentos ambientais valorizados e preservados pela população e pelos governantes. Como o Sena em Paris, o Tâmisa em Londres e o Tejo em Lisboa.

A Grande São Paulo também enfrenta enormes desafios nas áreas habitacional, de trânsito e de combate a enchentes, entre outros problemas sistêmicos que dependem de integração metropolitana, recursos financeiros e reforço da representação política. Só na Capital paulista há mais de dois milhões de moradores em favelas e 600 mil em cortiços. Significa que um quarto da população da cidade mais rica da América Latina vive em condições sub-humanas. Se a esse número se somarem os moradores de loteamentos clandestinos, chega-se a contingente superior a cinco milhões. “A região precisa organizar-se politicamente para enfrentar problemas de escala que a transformam num oceano turbulento de desperdício e contradição” — observa Norman Gall.

Os problemas de escala têm origem histórica. Os oito mil quilômetros quadrados da Grande São Paulo foram palco do mais intenso crescimento demográfico no último século. A população da região multiplicou-se de 31 mil habitantes em 1870 para 18 milhões 131 anos depois. “A taxa de crescimento de 5% ao ano é duas vezes mais rápida que a de Berlim, que liderou a urbanização acelerada na Europa no século XIX” — compara Norman Gall.

Outro exemplo a ser seguido pela Grande São Paulo é a cidade do México, capital nacional na condição de Estado. Norman Gall reconhece que há muitos obstáculos à estadualização da Grande São Paulo. Afinal, uma alteração de tal magnitude no mapa político, administrativo e econômico brasileiro não se materializaria sem muita discussão, pressão, indisposição e até ruptura. “Além da oposição das bancadas das regiões mais pobres no Congresso, o Estado da Grande São Paulo precisaria chegar a um acordo de como a dívida pública com a União seria dividida entre o novo e o velho Estado” — exemplifica o diretor-executivo do Instituto Fernand Braudel.

Mas a transformação da Grande São Paulo em Estado urge. A região está se desintegrando por absoluta falta de governabilidade e interlocução federal. “Na Grande São Paulo, milhares de pessoas lutam para sustentar um arremedo de ordem. Essas pessoas precisam de uma estrutura institucional para dar sustentação e sentido a seus esforços. A estrutura política da metrópole não dá resposta a essa necessidade, nem oferece suporte à eficiência econômica” — afirma Norman Gall. “Chega um momento na vida das grandes cidades em que a necessidade de regulação e alocação racional do espaço e dos recursos passa a prevalecer sobre processos impulsivos. Há bastante tempo São Paulo, em seu crescimento febril, alcançou o estágio em que essa transição já se deveria ter verificado” — adverte.



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