Quando o cachorro da expectativa exacerbada é picado pela cobra da desilusão, o que sobra é o medo da linguiça da tolice. Parece difícil de entender a metáfora? Tente de novo. Leia mastigando, colher por colher de verbete. É assim que faço quando me lanço a uma das tarefas sagradas do meu cotidiano -- ler vagarosa e metodicamente, digerindo, conferindo dados e comparando informações.
Por isso, quando leio anúncios que prometem o céu e a terra em matéria de leitura dinâmica, dou de ombros. Leitura dinâmica pode servir para quem trata a mente como estômago de adolescentes loucos por fast-food. Leitura de verdade é comida a la carte. Tem de ser escolhida, pensada, analisada e triturada com gosto e parcimônia. Dessa forma, o feitiço não tende a voltar contra o feiticeiro. A possibilidade de absorver conhecimentos é proporcional ao tempo consumido.
Mas não é de gastronomia real ou editorial que escreverei. O assunto é a visita do presidente Lula da Silva ontem ao Grande ABC e a promessa -- que está nas páginas do Diário do Grande ABC de hoje -- de que em 60 dias vai responder às reivindicações dos prefeitos da região. É o consagrado Lulacá, Urgente!, que a revista LivreMercado teve a ousadia e a criatividade de sacar na primeira edição pós-vitória do petista.
A lista de oito propostas do Grande ABC mostra que caímos na real e que já não sonhamos tanto com a resolução dos nossos problemas num passe de mágica. Quem não se lembra da Câmara Regional e suas propostas fluviais que só faltavam sugerir a revogação da lei de gravidade?
Cuidado com o entusiasmo
Mas, mesmo assim, convém evitar entusiasmo juvenil. Por mais que no coração de Lula pulse o interesse pelo Grande ABC, o Brasil deixado por Fernando Henrique Cardoso é uma bomba de efeito retardado e, portanto, sujeito a tudo. O dinheiro é curto, os compromissos muitos.
Não bastassem a situação econômica do País e o contexto internacional que promete uma guerra maluca entre norte-americanos e iraquianos, o passado mais recente nos sugere cautela e caldo de galinha quando se tratar de propostas. Se é verdade que jamais tivemos situação tão privilegiada, de contar com o presidente da República e um grupo de assessores igualmente regionais, sabemos também que Brasília é enfeitiçadora. Nem tudo o que um presidente da República diz num discurso numa fábrica, como Lula da Silva disse anteontem, materializa-se no Planalto Central.
Nem cabe aqui, hoje, debater a importância e a relevância das oito reivindicações do Grande ABC. Talvez me dedique a isso em eventuais próximas edições do CapitalSocial. O principal mesmo é manter o estado de alerta contra o que chamaria de obras virtuais, ou seja, damo-nos por satisfeito com as promessas veiculadas na mídia e, depois, não temos o cuidado de monitorar as informações, atualizá-las permanentemente, pressionar seus autores; enfim, exercer muito mais que o facilitarismo da divulgação, para o que bastam papel e tinta, mas, complementarmente, exigir resultados efetivos.
É exatamente esse o recado que o livro Meias Verdades -- Como Usar a Mídia Para Vender Ilusão passará aos leitores a partir de 1º de abril. Passei os últimos três meses vasculhando pastas e pastas de meu acervo particular e só não produzo uma obra de mil páginas, em vez de estimadas 250 que estou acabando de redigir, porque o cronograma não permite, o dinheiro é curto, a paciência se esgota e o desencanto me torna mais cáustico e exigente.
Seríamos eu e meus companheiros de trabalho -- e também serão os jornalistas que tiverem acesso ao livro -- mais que estúpidos, provavelmente irresponsáveis, se não incorporássemos ao trabalho de informar uma dose extra de ceticismo. É importante acreditar em mudanças, porque a vida não tem sentido sem o combustível da esperança, mas é muito mais relevante que o jornalismo não persista em escorregões voluntários ou involuntários, a serviço de interesses nem sempre nobres.
A expectativa de que Lulacá, Urgente! será uma nova etapa na vida econômica e social do Grande ABC não pode ser maior do que os fundamentos práticos de que também pode ser mais um conto da carochinha.
Quem ler Meias Verdades vai ter avaliação mais exata do que escrevemos nestas linhas. Vivemos particularmente no Grande ABC dos últimos sete anos autênticas alegorias carnavalescas que nos deixaram com gosto de quarta-feira de cinzas. Que Lulacá, Urgente! não seja um capítulo de uma segunda ou terceira edição de Meias Verdades. Rezamos para isso.
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24/04/2025 GRANDES INDÚSTRIAS CONSAGRAM PROPOSTA