Regionalidade

10 mandamentos
para os prefeitos

DANIEL LIMA - 04/09/2007

O que um bom administrador público municipal deve fazer para ser lembrado por muito tempo depois de deixar o cargo? A relação de oferendas ao futuro pode ser extensa, complexa, mas também pode ser sintetizada em agrupamento de idéias e propostas. Foi por isso que LivreMercado organizou o que chama de 10 Mandamentos do Gerenciamento Público Municipal, receituário cuja execução independe em larga margem de relações com o governo do Estado e mesmo com o governo federal.


 


A síntese dos 10 Mandamentos foi apresentada durante a festa de lançamento da Reportagem Especial sobre Indaiatuba, mês passado naquela cidade da Grande Campinas. O que se ofereceu publicamente como conjunto de títulos e breves frases ganhou corpo que se traduziu nesta Reportagem de Capa.


 


É impossível não correlacionar os 10 Mandamentos à própria história de industrialização e desindustrialização do Grande ABC, com evidentes efeitos sociais e econômicos que esses fenômenos apresentam. Os prefeitos que passaram pelo Grande ABC no período de efervescência econômica descuidaram-se do futuro que chegou em forma de bólido de competitividade insuportável nos anos 1990 de abertura econômica e financeira, de guerra fiscal, de reestruturação da moeda.


 


O Grande ABC está pagando o preço do pioneirismo do desenvolvimento econômico. Carrega cicatrizes sociais enormes por conta, entre outros, de problemas de quebra da mobilidade social, traduzida como a capacidade de mais e mais gerar novas camadas de classes médias e ricas.


 


Para os municípios do Interior mais próximo e desenvolvido do Estado que só recentemente fortaleceram-se com a chegada de indústrias, os 10 Mandamentos do Gerenciamento Público Municipal ganham a forma de bússola para evitar abalroamentos socioeconômicos. Exatamente o que faltou aos prefeitos do passado do Grande ABC. Um descuido administrativo que comprometeu o futuro que chegou.


 


1. Amar a comunidade sobre todas as coisas


 


Um bom administrador público não pode se descuidar da comunidade. Enxergar apenas os resultados práticos de quatro ou de possíveis oito anos de mandato é o caminho que pavimenta o inferno. Não faltam exemplos de homens públicos descuidados, quando não irresponsáveis. Basta ver o que foi feito com a periferia de São Bernardo e também de Santo André, municípios mais atingidos pela sinistra combinação de áreas de proteção de mananciais e ocupação devastadora de habitações. Houve casos de deliberada malversação de bens públicos. Construir favelas, principalmente em São Bernardo, era estratégia eleitoral, além de insanidade social.


 


A subida dos morros de barracos em plena luz do dia contrapunha-se às objeções de ocupação previamente violentadora do meio ambiente por empreendimentos produtivos. Os ambientalistas se mobilizaram para coibir abusos de empresários inescrupulosos ou desavisados quanto às restrições impostas pela Lei de Proteção dos Mananciais, mas radicalizaram nas medidas restritivas. Enquanto isso, foram sempre tolerantes, quando não cúmplices, em defesa de invasores, geralmente imigrantes em busca de um teto, qualquer que fosse o teto.


 


Administrador público que conjuga populismo habitacional e sufrágios eleitorais está condenado ao ostracismo porque transfere a herança de complicações a sucessores. Mais dia menos dia é apresentada a fatura de levar serviços públicos básicos às periferias. O critério de prioridades é mutante. Quem quer única e simplesmente uma habitação hoje, vai dar saltos de demanda em seguida. Redes de água, de esgoto, eletricidade, escolas, postos de saúde, segurança pública, transporte e muito mais passam a constar da lista de reivindicações. Por isso, nada melhor que debelar focos de crescimento desajustado da população.


 


O sinal de alerta do descasamento entre qualidade de vida e fluxo migratório deveria estar ligado para o administrador público previdente quando houvesse descompasso entre crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) municipal e avanço demográfico. A conta é salgadíssima quando a estatística aponta muito mais gente num território do que riqueza produzida. Quando há regressão do PIB, a situação é ainda mais calamitosa — como o Grande ABC prova e comprova em cada esquina de gente subempregada.


 


2. Não tomar o Santo Nome do Desenvolvimento em vão


 


Administrador público que abusa do direito de empinar indicadores econômicos por conta de demandas nem sempre ajuizadas do mercado comete o mesmo crime para os casos em que, movido por viés ideológico, fecha os olhos e os ouvidos para negócios que poderiam gerar salários, renda e riqueza. O caso que envolveu o Grande ABC nos anos 1990 é emblemático do sacrilégio cometido em nome de desenvolvimento econômico autofágico.


 


Numa corrida antagônica em que esvaziava-se a produção industrial com evasão e morte de empresas e não se estabelecia nem mesmo resquício de planejamento da reestruturação de comércio e serviços, o Grande ABC viveu o pior dos mundos. De um lado, muitos desempregados industriais engrossaram a relação de empreendedores formais e informais de pequeno porte. Instalou-se overdose concorrencial no contrafluxo da perda de riqueza e de renda da população deserdada pela indústria. De outro lado, chegaram grandes empreendimentos do terciário, de marcas lustrosas, de redes nacionais e internacionais. A carnificina e a subsistência foram e ainda são flagrantes.


 


Manchetes não faltaram para saudar a chegada de supermercados, hipermercados, shoppings, franquias famosas e tudo que tivesse a coloração mais que evidente de modernização de uma atividade que, por conta do obscurecimento provocado pelo sempre invejável setor industrial, mantinha perfil provinciano. O choque entre os antigos empreendimentos e a leva de novos negócios foi muito maior do que se poderia admitir. Nenhum Município do Grande ABC (como de resto do País) se organizou para criar plano diretor que promovesse harmonia entre o velho e o novo, entre o pequeno e o grande, entre o familiar e o corporativo.


 


3. Guardar a responsabilidade social e o meio ambiente


 


Nem sempre a chegada de indústria ou de conjunto de indústrias geradoras de gordas receitas tributárias e mesmo de caudal de empregos é alternativa que não comporte senões. Sempre considerando que administração pública é ação continuada, independentemente de quem esteja no comando, o que tem toda a tessitura desenvolvimentista hoje pode ser gargalo amanhã. E quando isso ocorre, tanto o equilíbrio social quanto o resguardo do meio ambiente entram em choque térmico.


 


Um exemplo é a própria configuração industrial do Grande ABC, excessivamente dependente do setor automotivo, formado por montadoras de veículos e autopeças cujos tentáculos se espalham a outros setores, principalmente derivados do plástico mais e mais utilizados em veículos. A acomodação dos administradores públicos do Grande ABC do passado de fertilidade econômica orquestrada pelas montadoras entorpeceu o senso de previdência. A postura acomodatícia foi um tiro no próprio pé que os anos 1990 trataram de castigar.


 


A descentralização espacial ao som ensurdecedor da guerra fiscal, a desmesurada abertura econômica e as novas incursões gerenciais para elevar a competitividade num mundo sem fronteiras colocaram fogo no paiol da indústria automotiva do Grande ABC. O vazamento de mais de 100 mil empregos industriais com carteira assinada explicitava transformação do modelo produtivo que administradores públicos demoraram para entender e, principalmente, para reagir. A perda de mais de 1% ao ano do PIB dos sete municípios locais entre janeiro de 1995 e dezembro de 2006 expõe vísceras de um passado endeusador das automotivas, reconhecidamente a atividade mais competitiva do mundo. São mais de 60 milhões de veículos industrializados a cada ano, num modelo de negócio em que cada vez mais a economia de escala e a quebra do assalariamento fazem a diferença entre vencedores e vencidos.


 


A embriaguez provocada pelo glamour da indústria automotiva contaminou o organismo regional de tal monta que as travessuras ambientais de ocupações descoladas de princípios de qualidade de vida se multiplicaram como cogumelos. A Represa Billings é a experiência prática do descuido coletivo de uma comunidade que insiste em acreditar no Papai Noel de soluções fáceis.


 


Ações profiláticas foram introduzidas nos últimos anos, por conta de pressões orçamentárias que levaram os administradores públicos a reconhecer o peso dos maus-tratos do passado. Entretanto, o nível e a velocidade de medidas ainda estão aquém das necessidades, entre outros motivos porque há menos recursos disponíveis nos cofres públicos locais abalados pela desindustrialização reduzidora de repasses do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). A chegada do trecho Sul do Rodoanel pode ser elemento complicador caso não haja sintonia fina entre necessidades logísticas e resguardo ambiental.


 


4. Honrar receitas e despesas


 


A Lei de Responsabilidade Fiscal não é nenhuma Brastemp, como provam estudos, mas colocou certa ordem no quarto de despejos que caracterizava o tratamento com o dinheiro dos contribuintes. Muitas torneiras ainda permanecem abertas por conta de firulas interpretativas da legislação. Não faltam válvulas de escape com terceirização de mão-de-obra e deslocamento de custos de aposentados e pensionistas para longe de dispêndios com folha de pagamentos do funcionalismo ativo que, como se sabe, está condicionada ao orçamento, sob risco de penalidades diversas.


 


Entretanto, não é o formato jurídico que, mesmo obedecido à risca, identifica a capacidade gerencial de administradores públicos. Honrar receitas e despesas é muito mais que uma associação contábil que passa pelo crivo dos tribunais de contas. A banda excessivamente estreita da interpretação econômico-financeira geralmente perseguida pelos administradores públicos não confere competência e eficiência. Trata-se apenas de seguir figurino formalmente exigido pela legislação.


 


O que diferencia de fato uma administração que promove o casamento entre a contabilidade e o desenvolvimentismo é a execução de plano de governo que encaixe golpes certeiros não só na mandíbula do desperdício com recursos humanos em excesso como também na linha de cintura da reestruturação dos valores financeiros. No caso do Grande ABC, são cada vez mais tormentosas as imposições práticas que melhorem a estrutura física em contraponto aos limites gerenciais e financeiros.


 


Nos tempos áureos de arrecadação em alta sobravam recursos para dotar os municípios de equipamentos sociais. Com a reversão do placar dos tributos e a precarização do ambiente de competitividade econômica, o desafio de atender às demandas sociais se tornou alucinante.


 


São cada vez mais escassos os recursos financeiros das prefeituras locais para atender o fluxo de exigências de infra-estrutura social. Com isso, sobra pouco dinheiro para obras físicas vinculadas ao desenvolvimento econômico.


 


Santo André dos tempos de primeiro mandato do prefeito Newton Brandão chegava a reservar 48% do orçamento para obras. Desde meados dos anos 1990 a Prefeitura petista não consegue chegar a 15% de tudo que arrecada diretamente e do que recebe do governo do Estado e da União a título de repasses constitucionais.


 


O cerco ao dinamismo econômico e social é asfixiante. Menos mal que nos últimos anos o Grande ABC, de maneira geral, apresenta queda do índice demográfico. Mas, mesmo assim, está bem acima do mesmo indicador da vizinha Capital. Em 10 anos o Grande ABC aumentou em 300 mil o número de moradores. Só São Bernardo ganhou uma São Caetano de população. Nada mais desastroso porque no mesmo período perdeu quase 30% do PIB (Produto Interno Bruto).


 


5. Não matar os pequenos negócios


 


O encantamento provocado por investimentos de grande porte é característica cultural de um País com baixo nível de criticidade e que se deixa levar pelo superlativo. Foi assim, por exemplo, com a endemia dos grandes estádios de futebol dos anos de domínio do regime militar e com obras faraônicas que se transformaram em monumentos à inutilidade e ao puro desperdício quando não concluídas.


 


Por isso o Grande ABC que historicamente desprezou pequenas e médias indústrias, principalmente, paga o preço da desestruturação de cadeias produtivas, sobremodo no setor automotivo. Exceto Diadema, que de uns anos para cá tem-se dedicado não só a flertar mas também a promover ações conjuntas com pequenos empreendedores, o Grande ABC sempre se deixou levar pelo brilho estelar das montadoras de veículos e dos principais satélites de autopeças.


 


O que girava em torno dessas multinacionais pouco interessava, desde que receitas tributárias continuassem a alimentar a máquina pública. Até que veio o vendaval da abertura econômica sem medidas compensatórias e a quebra do ganho fácil com a inflação, que elevava receitas e desvalorizava despesas. O que se registrou foi um massacre que combinou deserções, mortalidades e desnacionalização; sobretudo de empresas familiares.


 


Também nas áreas de comércio e de serviços o Grande ABC foi emblematicamente permissivo. Deixou-se navegar nas águas só aparentemente redentoras de supermercados, shoppings e das mais variadas grifes de franquias sem calcular os riscos de desajustamentos do equilíbrio socioeconômico.


 


Tanto no caso industrial quanto no do terciário, o arrombamento da porta econômica seguido de estupro social parece irremediável. Os espaços físicos de maior valor logístico foram entregues às forças do capitalismo de resultados. Os pequenos negócios familiares foram destronados. É verdade que uma ou outra atividade se vira como pode à sombra dos grandes players, mas não passam de exceção à regra.


 


O Grande ABC foi imprudente ao não dar tratamento prioritário à reocupação física com a chegada de grandes investimentos. Pior que isso, não só ignorou os choques que se seguiram, mas preferiu festejar ruidosamente os novos investimentos — comportamento institucional que tangencia a maluquice.


 


6. Não pecar contra a regionalidade


 


A pregação voltada para a associação entre interesses globais e regionais não é mantra para ludibriar a boa-fé, mas não faltam administradores públicos despreparados para saltar o muro cartográfico municipal. O Grande ABC dividido em sete pedaços a partir da metade do século passado está longe de ser homogêneo na economia e também não corre na mesma raia de identidade cultural.


 


Um bom exemplo é a recém-construída Diadema, povoada por migrantes principalmente de Minas Gerais e do Nordeste. Outro é a mais que secular São Caetano, de imigrantes italianos, espanhóis e de tantas outras nacionalidades. São modelos antagônicos com peculiaridades que podem ser resumidas no gosto eleitoral.


 


Enquanto São Caetano é conservadora, porque já conquistou patamar de qualidade de vida que faz inveja à vizinhança, Diadema é eminentemente revolucionária, com alto índice de politização socialista, reflexo da predominância do PT nas urnas. São Caetano e Diadema são microcosmos do Brasil dualístico que faz do presidente Lula da Silva deus e demônio.


 


Embora menos contrastantes entre si, os demais municípios da região reúnem matizes sociológicos que os colocam em pontos divergentes. Santo André tem pequeno ventre de São Caetano e uma Diadema menos politizada e carente na periferia. Já Mauá, mais predominantemente periférica em escolaridade e economia, distancia-se de Diadema porque tem porção maior de conservadores e massa menos politizada.


 


O que coloca no mesmo plano os sete municípios do Grande ABC, mesmo em plataformas econômicas e culturais distintas, é o grau de necessidade de recuperação. Todos os municípios foram atingidos de uma forma ou de outra pela desindustrialização, mas inexiste qualquer ação substantiva de aproximação com objetivos siameses.


 


A guerra fiscal no setor terciário deflagrada em meados dos anos 1990 pelo prefeito Luiz Tortorello, de São Caetano, foi seguida pelo prefeito de São Bernardo, Maurício Soares, para espanto de um Celso Daniel regionalista de primeira grandeza. Mais tarde, até Rio Grande da Serra então petista enveredou pelo atalho da guerra fiscal e atingiu a igualmente petista Santo André, ao seduzir uma empresa de assistência médica altamente geradora de ISS (Imposto Sobre Serviços).


 


As entidades de integração regional constituídas nos anos 1990 são apenas ilusão de ótica quando se observam resultados econômicos de evasão industrial e queda do PIB. Consórcio Intermunicipal de Prefeitos, Agência de Desenvolvimento Econômico e Câmara Regional ocupam patamares distantes entre si. O Consórcio é o mais ativo, mas se perde pela falta de planejamento e de objetividade. A Agência sofre com a esqualidez de recursos financeiros que atinge em cheio a estrutura organizacional. A Câmara Regional é uma anedota institucional porque o cargo de presidente é praticamente simbólico, dada a ausência sistemática do governador do Estado.


 


7. Não furtar as expectativas


 


Acenar com investimentos que não passam pelo crivo da concretude mas que, embalados pelo triunfalismo, parecem inadiáveis, é vício populista. Quando se acredita que basta anunciar um grande empreendimento público ou privado para que a temperatura econômica e social desabroche em surto de novos negócios e de percepções de eficiência governamental corre-se mais que o risco da desilusão. O que se contrata é o compromisso com um futuro dificilmente realizável e que, por isso mesmo, gera frustrações. Expectativas fraudadas têm efeito bumerangue. Coloca em xeque a credibilidade pública de quem propagou novidades.


 


O Grande ABC é palco sistemático de promessas que jamais se cumpriram. O Parque Tecnológico de São Caetano, anunciado com estardalhaço pelo então prefeito Luiz Tortorello diante de mais de 1,2 mil convidados no Teatro Paulo Machado de Carvalho, se converteu em trambolho porque ainda não ganhou sequer as primeiras estacas de realidade.


 


Em Santo André, a propalada Cidade Pirelli, que combinaria atividades de serviço, entretenimento e habitação numa megaárea desmobilizada pela multinacional de pneus, virou passivo.


 


Em São Bernardo, um projeto análogo batizado de Cidade Tognato, ao lado do Paço Municipal, perdeu-se no desvio do pesadelo. A fragmentação do espaço físico ocupado durante quase um século por uma indústria têxtil retrata a situação. Mais exemplos não faltam. O desfile é extenso. Diadema promete shopping center há mais de uma década.


 


Da mesma forma que obras físicas, promessas de programas para o enfrentamento da globalização foram inúmeras. Sem contar a contratação de especialistas em preparar cenários que procuraram driblar a platéia com números e interpretações desconectados da realidade. O mais conhecido dos transgressores informativos foi o economista João Batista Pamplona. Durante quase três anos ele atuou na Agência de Desenvolvimento Econômico. Foi demitido depois de desmascarado por LivreMercado.


 


Mas outros personagens que poderiam receber o título de alquimistas também ocuparam a tribuna de encenação e foram alijados do cenário regional. Outros, mais espertos e menos agressivos nas manipulações, estão na ativa. Jogam para a platéia incauta, mesmo diante da constatação de quebra da produção de riqueza.


 


Os administradores públicos destes tempos no Grande ABC são mais maduros que antecessores, mas ainda não atingiram o grau de fidelidade aos fatos que deveria ser regra geral. É questão de tempo chegar ao ponto ideal. Desde que não lhes faltem eventuais puxões de orelha.


 


8. Não levantar falsas barreiras


 


Comunidade e corporações são água e óleo no genoma socioeconômico do Grande ABC. A ocupação acelerada do espaço regional a partir dos anos 1950 a reboque da industrialização e a cultura manufatureira encapsularam chefes de família e gerações seguintes em ambientes de trabalho. O sonho da mobilidade social de migrantes e imigrantes prevaleceu. O individualismo vicejou fora do ambiente profissional, longe das máquinas. Valeram sempre mais como moeda de representatividade social os dísticos das corporações que se confundiam com a própria identidade pessoal, quando não se sobrepujam, e o organograma funcional.


 


Trabalhadores de chão de fábrica e executivos mensalistas formaram mundos distintos nas indústrias. Na comunidade, a separação se manteve e se cristalizou geograficamente. As áreas mais centrais refletem a valorização imobiliária.


 


A comunidade do Grande ABC também reflete o separatismo social do País. A peculiaridade é que a classe emergente dos trabalhadores de um passado de riqueza não conseguiu ascensão suficiente para atingir tanto os ricos e a classe média-alta. Entretanto, compõe um quadro de classe média-baixa que atenua o impacto generalizado do País que reúne vazios mais pronunciados entre os bem-nascidos e os excluídos sociais. Ou seja: o Grande ABC industrializado de salários elevados em relação a outras unidades municipais da Federação ganhou camada social suplementar e consistente de remediados que o Brasil menos industrializado jamais alcançou.


 


O que torna o Grande ABC mais subdividido como comunidade em relação ao restante do País é o esquartejamento do território em sete partes. Organizações congêneres como associações comerciais, associações industriais e outras representantes de classes funcionais e sociais praticamente não se misturam nem no próprio Município, quanto mais na região.


 


O divisionismo é a norma. São espécies de repúblicas independentes que desprezam o conceito de ganho de escala, gênese de produtividade social e econômica. O Grande ABC é visto externamente como região para investimentos que consideram o coletivo dos sete municípios, mas internamente promove eterno jogo de dissimulações e idiossincrasias que faz ranger os dentes de uma engrenagem enferrujada, porque obsoleta.


 


E o que os governos municipais têm a ver com isso? Goste-se ou não, a centralidade social e econômica gira em torno do prefeito de plantão num País em que historicamente o Estado é interpretado como provedor e guardião.


 


Celso Daniel criou o projeto Santo André Cidade Futuro no início do segundo mandato. Reunia representantes de diversos espectros sociais do Município que, no afunilamento para definir o planejamento para o ano 2020, se encontrava com movimentos populares a bordo do Orçamento Participativo. Em São Caetano o prefeito José Auricchio Júnior criou o Conselho da Cidadania que, semelhantemente à iniciativa de Celso Daniel, procura aproximar instituições locais. Em Diadema há movimentos populares que se entrecruzam, mas falta a participação do empresariado.


 


9. Não desejar a empresa do próximo


 


O administrador público que mandar às favas o protocolo de boa vizinhança municipal por conta de políticas desenvolvimentistas que torturem o equilíbrio regional e também o genoma vocacional de cada Município invade lamaçal de conflituosidade em vez de cimentar relações diplomáticas compartilhadas.


 


Por mais que cenários sejam desenhados internamente para fortalecer o setor produtivo, isolamento não costuma ser associado à longevidade econômica. Empresa atraída por conta de guerra fiscal, por exemplo, é um tiro no pé se não estiver sedimentada na argamassa do planejamento estratégico. Por isso, aquiescência à guerra fiscal nem sempre é prova de inteligência administrativa e negocial.


 


Quem entende que qualquer empresa sempre será bem-vinda a qualquer custo pode dar com os burros n’água. Tanto a administração pública quanto o empreendedor privado poderão constatar que vantagens comparativas típicas dos clusters, ou seja, de afinidades entre empresas que se complementam na linha de produção e de serviços, colecionam bons resultados independentemente de atratividade fiscal. Mão-de-obra cultural e tecnicamente preparada, infra-estrutura social e a presença de rede de fornecedores e clientes contam pontos valiosos na equação de competitividade.


 


Não é por outra razão que consultorias especializadas exibem cardápio de mais de 200 quesitos para medir vantagens e desvantagens locacionais. Exceder-se na dose de atratividade fiscal, portanto, não é o mais recomendável para administrador público com juízo. Esticar demais a corda de vantagens pontuais pode comprometer a sustentabilidade no futuro.


 


O Grande ABC viveu nos últimos 20 anos dupla e nociva movimentação de empreendimentos. A primeira, resultado de exaustão do território como sinônimo de competitividade, determinou a evasão de centenas de empreendimentos, notadamente para o Interior paulista mais próximo da Capital, nas regiões metropolitanas de Campinas, São José dos Campos e Sorocaba — as duas últimas assim nomeadas informalmente.


 


Contrariamente ao que se tornou praxe, não foram apenas vantagens tributárias municipais e estaduais, quando não suporte de recursos federais, que impulsionaram a transferência de indústrias do Grande ABC. O custo locacional na esteira da valorização imobiliária, o rebaixamento da qualidade de vida em forma de trânsito caótico, o sistema de saúde na UTI (Unidade de Terapia Intensiva), o cochilo de autoridades públicas em vez de aproximar-se da galinha de ovos de ouro de tributos, a catequese de sedutores agentes de relocalização disparados pelo Interior, entre tantos outros fatores, desembocaram em retiradas permanentes. Amanhã, o feitiço de atratividade pode virar contra o feiticeiro. Basta derramar-se em glória.


 


Por outro lado, houve também migrações internas, sobretudo de Santo André e São Caetano em direção ao Pólo Industrial de Sertãozinho, vasta área de Mauá, e até que se desse a ocupação de praticamente todo o território industrial reservado por Diadema. Não faltaram dirigentes públicos que, em surdina, seduziram empresas de cidades vizinhas. A guerra fiscal cindiu o setor de serviços do Grande ABC em sete pedaços conflitantes.


 


A falta de organização físico-ocupacional do Grande ABC durante o período de vacas gordas foi tão acachapante que um exemplo é suficiente para rechaçar qualquer oratória colocada como tentativa de negar o óbvio: embora o centro produtor de insumos da indústria do plástico seja o Pólo Petroquímico situado na divisa de Santo André e Mauá, a grande concentração de indústrias da terceira geração, a maioria de pequeno e  de médio porte, está em Diadema, no outro extremo geográfico da região. Pesou no deslocamento produtivo o custo relativamente mais em conta de terrenos em Diadema como também a proximidade com a Rodovia dos Imigrantes, a meio caminho do Porto de Santos e da Capital. Mas o núcleo da aberração logística está na ausência histórica de manejo do espaço regional por parte de administradores públicos e da volúpia imediatista de representações das atividades privadas.


 


O setor de transformação de plástico, como é denominada a terceira geração de empresas que giram em torno da produção de químicos e petroquímicos, ficou refém das forças do mercado. A participação do Estado pelo menos como ferramenta de depuração dos vícios próprios do curto prazo ditado pelos balanços financeiros de empresas privadas não deve ser vista como negação do capitalismo, como sugerem ingênuos ou radicais. A atuação organizadora e mediadora do Estado, no caso de dirigentes públicos municipais, na harmonia socioeconômica de investimentos, é mais que obrigatória: significa a própria longevidade do relacionamento saudável entre Mercado e Sociedade.


 


10. Não cobiçar vantagens competitivas alheias


 


Vantagens competitivas não são mercadoria que se compra em qualquer esquina do empreendedorismo municipal ao sabor de ambição descolada da realidade. A gula por investimentos pode neutralizar políticas públicas pré-definidas e comprometer o planejamento estratégico. Brigar contra os fatos é pura perda de tempo e de dinheiro. Por mais que pareça estranho, regionalidade não significa uniformidade. Pelo contrário: da mesma forma que o Grande ABC econômico é dividido em sete partes desiguais por conta de fatores históricos, em outras geografias o passado pesa sobremodo na definição dos planos.


 


Geralmente as vantagens competitivas de determinado Município estão tão arraigadas e consolidadas que a simples possibilidade de contrapor-se como concorrente torna-se letal. Não é por acaso que se avolumam os casos de fusões e aquisições de empresas para ganho de escala, para aumentar investimentos, rentabilidade, sinergia com fornecedores e clientes. Disputas entre territórios vizinhos ou mesmo distantes precisam ser gestadas sob prisma de complementaridade, de cadeia de produção. Rupturas costumam custar caro.


 


Entretanto, a idéia de que antecipar-se à sede de determinado setor garante vantagens competitivas eternas nem sempre supera a precarização em ritmo lento e muitas vezes imperceptível. O sucesso pode levar ao relaxamento crítico e à ameaça de degringolada. Foi assim com Detroit, dominante em indústria automotiva, mas que sofreu reorganização completa para amenizar perdas ditadas sobretudo por novos pólos, no extremo oposto do mapa norte-americano, tingido pelas cores e logomarcas de subsidiárias asiáticas suficientemente estruturadas para dar o bote do deslocamento do eixo produtivo de veículos.


 


O Grande ABC, Detroit brasileira, repetiu a situação. A diferença é que, contrariamente ao caso americano, não conta com recursos estaduais e federais e, por isso, debate-se solitariamente num mar de dificuldades.


 


Por isso, tão importante quanto estar antenado à dificuldade de mimetizar municípios que detêm determinada importância econômico-setorial, administrador público com olhos no futuro não pode perder a oportunidade de, ao vislumbrar fissuras ditadas pelo berço esplêndido do comodismo de quem se sente inexpugnável, atuar na reocupação do espaço no mercado.


 


Foi assim, aliás, que o Grande ABC viu boa parte do poderio industrial evadir-se em direção ao Interior do Estado, atentíssimo aos novos tempos econômicos. Nesse caso, os municípios que absorveram nacos importantes do setor automotivo não cometeram o pecado da cobiça. Simplesmente aperfeiçoaram a mira da oportunidade.


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