A propósito do que escrevi ontem sobre o jornalismo impresso regional nacional, com ênfase ao que se vive nesta Província, cabe ao menos uma esticadinha. Vou reproduzir uma das janelas editoriais que compuseram o mais amplo e abrangente Planejamento Estratégico que o Diário do Grande ABC recebeu de mãos beijadas de um colaborador contratado para colocar ordem no galinheiro da redação. Faz 14 anos que apresentei a proposta à direção do jornal. Sem firulas diplomáticas. Fiz um exame cuidadoso não só da publicação, mas do entorno da redação. Nenhum jornal é uma ilha. Nem tampouco deve ser o reduto de mandachuvas e mandachuvinhas.
Preparei um planejamento estratégico em três dias de trabalho no Interior do Estado, para onde fui exatamente para ter paz e chegar com tudo pronto para iniciar trabalho à frente do jornal. Foram quase 90 mil caracteres de análises e propostas. Não usamos meios termos para definir o que entendíamos ser o jornal naquela altura do campeonato. Um jornal bem melhor do que é hoje, mas inferior aos tempos de comando de redação de Alexandre Polesi, metade dos anos 1990, e mesmo nos 11 meses que passei lá como diretor de Redação entre 2004 e 2005.
Não escrevi na edição de ontem, ao atuar como abelhudo numa entrevista publicada no Diário do Grande ABC com o diretor de Redação Evaldo Novelini, nada que não tenha escrito antes. O conceito é o mesmo. Repasso os parágrafos de um dos tópicos, no caso o relacionamento externo que sugeria aos representantes da publicação. Hão de observar os leitores que o texto de 14 anos continua atualíssimo. Nada mais decepcionante.
Apadrinhamento danoso
O relacionamento com público externo é uma equação que requer desprendimento. Nem sempre é possível detectar, mas geralmente é viável abortar inescapáveis problemas. Basta querer. Trata-se do distanciamento mínimo dos formuladores editoriais e dos responsáveis acionários pelo produto que vai às ruas e as fontes de pressão. O apadrinhamento de pessoas e entidades é o desvio mais rápido para a acomodação editorial, seguida da desmoralização nem sempre impactante, mas sem dúvida suficientemente danosa. Premiar agentes improdutivos com mistificações deliberadas ou acríticas destila indignação mesmo que silente no seio da comunidade que conhece mais de perto o oportunismo de atores que se aproximam da mídia apenas para levar vantagem. Quando essas sanguessugas se cristalizam no poder midiático, acabam por definir o padrão ético-editorial da publicação. Se os improdutivos tomam tanto espaço, como será possível aos eventuais produtivos apeá-los do poder sem correr o risco de antagonizar-se com a mídia?
Preservar linha editorial
O Grande ABC vive momento especial demais para permitir a perpetuação dessa tradição arraigada no jornalismo nacional. É preciso dar vez ao reformismo sem, entretanto, cair no viés extremo de fabricar novos agentes. Os relacionamentos institucionais do Diário do Grande ABC — ou seja, as relações da empresa com o público externo formado por administrações públicas, entidades econômicas, legisladores, lideranças sociais e culturais, gestores e produtores acadêmicos, entre tantos — não podem ser confundidos com a linha editorial. É verdade que uma coisa necessariamente não exclui a outra, mas também é fato que uma coisa pode contaminar a outra e destilar, como dissemos, o conceito de que mais importante do que fazer é fazer de conta que se faz, porque sempre haverá um veículo importante para sacralizar o pecado da omissão dissimulada e do despreparo escamoteado.
Preservação editorial
O jornal, como produto e como instituição, não pode, portanto, construir relações circunstanciais ou efetivas que afetem os insumos editoriais. Dar oportunidade a todos para que participem de uma grande virada institucional do Grande ABC é ação prospectiva que tem o condão de zerar os déficits do presente e do passado. A vantagem de incrementar essa nova empreitada é que os erros acumulados deverão servir de lição. Somente um novo enquadramento editorial que dignifique quem tem garrafas para vender permitirá a reconstrução de relacionamentos entre as instituições mais importantes da região, provavelmente com o Diário do Grande ABC como catalisador dessas operações.
Sem paternalismo
Nada, entretanto, que lembre o fracasso do Fórum da Cidadania, deliberadamente uma ação do jornal que, por não ter tido o controle estratégico recomendado, cometeu o desvio múltiplo de baixa representatividade, politiquismo partidário, afrouxamento institucional, entre outros problemas. Tornar-se o centro nuclear das ações de restauração das forças econômicas e sociais da região não significa afirmar que o Diário do Grande ABC deve paternalizar as entidades. Pelo contrário: nosso regionalismo recomenda que as instituições se sintam livres de amarras que eventualmente as embalem incondicionalmente e as coloquem, portanto, a salvo de restrições e correções de rumo. Tivesse o Fórum da Cidadania dispensado o hierarquismo do Diário do Grande ABC, cujos vários representantes tutelaram reuniões de forma muitas vezes explícita, outras vezes implícita, provavelmente não se teria desperdiçado o mecanismo até então mais interessante de reação organizada da comunidade. Mesmo considerando-se que o Fórum da Cidadania se reduziu a apenas um ou dois representantes de cada entidade e que não demorou quase nada para a esfuziante usinagem inicial virar sucata.
Guardião vulnerável
A osteoporose econômica do Grande ABC, que perdeu 39% do PIB industrial ao longo dos oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso, é a prova cabal de como o Diário do Grande ABC fracassou editorialmente no suposto exercício de atuar como guardião da comunidade, como expressa o mote “100% Grande ABC”. Pior que a perda econômica que só a Editora Livre Mercado detectou e martelou incessantemente é a omissão do jornal em, mesmo com uma afiliada denunciando os descasos econômicos locais, regionais, estadual e federal, manter linha editorial amorfa, defensiva. Ora, isso é a mais irritante prova de que o relacionamento que o Diário do Grande ABC mantinha — e ainda mantém — com a comunidade regional, sobretudo os tomadores de decisão, não valem um tostão furado.
Não faltaram denúncias
Denunciamos à frente da Editora Livre Mercado, em sucessivas matérias, a letargia dos agentes econômicos, governamentais e sociais. Nada que repercutisse na consciência dos responsáveis editoriais do Diário do Grande ABC. Ou se trata de muita incompetência ou os inter-relacionamentos beiraram o estapafúrdio, com o jornal se obrigando a omitir-se em assunto tão escandalosamente candente. De qualquer forma, a crise econômica é mais localizadamente profunda no Grande ABC do que em qualquer outro território do País. Mostramos em análises impressas na revista e também nos três livros que escrevemos nos últimos dois anos as razões dessa diferença.
Dependência automotiva
Fundamentalmente a resposta se prende à nossa matriz automobilística. O terremoto macroeconômico que desabou sobre nossas cabeças nos entregou de bandeja o retrato fiel de nossas instituições, todas forjadas no período de riqueza compulsória. Não temos capacidade de reação individual ou coordenada porque as entidades políticas, econômicas, culturais e sociais ainda navegam nas águas passadas dos tempos de glória de investimentos em profusão nesta região. Suas estruturas estão corroídas. Quando muito, essas organizações funcionam como escritórios de prestação de serviços aos associados. Nota zero, entretanto, como organizações preparadas para o jogo da interlocução produtiva com quem decide a sorte de cada um dos 2,4 milhões de habitantes da região. Aplaudimos aventureiros locais e visitantes que nos colocam na boca um torrão de ilusão e execramos os poucos que ousam botar a boca no trombone porque estão cansados de esperar por medidas corretivas. Aos primeiros, lantejoulas; aos segundos, tomatadas e batatadas.
Arremetida editorial
É esse Grande ABC traumatizado pelas políticas econômicas que se seguiram à abertura comercial e inerte em suas representações econômicas, políticas, sociais e culturais que olham para o próprio umbigo, que exige uma nova arremetida editorial. É preciso fazer acordar e vitaminar esse moribundo. E não será com novos lances de compadrios que veremos esse corpo quase inanimado ganhar musculatura de atleta depois de período de tratamento cuidadoso, meticuloso, monitorado pelo bom senso. Ou aplicamos uma nova fórmula de entendimento dos papéis que devem cumprir os agentes individuais e coletivos que compõem o tecido regional, ou estaremos adiando a autópsia de que certamente não haveremos de escapar diante do estouro da boiada da globalização.
Confundindo as bolas
O jornalismo politicamente correto praticado há tempos pelo Diário do Grande ABC — em larga escala assemelhado a outras publicações diárias — não pode reincidir na queda no buraco negro de confundir alhos de entidades de vigorosa representatividade com bugalhos de entidades representativas no sentido burocrático do termo. Críticas que se façam a organizações sociais, econômicas e políticas do Grande ABC ainda são confundidas com retaliações pessoais. No nosso caso, até mesmo velhos amigos acabaram se afastando de nosso convívio porque imperou a responsabilidade social inerente do jornalismo. É muito mais cômodo o apadrinhamento dos amigos e dos conhecidos, mas essa fórmula se comprovou nefasta para a região. Quem perde tanta riqueza em poucos anos e se mostra incapaz de qualquer reação — pior do que isso, a maioria procurou esconder a realidade em cada esquina de desemprego e em cada fábrica abandonada — há muito já entregou a rapadura do compromisso com a seriedade e a dignidade. Nossas entidades de classe econômica, política, social e cultural estão vegetando. Mas, com a proteção do jornal, sempre se sentiram, ou pretendiam fazer-se crer, no melhor dos mundos.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)