Ocorreu-me a idéia, às vésperas da decisão do Campeonato Paulista, de escalar um time de primeira. Não, nada de bola rolando, como poderiam sugerir os leitores. O time é diferente. É um time comportamental. Faço mais que isso. Escalo uma seleção comportamental. Reparem os leitores na leitura que se seguirá — e espero que seja uma leitura mastigada, pensada, analisada — o quanto de personagens do dia-a-dia encontramos nos exemplos que listamos abaixo.
Confesso que não foi difícil escalar esta seleção. Bastou pensar na sociedade do Grande ABC que, em suma, não difere do que encontramos no resto do mundo. Aqui há gente de toda espécie, como se sabe. Fui comedido na escalação da seleção com apenas 11 titulares. Há condições de montar um banco de reservas numerosíssimo.
Vão dizer os mais críticos que os titulares que acabo de escalar compõem uma interpretação negativista. Concordo. Como tenho um caminhão de modelos individuais e coletivos de reconhecimento conferido durante 15 anos à frente do Prêmio Desempenho, casos, entre outros, de Madres Terezas, Freis Galvão e Imortais, acredito que reúno cacife suficiente para bancar esta Seleção.
Sei perfeitamente que há gente tão gabaritada nesta Seleção Comportamental que poderia ocupar várias posições. Preferi definir os titulares pela prevalência da característica principal. O que quero dizer com isso é o seguinte: há gente à solta com características associadas e que, portanto, poderiam sugerir compactação. Acredito que a medida não daria a dimensão das particularidades na sociedade.
Acompanhem então nossos craques. E que vença o melhor, na Vila Belmiro. Desde que o melhor seja alvinegro, dono da menor torcida. No estádio.
Omisso — O mundo ao redor, na cadeira ao lado ou no conjunto da sociedade, pode estar pegando fogo, que jamais fará qualquer coisa que lembre iniciativa, que resulte em tomar partido, mesmo que tomar partido, principalmente se tomar partido signifique aliar-se à justiça, à moral, à ética. Nada disso tem o menor sentido para o omisso de carteirinha, que enxerga apenas o próprio umbigo de interesses e entende que, ao manifestar-se, poderá colocar tudo a perder. No fundo, no fundo, o omisso é um fraco, desconfiado de si mesmo. Pobre de quem precisar que um omisso salte do muro do comodismo e da fraqueza. Pior ainda se, de repente, o omisso resolver, num lapso comportamental, lançar-se em alguma direção. Provavelmente entornará o caldo de vez porque poderá dissuadir interlocutores. Não se pode esperar do omisso senão a própria omissão, ou a omissão disfarçada de participação com viés de dissuasão.
Adesista — Para quem enxerga através da lente de aumento do oportunismo, nada mais importante que cenários de mudanças, porque a especialidade de mover-se nos bastidores para detectar qual é o lado supostamente mais forte assegura vantagem competitiva. Quem tem a influência social e a falta de caráter dos mutantes, como os adesistas, o que parece nebuloso para terceiros se torna agradabilíssima operação para obter mais vantagens ou, no mínimo, sustentar-se nas bases já alcançadas. O adesista não tem pátria ideológica. O compromisso com a ética é apenas para inglês ver. Geralmente é improdutivo. Locupleta-se individualmente sempre.
Maneiroso — O maneiroso deixa na mão todos aqueles que ensaboa com promessas de parcerias. Mais que servir, quer servir-se. Não necessariamente têm o dolo do oportunismo programado. São agradáveis, atenciosos, ensaiam até algumas arremetidas de compartilhamento de ações, mas como passam todo o tempo metidos nesse tipo de trabalho de meio de campo, ou seja, de assegurar novos relacionamentos a interlocutores mais próximos mas sempre de olho na legitimidade nas vantagens pessoais, não têm tempo de fato para a execução dos projetos, para a finalização ao gol. Em suma, o maneiroso não tem foco porque o que quer de fato é agradar na aproximação de potenciais parceiros, beneficiando-se desse jogo de suposta influência.
Duas caras — São aparentemente agradabilíssimo. Recebem privativamente com cavalheirismo, estendem o tapete vermelho de uma verborragia eivada em adjetivações, abraçam, elogiam, prometem e, encontro encerrado, agora frente a frente com novos interlocutores, desancam críticas e erguem barreiras a quem mal acabaram de recepcionar. No fundo, no fundo, os duas caras têm caráter inconsistente, o que, nestas alturas do campeonato, significa exatamente a falta de caráter. O problema dos duas caras é que têm apenas metade do cérebro para trafegar no intenso trânsito de relacionamentos interpessoais.
Intolerante — Não esconde divergências nem mesmo em público. Geralmente hostiliza ou menospreza antigos interlocutores que cruzaram-lhe a vida. O fairplay é desconsiderado porque o intolerante não distingue ambiente nem situação. É preto no branco e está acabado. Há quem o condene por isso, enquanto outros o considerem autêntico. Essa espécime é residual na sociedade mais coercitiva a manifestações guerrilheiras. O intolerante não tem verniz intelectual. É um kamikaze por natureza.
Guerreiro — Para quem não abre mão de determinados princípios e ideologias, a vida em comunidade é complicada porque os interesses cruzados são profundos e os embates são frequentes. Há batalhas permanentes com os politicamente corretos. Há guerrilhas contra o prevaricadores éticos. Há chutes na canela dos dissimulados, dos omissos e de tantos outros modelos disponíveis na comunidade. Nem todo guerreiro, entretanto, notabiliza-se pela impetuosidade. Alguns aprenderam que não se pode perder a ternura e superam as barreiras com idas e vindas decisórias que não comprometem a essência. Mas sempre há o risco de o cachimbo da moderação entortar a boca do inconformismo. Nada pior do que um guerreiro domesticado.
Manipulador — Mexer com as peças individuais e corporativas da sociedade é patrimônio genético especial. Além das características individuais é indispensável contar com poder e dinheiro, dinheiro e poder, ou pelo menos com um dos dois, porque o outro virá na sequência. Os manipuladores mais competentes sabem o que querem, sabem aonde querem chegar, sabem os riscos que correm, sabem praticamente tudo porque mapeiam os interlocutores. Geralmente os manipuladores têm um séquito de informantes e usam de todas as armas para chegar ao porto seguro das metas traçadas. O problema mais grave dos manipuladores é quando acreditam que nada os abalará. Por isso se metem em searas nas quais têm conhecimentos rudimentares, onde topam com outros manipuladores, geralmente decididos a preservar filões.
Narcisístico — Quem aprecia com exagero as próprias supostas virtudes e amplifica as supostas deficiências dos interlocutores caminha inexoravelmente para frustrações. Nada pior do que o narcisista que transporta para áreas sobre as quais não têm domínio técnico o mesmo grau de autoconfiança da especialidade que detém. Um saxofonista que se imagina clarinetista vai levar o público à exasperação A transposição acrítica da valoração individual de uma atividade na qual é vencedor para uma outra área na qual é principiante é atalho irremediável ao desastre total. O tempo, a aptidão e a determinação sempre prevalecerão como divisor de águas entre o sucesso e o fracasso.
Pavonesco — Essa espécime notabiliza-se pelo guarda-roupa, não necessariamente pela articulação vernacular e comportamental, embora a maioria não abra mão de diploma universitário como símbolo de sucesso. Trata-se de fauna especializada em agradar principalmente aos olhos. Quanto mais se enfeitam, quanto mais se embonecam, quanto mais exalam perfume, mais acreditam que seduzem. A vestimenta é salvo-conduto para deslizes e limitações. Se por alguma razão se veem à paisana, sentem-se desqualificados. Se alguém tomar o cuidado de somar o tempo despendido pelos pavonescos com arranjos pessoais, com a diversidade de equipamentos que os tornam impecáveis em qualquer situação pública, verá que é inversamente proporcional à qualificação profissional. Os pavonescos gostam de mirarem a própria plumagem. Não se dão conta de que, por mais que busquem a individualidade fosforescente, metem-se num manequim de mesmice, padronizado, coletivizado — um paradoxo do qual não se dão conta exatamente porque só se enxergam.
Bumerangue — Não tem a menor habilidade para lidar com o contraditório. São especialistas em armar confusões. Diametralmente diferentes dos manipuladores, têm a língua solta demais. Não suportam eventuais acertos táticos. Derretem os desdobramentos estratégicos. São capazes de armar um grande lance para, em seguida, colocar tudo a perder. O pior é que não se dão conta de limitações psíquicas. Não há outra explicação para essa mania de narrar o jogo da própria vida para os mais próximos e os mais distantes apenas para dizer que está na parada, que é um Ronaldo Fenômeno a ser cultuado. Não distinguem parceiros de adversários e adversários de inimigos. Colocam todos no mesmo balaio de gatos. Inclusive eles próprios.
Enigmático — São metódicos, silenciosos, discretos, profundos. Unem qualidades incomuns num mesmo endereço genético. São racionais, calculistas, frios, inteligentes e extremamente seguros do quanto podem levar essa imagem ao extremo da segurança nos relacionamentos. Por isso são inquestionáveis como confessionários para os amigos mais próximos, mesmo que os amigos mais próximos não saibam com segurança o que se passa na cabeça de quem os ouve com atenção e desvelo, um certo carinho de cumplicidade ou de parceria. Os enigmáticos são herméticos, inclusive com familiares mais íntimos, dos quais mantêm à distância pontos mais críticos do dia-a-dia. Chegam a tentar descobrir uma barreira mágica para acondicionar num lado do cérebro informações que outro lado não pode saber. Razão e emoção nem sempre são boas companhias.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!