Sociedade

Quatro versões de um desastre
anunciado. Qual você prefere?

DANIEL LIMA - 29/05/2018

O título poderia ser diferente. “Quais você prefere” caberia melhor, certamente, porque as alternativas não são excludentes. Aliás, são parcialmente complementares. O fato é que resolvi repassar aos leitores alguns trechos que considerei relevantes de matérias que consumi hoje no Estadão e na Folha de S. Paulo sobre a greve dos caminhoneiros.

Pretendia fazer isso na edição de ontem, com tudo que li no final de semana, mas deixei de lado porque a matança de jovens pobres na região por policiais civis e militares não é algo que se descarte mesmo em situação excepcional como a que estamos vivendo.  E mesmo se reconhecendo que a bandidagem não dá trégua e, por isso mesmo, é indutiva a radicalizações na área de Segurança Pública.

Paradoxalmente, não sou suspeito em defesa do movimento dos caminhoneiros só porque tenho e tive familiares nessa que é uma das atividades mais desumanas que já inventaram num País tropical abençoado por Deus.

Meu pai foi caminhoneiro, entre tantas outras coisas, inclusive árbitro de futebol, presidente de Liga de Futebol, músico e muito mais. Muitas vezes o esperámos, eu e meus sete irmãos, por longos 30, 40 dias, até que retornasse de viagem ao fim do mundo.

Mobilidade social?

Tenho parentes próximos que o repetem em condições ainda menos favoráveis, porque os tempos são outros e mais terríveis. Todos mal conseguem sobreviver. Envelhecem precocemente. Jamais tiveram a mobilidade social, por exemplo, dos metalúrgicos de primeira classe da região, que, em conluio com as montadoras de veículos, repassam benesses fiscais e trabalhistas para o bolso da sociedade em geral. E sobre isso não há indignação alguma. Mas isso é outro assunto.

O que ofereço à degustação dos leitores são quatro alternativas pinçadas nos jornais de hoje. Acho que vale a pena consumir cada uma com apurado exercício crítico. A meu ver, há semelhanças entre cada grupo de dois textos.

Em comum entre os quatro (ou pelo menos entre três dos articulistas) uma clareza estonteante: o governo Michel Temer é uma tremenda roubada nacional. Digno dos melhores momentos de Dilma Rousseff. Até porque os melhores momentos de Dilma Rousseff são catastróficos com uma política fiscal impregnada dos tempos já tenebrosos que rondaram o governo Lula da Silva. Mas isso também é outra história.

Utilizo nessa oferta de considerações sobre a greve dos caminhoneiros o Editorial do Estadão de hoje sob o título “Fraqueza perigosa”. Também lanço mão do artigo de Vinícius Mota, Secretário de Redação da Folha, sob o título “Quem aplaude método de caminhoneiros não gosta de democracia”. A economista Ana Clara Abrão ocupou a coluna do Estadão com uma análise sob o título “Escolhas erradas e custosas”. Para completar, o jornalista e ex-deputado Fernando Gabeira é entrevistado pelo Estadão sob o título “´É um movimento contra a corrupção e contra os políticos”.

Com quem estou

Para antecipar aos leitores minha posição sobre o quarteto, diria resumidamente que estou com Gabeira e não abro, que estou apenas parcialmente com o Editorial do Estadão, que estou totalmente ao lado da Ana Clara Abrão e me distancio inteiramente do Secretário de Redação da Folha de S. Paulo.

Estou – sem considerar os excessos e os desvios que começam a manchar essa mobilização tão histórica quanto tardia – ao lado dos caminhoneiros. Quem estiver a favor que faça uma experiência simples: pegue um trambolho desses caindo aos pedaços por falta de manutenção e passe uma semana nas esburacadas estradas brasileiras. Vá em frente. Está pensando que ser caminhoneiro é ser metalúrgico de montadora? O buraco é muito mais embaixo. E dolorido. 

Trechos de Fernando Gabeira 

 Muitos caminhoneiros e grupos que participam esperavam uma mudança do próprio governo. Desejam uma mudança de governo. Existe um conteúdo político que foi esvaziado. Ninguém fala que, além de todas as reivindicações, eles querem um novo governo. (...) Até o momento quase todo o apoio que ele recebeu foi difuso e mais ou menos voltado à condenação dos políticos. Há uma parte de gente que não está ligada ao preço do diesel e às condições de trabalho dos caminhoneiros que acha que vale a pena protestar porque o governo não presta. Essa é uma atitude comum e se manifesta na entrega de alimentos e material de infraestrutura para os caminhoneiros. (...) Os políticos criaram um universo distante do mundo real e frequentam muito pouco esse mundo real”.

Trechos de Ana Carla Abrão

 O Brasil subsidiou à larga a compra de caminhões. Não conseguiu viabilizar a ferrovia norte-sul e nenhuma das ferrovias que nos garante uma menor dependência do modal rodoviário. Criamos um sistema tributário esquizofrênico que contribui com a ineficiência e incentiva que esses mesmos caminhões atravessem o Brasil guiados por uma guerra fiscal que impões perdas a quase todos. (...) Temos cerca de 200 vezes menos estradas pavimentadas do que os Estados Unidos, e a nossa rede ferroviária não chega a 10% do tamanho da dos Estados Unidos e da China. (...) O que vivemos hoje com os graves impactos econômicos e as incertezas geradas pela greve dos caminhoneiros e eventualmente de outras, é consequência, portanto, de uma sucessão de grandes erros de políticas públicas que nos fazem flertar, cada vez mais, com o caos econômico e social”.

Trechos de Vinícius Mota

 Os anarquistas anticapitalistas do passado cultivavam a ideia de que uma greve geral revolucionária, com adesão absoluta, derrubaria o sistema num só golpe. Eis que o seu negativo de direita, no Brasil mal instruído do século 21, aparece aboletado na cabine de um caminhão. (...) Caminhoneiros e empresários de transporte adotaram a via dos piratas e dos saqueadores do passado. Sitiam cidades e estrangulam o fornecimento de bens essenciais. Provocam sofrimento em dezenas de milhões de pessoas para arrancar delas mesmas, por meio do resgate bilionário chancelado pelo governo, a solução para seus problemas. Se você gosta disso, se simpatiza com os meios empregados pelos bucaneiros sobre rodas, então está flertando com a tirania”.

Trechos do Editorial do Estadão

 O governo do presidente Michel Temer mostrou-se frágil ao lidar com o protesto dos caminhoneiros que parou o País. Essa fragilidade ficou particularmente evidente com a quase total inação das Forças Armadas, malgrado o fato de que as medidas decretadas por Temer para desobstruir as estradas e garantir o abastecimento das cidades incluíam a autorização expressa para que os militares agissem contra os grevistas. (...) Assim, o protesto dos caminhoneiros deixou de ser uma legítima manifestação contra a alta dos preços do diesel para se transformar em uma única feroz disputa de poder. Na esteira do sucesso da mobilização, sevandijas de diversos matizes se articulam para lucrar com a progressiva perda de autoridade do governo. (...). Um governo que não se faz respeitar não pode se queixar do destino.



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