Li numa noite dessas no papel, não no site, uma entrevista do economista Paulo Kliass, republicada na revista Carta Maior. Quem é Paulo Kliass? Vou apresentar as credenciais dele em seguida. O principal é que ele vive em Marte. Ou é possível viver na Terra e discorrer sobre a Petrobras sem recorrer uma vez sequer ao verbete “corrupção”, entre as variáveis de indignação em defesa da maior empresa brasileira. Ao final de 58 mil caracteres (só para se ter ideia do tamanho, este texto completo conta com 1,4 mil caracteres) o entrevistado alcançou a proeza de não só deixar de pronunciar o verbete como qualquer outro assemelhado. O mundo da Lua esquerdista em que vive não tem pecados.
O que pergunto é o seguinte: alguém que comete tamanha sandice é outra coisa que não seja desonesto intelectual?
Seria este jornalista praticante de honestidade profissional se, numa análise tão longa quanto aquela, referindo-se, por exemplo, à situação econômica e social da região, não apontasse algumas razões básicas para o estado em que nos encontramos, caso, por exemplo, de desindustrialização?
Ainda outro dia, a propósito, meti meu bedelho num grupo de um aplicativo no qual estou inserido como voyeur. Isso mesmo: estou em alguns grupos como observador da cena municipal e regional. Procuro, sobretudo, avaliar o conteúdo das mensagens. Saber até que ponto devo depositar fé no regionalismo maduro. Naquele dia, resolvi subir ao palco para contrapor a uma sandice um mínimo de racionalidade. Não é que um dos participantes, antipetista evidente, correlacionou a desindustrialização de Santo André especificamente ao prefeito Celso Daniel?
Origem da desindustrialização
Embora centro-esquerdista apegadíssimo às estatais e a outros pressupostos socialistas, Celso Daniel não constaria jamais de uma relação de pelo menos 15 razões que explicam a desindustrialização da região como um todo e de Santo André em particular.
Escrevi em poucas linhas daquela mensagem de aplicativo que, quando Celso Daniel assumiu pela primeira vez a Prefeitura de Santo André, em 1989, os metalúrgicos de São Bernardo já tinham botado para quebrar, num movimento com prós e contras que abalaram a competitividade regional a partir do final dos anos 1970.
Também naqueles tempos o governo do Estado incentivava tremendamente o que chamou de descontração da Região Metropolitana de São Paulo, apoiando explicitamente a alocação de investimentos industriais no Interior do Estado, sobretudo nas regiões de Campinas, Sorocaba e São José dos Campos. Demonizou-se a metrópole como saída à melhoria da qualidade de vida. Ignoraram que os agentes privados e públicos responsáveis pelas loucuras da Capital e da vizinhança não arredariam pé de ambições mercantilistas.
Não bastassem aquelas duas âncoras da desindustrialização, somava-se a inapetência dos prefeitos antecessores de Celso Daniel (e de seus contemporâneos nos demais municípios da região) em agir cautelarmente para fortalecer o setor industrial ante a sanha interiorana.
Collor e Plano Real
Aí veio o presidente Collor de Mello, eleito em 1989, com uma abertura econômica sem cautelas. Na sequência, o Plano Real arruinou a maioria dos orçamentos dos chefes de Executivo do País, ao acabar com a farra arrecadatória beneficiada pelo descolamento de receitas financeiras das despesas depreciadas pelo processo inflacionário. Da mesma forma, o setor produtivo teve de correr em busca de competitividade dentro e fora do País.
Particularmente na região tivemos como motor propulsor do recrudescimento das fraturas econômicas um governo federal, comandado por Fernando Henrique Cardoso, que privilegiou os interesses das montadoras de veículos e colocou um enorme obstáculo às autopeças. Sobre as primeiras, instalou barreiras fiscais protecionistas. Sobre as segundas, abriu as portas da desnacionalização do setor. As pequenas e médias empresas industriais da região perderam praticamente a penca de empreendimentos familiares. Sempre lembro que uma entidade que as representava, a Anapemei, comandada por Claudio Rubens, espécie de consultor coletivo, sucumbiu juntamente com as filiadas.
Não escrevi tudo isso nas mensagens do aplicativo em contraponto ao interlocutor antipetista porque o espaço não comportaria. Fiquei restrito aos dois vetores iniciais, os metalúrgicos liderados por Lula da Silva e a descentralização da produção industrial incrementada pelo governo estadual.
Maleabilidade intelectual
O que quero dizer com essa exposição de motivos é que qualquer acadêmico, jornalista ou agente público e privado que, questionado sobre as razões que conduziram a região ao estágio em que se encontra, jamais poderá sonegar informações. Preservar o sindicalismo pode até ser politicamente correto (seria mesmo?), mas não é honesto. Da mesma forma que subestimar os estragos de Fernando Henrique Cardoso.
O que não é honesto é atribuir a um prefeito específico, seja quem for, a origem da desindustrialização. Celso Daniel ou qualquer um dos demais prefeitos daquele final dos anos 1980 só podem ser caracterizados, no conjunto, como omissos. O Clube dos Prefeitos, criado em dezembro de 1990 (depois da revista LivreMercado, que lancei em março daquele ano) desprezava uma visão econômica da região. Tanto que se concentrava em aspectos relacionados à infraestrutura física dos municípios e também à qualidade de vida ambiental. Tudo isso num momento em que as fraquezas produtivas da região já se cristalizavam.
Ainda seguindo o rastro da importância de não tratar os leitores como otários, como imbecis que aceitam tudo, o que vivemos nestes tempos polarizados na política é de lascar. Há exemplares de jornalismo na praça nacional que se esmeram em construir o próprio cadafalso de respeitabilidade. Reputações outrora esculpidas com desvelo viraram pó. As máscaras caíram e continuam a cair.
Militância predatória
Muitos viraram jornalistas militantes. Defendem causas indefensáveis, entre as quais, a mais desmoralizadora, a de que a Operação Lava Jato é responsável pelo esfarelamento da atividade política no País. A repetição dessa cantilena dia e noite, noite e dia, acrescenta novas pás de cal às biografias dos sentenciadores caducos e irresponsáveis, porque lacaios de partidos políticos. Esses bobalhões, como lembrou o ministro do Supremo, Celso de Mello, confundem agentes criminosos com agentes políticos.
É nesse ambiente sabiamente definido de Fla-Flu que um entrevistado como o economista Paulo Kliass emerge com uma multiplicação de argumentos que seguem rigorosamente o mesmo destino: defender a qualquer custo um socialismo retrógrado que nem o PT teria sido capaz de honrar.
Paulo Kliass me faz pensar uma frase antológica de Roberto Campos, uma das maiores cabeças que este País já produziu. Dizia Roberto Campos que o pior burro é o burro diplomado, porque pensa que é inteligente. Paulo Kliass é graduado em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas (SP), mestre em Economia pela Universidade de São Paulo (USP), e doutor na mesma área pela Université de Paris 10. Desde 1997 é integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, vinculado ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
Santificação injustificada
Além de colocar a Petrobras num pedestal sacrossanto que jamais passou por qualquer situação de delinquências sequenciais, o economista desfila conceitos que se prendem em excesso ao congelamento ideológico. Expõe tudo com fluidez e coerência, o que não é uma virtude porque tudo segue uma linha reta, sem percalços de autoquestionamento.
Pena que mesmo onde supostamente registraria uma fortaleza argumentativa, o economista derrapa na inconsistência estrutural. A defesa intransigente do Estado guarda persistente insensatez: o socialismo que espera ver implantado no Brasil (e também em outros países, sobretudo da América Latina) está na raiz dos problemas que atribui ao capitalismo. Ou seja: onde viceja o Estado grande demais, senhor do destino da sociedade, a ineficiência é compulsória – e da qual se apropriam, também, as ramificações capitalistas que se confundem com o conceito de mercantilismo. Caso do sistema financeiro, que o economista tanto combate numa linha de frente que ignora a vulnerabilidade da retaguarda estatal como ninho da serpente.
Sei que ao escrever estas linhas corro o risco de ser mal interpretado pelos burraldos de plantão. Gente que reduz a pó qualquer linha de raciocínio que exija concentração, reflexão e conhecimento. Gente que vai dizer, por exemplo, que seria este jornalista exemplar nefasto do capitalismo e autoritariamente espancador do Estado.
Inspiração vem de longe
Nem uma coisa nem outra, claro. Costumo resumir meu pensamento ao que chamo de capital social – aliás, inspiração para o batismo desta publicação. Sou um adepto do equilíbrio entre Sociedade, Estado e Mercado, seguindo a linha ideológica de Tony Blayer, ex-primeiro ministro da Inglaterra.
Ao consumir todos os parágrafos da entrevista do economista em questão, apresento minhas credenciais ecumênicas. Bem diferente dos extremistas que só leem o que se identifica com a rigidez do próprio pensamento. Exercito o contraditório por uma razão elementar: só com ampla liberdade intelectual é possível aferir quem é quem nesse imenso shopping de ideias em que se transformou o mundo das comunicações.
O calhamaço de 58 mil caracteres da entrevista republicada pela Carta Maior deve ter agradado integralmente os leitores que não se deram conta de que não é razoável discorrer sobre o governo Lula da Silva seguido de Dilma Rousseff sem atentar para a corrupção na Petrobras. Da mesma forma que seria incoerente demais deixar de observar o quanto ocupou de espaço o programa Bolsa Família tão combatido pelos incluídos sociais pouco sensíveis às desigualdades do País. Os mesmos insensíveis sociais que combateram a essência da greve dos caminhoneiros, esses escravos das estradas, sobretudo os autônomos.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!