Sociedade

Maltratadas nunca mais

MALU MARCOCCIA - 05/10/1997

Elas não estão atrás de aclamação da crítica nem do glamour das atrizes reluzentes. Querem ter influência, sim, em outros espaços distantes do brilho dos espetáculos artísticos: os lares com maridos opressores, os ambientes de trabalho discriminadores, as rodas sociais hipócritas. Malamadas, Atrevidas e Abusadas é mais do que um nome provocativo e de dupla interpretação para um grupo teatral feminino. É a expressão da verdade que atinge a grande maioria das mulheres do Planeta, incluindo aí as próprias integrantes dessa companhia de teatro de Diadema já há cinco anos em atividade e à beira de ser reconhecida como um fenômeno artístico alternativo.

O inusitado não é o fato de serem senhoras com idades que vão dos 40 aos 63 anos, algumas avós. O que instiga é que são, ao mesmo tempo, personagens e intérpretes. Não se dissociam porque representam no palco a própria vida, ou fases dela, em que foram violentadas em casa, seduzidas pelo patrão, desprestigiadas pelo grupo de convivência, discriminadas pela idade e desvalorizadas no ingrato trabalho do lar - um lugar comum que atravessa séculos.

"Dona Irene, ele não dá nenhuma mãozinha em casa?" - pergunta alguém. "Ah, dá sim. Dá uma tremenda mão pesada na cara se a comida está salgada e a roupa não lavada" - responde Irene, encarnada por Neusa Brito, 41 anos e três filhos, duas vezes surrada pelo marido, duas vezes denunciado na Justiça. "Queria aproveitar para agradecer a meu chefe, que está sempre me valorizando com maior carga de trabalho, e também aos meus vizinhos, sempre me vigiando para eu não atrasar à noite" - discursa a inocente Dona Maria, vivida no palco por Vilma Lázara, 44 anos, quatro filhos e já avó, também vítima de violência doméstica pelo segundo marido (processado e condenado a indenizá-la), da maledicência de fofocas da vizinhança e de discriminação no trabalho pela idade, fazendo serviços pesados que geralmente os superiores poupam às mais mocinhas.

Frases como essas invariavelmente incomodam a platéia. Mais a uns, menos a outros, ninguém escapa. "As mulheres ficam vermelhas, identificando-se com as cenas. Os homens pigarreiam, dão gargalhadas, mas não têm coragem de sair, porque também se enxergam ali" - comenta a atriz, fotógrafa profissional e artista plástica Marta Baião, idealizadora da companhia de teatro e mentora da maioria dos temas encenados. Solteira, 43 anos, alguns namorados, mas sem pretensões de casamento -- não porque despreze os homens, ao contrário, mas porque não quer sacrificar a liberdade, como diz -- Marta é inquieta com a questão da violência contra a mulher. Escapou até agora das estatísticas que dão ao Brasil o incômodo título de campeão em agressões morais e físicas contra a mulher, segundo pesquisa da ONU divulgada na Conferência Mundial da Mulher realizada em Pequim, na China, em 1995. Mas presenciou milhares de situações do gênero em suas andanças profissionais, inclusive dentro da família com uma irmã, por isso abraçou como bandeira a linguagem do teatro para denunciar o tema.

"É tão universal a relação de supremacia do homem que você não precisa levar uma pancada para saber que há opressão contra a mulher. Além da discriminação que resiste aos anos, deixando-nos com identidade incompleta, a violência é um tema tabu inclusive entre movimentos feministas e grupos de intelectuais masculinos" - dispara Marta. Diadema não varreu essa chaga para debaixo do tapete. A companhia Malamadas, Atrevidas e Abusadas nasceu, aliás, dentro da Casa Beth Lobo, serviço de apoio à mulher vítima da violência mantido pela Prefeitura. 

Marta Baião, que também trabalha com psicodrama, viu nessas vítimas algo mais do que um monte de cacos. Sentiu que, desenvolvendo a autoestima, todas podiam se recompor e testemunhar ao mundo suas vivências por meio de uma expressão artística popular. O Departamento de Ação Social e Cidadania de Diadema, através da Divisão dos Direitos da Mulher, apostou no projeto teatral. E acertou o alvo. Essas donas-de-casa, lavadeiras, costureiras, diaristas, mães e avós já se apresentaram para 40 mil pessoas em todo País e em 1996 estiveram no Chile, no Encontro Feminista da América Latina e Caribe. No mês passado abriram no IMES de São Caetano o quarto encontro do Fórum Permanente de Vereadores do Grande ABC, que debateu a questão. Os vereadores decidiram criar uma Frente Regional de Combate à Violência contra a Mulher e vão levar a proposta ao Consórcio Intermunicipal dos prefeitos. 

A aceitação do grupo teatral tem sido tamanha que Marta Baião lamenta a falta de tempo para alongar os ensaios semanais. É que toda semana, pelo menos, há uma apresentação agendada: em empresas, Sindicatos, espaços culturais, na rua, em universidades, em datas comemorativas, eventos oficiais e não-governamentais. Em março, quando se comemora o Dia Internacional da Mulher, as sete integrantes do grupo praticamente vivem dentro da kombi que as transporta junto com o material cênico. Não há folgas de dia ou de noite. Para apresentações fora da programação cultural de Diadema cobram cachê, com o qual se sustentam, já que a maioria é de origem modesta.

O crescente interesse pelas Malamadas é explicado pelo trabalho com temas sociais candentes, não só da violência doméstica, mas também da Aids, da desvalorização no mercado de trabalho, do assédio sexual e do descaso com a saúde da mulher. Todos são explorados, menos ou mais intensamente, nos três últimos espetáculos da companhia: Tô de Olho em Você (que foca o desprestígio do trabalho doméstico e a condição subalterna da mulher), Carmens (adaptação da ópera de Bizet que satiriza os papéis pré-estabelecidos pela sociedade) e Parabólicas (que fala da contaminação pela Aids por parceiros de vida dupla e do ambiente profissional). As montagens têm cenários simples, utilizam inclusive bonecos que reforçam o estilo mambembe do grupo, a linguagem é direta mas recheada de humor, irreverência e ironias do tipo "todas ganharam viagem só de ida para a Bósnia", sobre um campeonato de donas-de-casa submissas, ou "trem lotado de cadeiras vazias", sobre o assédio que mulheres sofrem diariamente no transporte urbano superlotado.

"Acho que é a forma original e criativa de falarmos de temas tão cotidianos que está gerando essa aceitação" - comenta Vadú, como é chamada Valdelina dos Santos, 64 anos, mãe de seis filhos, avó de 15 netos, a mais antiga das Malamadas. Viúva, doméstica, costureira e agora atriz, Vadú foi vítima do mais comum desvio masculino, a traição. Submissa, diz que suportou a provação devido à família.  "Foram anos de constrangimento. Os homens não têm respeito" - afirma Joana Isaura, 50 anos, costureira, mãe de seis filhos e avó de seis netos, ao falar sobre os trens e ônibus abarrotados que todos os dias tomava para acompanhar as crianças à escola e ao médico, ou para ir às compras e ao trabalho. "Se ele mudou, não sei. Eu mudei" - assegura Neusa Brito, 41 anos, ao garantir que não aceitará uma terceira surra do marido, temperamental sobretudo depois de ouvir do juiz que procurou no Fórum o desastroso comentário: "Deixa prá lá. Se você apanhou é porque deu motivo". 

Aos 61 anos, 31 dos quais casada com o mesmo homem e mãe de uma filha, Josefa Correia Costa se sente uma honrosa exceção. O marido é exemplo de dedicação e mimos, "até dividindo trabalhos de casa". Mas, como nenhum macho é de ferro, não conteve um provocante "deixa dessa história, mulher! Depois de velha vai virar atriz?". Também os vizinhos fizeram carga contra sua nova opção de vida, atormentando o marido contra Josefa, conhecida como Dona Menininha. Maria das Graças, 46 anos, doméstica, três filhos e uma neta, viúva há dois anos, chegou à Casa Beth Lobo de Diadema desorientada, mas vítima de outro tipo de violência: a submissão cega ao marido, ao qual serviu durante 23 anos. Até agora não define muito bem a química daquele relacionamento: "Ele foi ótimo companheiro, por isso fiquei tão abalada com a morte" - fala, com meias palavras.

As histórias são recorrentes. A produtora Marta Baião, 26 anos de teatro, 16 com trabalhos de grupos, não desiste. É incansável na luta pela denúncia da condição da mulher. Tem estatísticas na ponta da língua, como a existência de apenas 22 Casas de Apoio à Mulher no Brasil e menos ainda, apenas quatro Abrigos. A população feminina já representa 40% da força de trabalho, mas responde por tão somente 10% dos salários. "O Plano de Assistência Integral da Saúde da Mulher, aprovado na Constituição de 88, até agora não saiu do papel. As Delegacias da Mulher não têm infra-estrutura de atendimento, algumas sequer têm advogados para acompanhar as causas" - sublinha. E denuncia. No palco, nas ruas, nos Sindicatos, nas universidades, nos espaços culturais.



Leia mais matérias desta seção: Sociedade

Total de 1097 matérias | Página 1

21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!
20/01/2025 CELSO DANIEL NÃO ESTÁ MAIS AQUI
19/12/2024 CIDADANIA ANESTESIADA, CIDADANIA ESCRAVIZADA
12/12/2024 QUANTOS DECIDIRIAM DEIXAR SANTO ANDRÉ?
04/12/2024 DE CÃES DE ALUGUEL A BANDIDOS SOCIAIS
03/12/2024 MUITO CUIDADO COM OS VIGARISTAS SIMPÁTICOS
29/11/2024 TRÊS MULHERES CONTRA PAULINHO
19/11/2024 NOSSO SÉCULO XXI E A REALIDADE DE TURMAS
11/11/2024 GRANDE ABC DOS 17% DE FAVELADOS
08/11/2024 DUAS FACES DA REGIONALIDADE
05/11/2024 SUSTENTABILIDADE CONSTRANGEDORA
14/10/2024 Olivetto e Celso Daniel juntos após 22 anos
20/09/2024 O QUE VAI SER DE SANTO ANDRÉ?
18/09/2024 Eleições só confirmam sociedade em declínio
11/09/2024 Convidados especiais chegam de madrugada
19/08/2024 A DELICADEZA DE LIDAR COM A MORTE
16/08/2024 Klein x Klein: assinaturas agora são caso de Polícia
14/08/2024 Gataborralheirismo muito mais dramático
29/07/2024 DETROIT À BRASILEIRA PARA VOCÊ CONHECER