Quase meio século de carreira, um acervo de 1,2 mil quadros e esculturas celebrizados dentro e fora do Brasil e cujo valor comercial está entre os maiores do meio artístico mundial, 75 anos de idade, um derrame em 1994 que lhe tirou parte dos movimentos do lado direito.
Em vez de se recolher ao descanso em companhia da fama, entretanto, o andreense Luiz Sacilotto mantém presente a inquietude que invade todo artista. Está animadamente debruçado sobre a recuperação do calçadão de Santo André, cujas lajotas vão reproduzir um pedaço do gênero concretista com o qual se projetou. A homenagem é dupla: de Santo André para seu filho ilustre e vice-versa. "Vão pisar na minha obra; não me importo. Finalmente o povo vai conhecê-la" -- responde, ao mostrar no papel impresso a composição de retângulos, triângulos e quadrados que criou para homenagear a cidade. Serão cerca de 1,5 quilômetro de obras que se estenderão pela Oliveira Lima, Elisa Fláquer e Praça do Carmo e que levarão a cobiçada assinatura Concreção, como Sacilotto denomina sua arte, cujas telas e esculturas são identificadas por números.
A preocupação do mestre é que as lajotas de 40 centímetros em cada lado reproduzam fielmente os efeitos óticos que tanto o caracterizam nas telas. Figuras geométricas, paralelas, grades e módulos assumem movimentos conforme o ângulo de quem os vê. É essa sensação que Sacilotto quer levar às pessoas que caminharem por sobre o novo calçadão. "Quero que parem e fiquem imaginando o que quiserem, mas que não deixem de observar" -- desafia o artista plástico, que também está preparando duas esculturas em ferro para serem afixadas nos largos do Quitandinha e da Estátua.
Quando convida os admiradores para imaginar à sua maneira os traçados que tira do fundo do cérebro, Sacilotto não nega a origem de sua arte: o gênero abstrato-geométrico que emergiu nos anos pós-guerra veio justamente para romper com a figura. "Nunca gostei de natureza morta. Sempre deformei as figuras" -- define. Outro exemplo de sua rebeldia: nas viagens a museus e sítios históricos, enquanto a maioria olha para afrescos nos tetos e telas nas paredes, Sacilotto se encanta pelos pisos: "O chão das igrejas na Europa é fabuloso. A Catedral de San Marco, em Veneza, tem um piso geométrico excepcional datado de 1300 a 1500" -- sugere aos aficcionados. Não é preciso pensar muito para entender por que o arquiteto Décio Tozzi, responsável pela revitalização do centro de Santo André, só tinha um nome na mente quando projetou a decoração do calçadão. Sacilotto também é muito amigo do irmão de Décio, Cláudio Tozzi, outro renomado artista plástico.
Com obras presentes em acervos como MAM (Museu de Arte Moderna), MAC (Museu de Arte Contemporânea), várias pinacotecas do País e coleções particulares famosas -- casos de Ladi Biezus e Jorge Bomfim --, Sacilotto não leva uma vida de ostentação. Ao contrário, a simplicidade está tanto na aparência física miúda quanto no quepe sempre à cabeça para proteger-se do sol e na pequena casa da Rua Senador Fláquer herdada dos pais, na qual mora há 30 anos. A frente transformou em ateliê, a garagem alugou para comércio e aos fundos mora com Dona Helena, com quem teve os filhos Valter, Oscar e Adamastor, corretor de imóveis, empresário do ramo alimentício e arquiteto, respectivamente. Como se vê, talento não é propriamente questão de DNA. A memória já não colabora, por isso Sacilotto não sabe dizer de bate-pronto o nome dos cinco netos. Já notou que todos desenham, mas talvez só dê para apostar no filho de Oscar....Renam! -- cita, depois de algum esforço. "Ele disse, porém, que gosta é de aviação" -- murmura, um tanto decepcionado.
Críticos de arte e galerias avaliam em cerca de US$ 10 mil o metro quadrado com a assinatura do artista de Santo André. É a segunda ou terceira melhor faixa de valor comercial nesse meio, explica Sacilotto, que chegou a fazer caixilhos (molduras metálicas) para a casa do Bairro do Butantã do hoje famoso Fernando Henrique Cardoso, quando era professor da USP (Universidade de São Paulo).
Sacilotto chegou ao auge há cerca de 20 anos, com o reconhecimento comercial de sua obra. O crítico de arte e psiquiatra Theon Spanudiso pode ser considerado pai de sua carreira, quando projetou o artista de Santo André na Imprensa ao escrever sobre uma exposição que fazia à época. Grande colecionador, Spanudiso adquiriu 20 trabalhos da mostra e, antes de morrer, doou-os ao Museu de Arte Contemporânea de São Paulo. Mas o início no mundo artístico aconteceu muito antes e foi pela porta da frente: em 1946, aos 22 anos, participou de sua primeira exposição no Instituto dos Arquitetos no Rio de Janeiro, um fervilhante point do momento, e no ano seguinte integrou a famosa mostra 19 Pintores na Galeria Prestes Maia, em São Paulo. Eram jovens artistas que, influenciados pelo calor da renovação histórico-cultural do pós-guerra, também queriam romper valores.
Foi quando surgiu o movimento concreto paulista e Sacilotto -- que já havia entrado em contato com arquitetura e desenho industrial na juventude -- abraçou definitivamente o gênero, passando por cima da figuração. Em 1949, o artista plástico da região torna-se um dos precursores do concretismo, uma das mais fortes correntes da arte brasileira na década de 50. Max Bill e Piet Mondrian, que desenvolveram a arte concreta na Europa, já falecidos, são os ídolos dessa geração. A partir daí, Sacilotto tornou-se habituê das bienais e dos salões de arte moderna de São Paulo. Arrebatou o Prêmio Governardor do Estado em pintura, em 1952, e em escultura, em 1956. A geometria de sua arte que intercala espaços vazios e cheios justifica, para ele, o próprio sentido da vida: "Vazio-cheio, homem-mulher, luz-escuridão, dia-noite" -- conceitua, em metáforas. Cerca de 30 trabalhos de sua carreira vão ser reproduzidos no calçadão de Santo André, intercalando preto, cinza e branco e, em outra etapa, verde, violeta e laranja, azul, vermelho e amarelo.
Filho de imigrantes italianos da região de Udine, Sacilotto nasceu na esquina das ruas Cesário Mota e Correia Dias. Sempre viveu na região central de Santo André, daí a revitalização do calçadão estar sendo encarada, mais do que novo desafio profissional, como um presente para a cidade. Com os pais Antonio e Tereza morou nas ruas Antonio Bastos e 11 de Junho antes de se estabelecer na Senador Fláquer. Como toda criança, adorava gibis. Lia as histórias, mas eram os desenhos que lhe roubavam a atenção. Começou a copiá-los. Quando juntava uma série, mostrava-os ao pai, que trabalhava no frigorífico dos Martinelli. "Um vendedor de São Paulo que vinha buscar os frios em Santo André um dia olhou as figuras e disse para meu pai que eu levava jeito, que precisava estudar arte" -- recorda.
Não deu outra. Com 14 anos, indo e voltando de trem, Sacilotto começou a estudar no Instituto Profissional, uma escola só para meninos no Brás, na Capital. Durante cinco anos aperfeiçoou os desenhos e aprendeu técnicas de pintura. Começou a pintar por volta de 1942, aos 18 anos. Entre 1944 e 1947 estudou na Associação Paulista de Belas Artes, enquanto trabalhava como desenhista de letras no sistema de máquinas Hollerith, hoje a gigante IBM.
No auge da carreira, Sacilotto chegava a produzir de cinco a seis desenhos em uma noite. Um derrame há cinco anos paralisou-lhe a mão direita, a ferramenta de trabalho. Hoje uma tela consome-lhe três semanas. Embora sua obra tenha percorrido a Europa entre 1959 e 1960, Sacilotto pisou em solo europeu somente em 1978. Ficou hospedado em Paris na casa de um amigo húngaro e teve oportunidade de julgar uma exposição da Air-France sobre cartazes de esculturas de areia. Conheceu Nélson Zéglio, relações públicas da companhia aérea francesa, que o presenteou com um tour por Paris, Londres, Lisboa, Roma, Veneza e Florença. "Foi um banho de cultura" -- relembra.
Apesar da declaração de amor a Santo André, Sacilotto faz ressalvas aos meios artísticos regionais. Acha que, fora das grandes capitais, não há vitrines capazes de iluminar nomes. "Um bom pintor não vem morar em São Caetano ou São Bernardo. A grande difusora de artistas ainda é São Paulo" -- fala, para fúria de incentivadores da cultura do Grande ABC, que vêem emergir nomes nas artes plásticas como Rido, João Suzuki, Margareth Bom, Dinah Scarpelli, Ana Flaquer, Eduardo Natário, Karen Reinhart e Edson Lourenço. O mestre Sacilotto diz que respeita a todos, mas acha que ninguém se consolidou e passou pela porta da cozinha. Ele não poupa o verbo sequer para o público da região. "Não é a arte que está longe do público, mas o povo da região que não se interessa por produções e exposições artísticas e culturais. O ABC não tem um único museu ou galeria de primeira linha e promove mostras geralmente com obras pouco conhecidas" -- dispara.
Polêmicas à parte, Santo André sedia um dos três espaços onde o artista pode ser contemplado: o restaurante Porto Entreposto Cultural montou o Escritório de Arte Luiz Sacilotto, ambiente que se propõe a projetar antigos e novos talentos das artes plásticas da região. Na Capital, Sacilotto tem contratos com as galerias Choice e Silvio Nery, ambas na Oscar Freire.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!